São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

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A batalha pelo passado

EVALDO CABRAL DE MELLO
COLUNISTA DA FOLHA

O fato de a filosofia da história de R.G. Collingwood [1889-1943] ter ficado comumente identificada com a teoria da atividade historiográfica como reatualização ("re-enactment") do pensamento dos agentes históricos levou a que outras contribuições suas, igualmente ricas e até mais importantes, permanecessem menos conhecidas.


O historiador da música interessado numa sinfonia de Beethoven não se contentará em ouvi-la em versão atual, mas irá escutá-la como era executada por uma orquestra do tempo do compositor


Isso foi o que, em especial, ocorreu com o conceito da "idealidade da história", de que apenas na sua obra póstuma, "A Idéia da História" [1946], ele se ocupará extensamente e de maneira definitiva. A relevância do conceito reside em que ele constitui, no final das contas, o pressuposto de toda a doutrina collingwoodiana do conhecimento histórico, inclusive da noção de reatualização.
Contudo, como Collingwood alertou na "Autobiografia" (1939), a teoria da reatualização não foi deduzida automaticamente da idealidade da história; e ambas só se associaram em sua mente num estágio posterior, os anos 30, do seu percurso intelectual. Ademais, em "A Idéia da História", ele fará questão de frisar haver chegado à idealidade da história exclusivamente por meio da sua própria experiência de historiador da ocupação romana na Inglaterra, consoante a tendência a acoplar a prática historiográfica e a reflexão epistemológica, infelizmente ainda hoje rara, exceto na obra de um [Henri-Irénée] Marrou [1904-1977] ou de um Paul Veyne [1930].
De maneira resumida, a idealidade da história significa que o objetivo da atividade historiográfica não é um objeto real, como o das ciências naturais ou como pode ser o de outras ciências humanas, como a antropologia (ao estudar uma sociedade no terreno) ou a economia (ao analisar uma recessão no período mesmo em que ocorre), mas um objeto ideal, cuja característica básica é a de se apresentar à observação sob a forma de vestígios ou resíduos de um objeto que outrora também fora real. Daí que, no percurso intelectual de Collingwood, a teoria da idealidade da história só tenha podido surgir após a segunda metade dos anos 20, quando ele consumava sua ruptura com o realismo e com o empirismo da filosofia inglesa predominante na época, particularmente na sua Universidade de Oxford.
Aqui nós nos limitaremos a examinar como nos seus primeiros escritos Collingwood chegou ao cerne do conceito.

O atual e o ideal
Num ensaio intitulado "Algumas Perplexidades acerca do Tempo" (1926), Collingwood abriu a vereda que o levaria até lá, partindo da distinção entre o ser atual e o ser ideal.
O ser ideal consistia em pensamento, mas não pensamento real ou existente; e nessa categoria achavam-se tanto o futuro, "possível, mas não necessário", quanto o passado, "necessário mas não possível".
Só o presente como "união do presente e do passado" é real, contendo ademais "dois elementos (necessidade e possibilidade), cada um dos quais isoladamente caracteriza um ser que não é real, mas ideal, o passado e o futuro respectivamente". Por conseguinte, "o passado como passado e o futuro como futuro não existem, mas são puramente ideais". Somente "o passado que vive no presente e o futuro que germina no presente são reais e, de fato, constituem o próprio presente".
Sem a atividade do espírito, não haveria nem passado nem futuro, apenas o presente.
"O passado como passado e o futuro como futuro, em oposição à sua fusão no presente, só existem para o espírito e apenas dessa maneira."

O passado em si
Como passado, o passado pode ser evocado, por um lado, mediante a recordação, por outro, mercê da atividade historiográfica, mas, sob ambas as formas, trata-se de destramar o passado do presente em que, transformado, ele se prolonga, "retransformando-o pelo pensamento naquilo que ele havia sido". Não é menos verdade que, nesse texto de 1926, Collingwood ainda paga foro ao realismo filosófico, quando reconhece que só conhecemos o que "realmente existe" e que, por conseguinte, "não podemos realmente conhecer nem o passado nem o futuro", uma afirmação que virá a rejeitar, como veremos a seguir.
A idéia fundamental de "Algumas Perplexidades" foi reelaborada, ainda em 1926, nas "Aulas de Filosofia da História". Se o objeto do conhecimento precisa ter existência real, nem a memória nem a historiografia proporcionam conhecimento do passado em si; e, nesse sentido, constitui um contra-senso o célebre aforisma de Ranke -o de que a história se ocupa em conhecer "o que propriamente ocorreu".
Quanto à memória, não pode conhecer devido a que seu caráter imediato é a sua única garantia, como também ao fato de que a memória limita-se ao passado pessoal. Quanto à historiografia, seu caráter mediato a torna dependente das fontes históricas, cujas proposições verificadas pela crítica histórica podem ser mutuamente excludentes.
Contudo, e nesse ponto Collingwood avança de maneira substancial relativamente às conclusão de "Algumas Perplexidades", tais limitações do acesso ao passado não significam que a história seja uma ilusão e que a historiografia, uma atividade insensata. O passado, com efeito, não tem existência atual, mas sua natureza ideal não representa, a seu ver, um empecilho para que possa ser estudado.
Em 1928, no texto intitulado "Linhas de uma Filosofia da História", Collingwood refina as formulações anteriores e também, como assinalou W.J. van der Dussen, oferece uma solução ao problema que elas lhe apresentavam, ao introduzir a distinção entre coisas e eventos. Uma determinada montanha, por exemplo, pode ser ao mesmo tempo ideal (a montanha que recordo) e real (a montanha que contemplo agora). Elas são a mesma, mas, do ponto de vista da história, só a primeira importa.
Outro exemplo collingwoodiano. A música é também ideal (a canção que ouvi há algum tempo) e real (a canção que ouço agora). Contudo o historiador da música interessado numa sinfonia de Beethoven não se contentará, à maneira do simples melômano, em ouvi-la em versão atual, mas procurará também escutá-la à maneira pela qual era executada por uma orquestra do tempo do compositor. A conclusão se impõe: "O "sine qua non" para escrever a história da música consiste em ter essa música do passado reatualizada no presente".

Flanco vulnerável
Da mesma maneira, para "escrever a história de uma batalha, devemos repensar os pensamentos que determinaram suas várias fases táticas; precisamos ver o terreno da contenda consoante o viram os mandantes que a contestaram e tirar da topografia as conclusões que eles tiraram; e assim por diante" -o que não implica evidentemente que a batalha tenha sido reproduzida tal como se verificou, de vez que nenhum historiador está apto a conhecer o passado como realmente foi.
Collingwood descobriu assim, graças à idéia da idealidade da história, o flanco vulnerável da rejeição realista do conhecimento histórico, a qual redundaria, a seu ver, em reputá-lo impossível. Para ele, o conhecimento do passado só é impossível sobre a base de "uma teoria realista comum do conhecimento". Se o conhecimento é apreensão, percepção de algo -digamos, a batalha de Maratona-, o conhecimento histórico é inviável, uma vez que, havendo ocorrido há 2.400 anos, já não há nada que apreender ou perceber. Mas, desde que se descarte o paradigma realista -e só assim-, o conhecimento do passado torna-se factível.

Evaldo Cabral de Mello é historiador e autor de "Um Imenso Portugal" (ed. 34) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks).


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