São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

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O gol fatal

MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pier Paolo Pasolini sempre foi um apaixonado por futebol e, segundo os que o viram jogar, era um bom meio-campista nas horas vagas. Porém, neste artigo que o "Mais!" publica, escrito meses depois da Copa de 70 [no "Il Giorno", em 3/1/1971], o esporte serve principalmente de pretexto para que o autor de "Teorema" se exercite em sua posição mais característica: a de atacante intelectual. Adversário número um da intelligentsia italiana e dos valores pequeno-burgueses que iam moldando a vida no país (para usar o jargão típico daqueles anos), Pasolini não poupava ninguém dos seus petardos.
No artigo em questão, a primeira vítima de suas críticas é o próprio discurso dominante no meio universitário dos anos 70, que pretendia fazer ciência sobre qualquer coisa que lhe aparecesse pela frente, das histórias em quadrinho ao saco de batatas fritas, da revolução proletária à moda, transformando-se ele mesmo em modismo. Ou seja, ao imitar o estilo acadêmico e criar conceitos como "podema", Pasolini está longe de se converter ao método semiótico: ao contrário, seu objetivo é golpear o racionalismo transformado em jogo vazio, em pura técnica, que ele via expandir-se por todos os campos da experiência como uma ameaça aos recursos vitais dos indivíduos -e de que o discurso acadêmico seria apenas um sintoma.
É nesse movimento de ataque à mentalidade tecnocrática que entra em campo a distinção pasoliniana entre o "futebol de prosa", praticado pelos europeus, e o "futebol de poesia", característico de brasileiros e não-europeus em geral. Enquanto o primeiro seria voltado exclusivamente para os resultados e regido pela observância às regras do sistema, o segundo se basearia sobretudo na capacidade de invenção de cada jogador, resultando o gol de uma subversão prazerosa do código, e não da "otimização dos podemas".
Portanto, segundo Pasolini, na famosa final disputada por Brasil e Itália em 1970, estavam em campo não só dois times com estilos diferentes de jogar, o prosaico e o poético, mas também dois modelos distintos de sociedade: o europeu, engessado pelas regras do sistema (capitalista, subentende-se), e o latino-americano ou terceiro-mundista (para continuar com o jargão da época), supostamente mais imune ao sistema e capaz de afirmar-se pela subversão das regras.
É provável que, se Pasolini tivesse conhecido melhor a realidade brasileira e o tipo de capitalismo que prosperou nos trópicos, visse menos poesia no país. Mas, como termo de contraste em relação ao modelo europeu, a metáfora-Brasil era eficaz naquele momento e atingia em cheio o público italiano, ainda abalado pela derrota.
Em novembro deste ano, os italianos e a imprensa internacional lembrarão os 30 anos do assassinato de Pier Paolo, que não teve tempo de assistir à conversão dos brasileiros ao "futebol de prosa".


Maurício Santana Dias é professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


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