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O gol fatal
MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Pier Paolo Pasolini sempre foi um apaixonado por futebol e, segundo os
que o viram jogar, era um bom meio-campista nas horas vagas. Porém,
neste artigo que o "Mais!" publica, escrito meses depois
da Copa de 70 [no "Il Giorno", em 3/1/1971], o esporte serve principalmente de pretexto para que o autor de "Teorema" se exercite em sua posição
mais característica: a de atacante intelectual. Adversário número um da intelligentsia italiana e dos valores pequeno-burgueses que iam moldando a vida
no país (para usar o jargão típico daqueles anos), Pasolini não poupava ninguém dos seus petardos.
No artigo em questão, a primeira vítima de suas críticas é o próprio discurso
dominante no meio universitário dos anos 70, que pretendia fazer ciência sobre qualquer coisa que lhe aparecesse pela frente, das histórias em quadrinho
ao saco de batatas fritas, da revolução proletária à moda, transformando-se
ele mesmo em modismo. Ou seja, ao imitar o estilo acadêmico e criar conceitos como "podema", Pasolini está longe de se converter ao método semiótico:
ao contrário, seu objetivo é golpear o racionalismo transformado em jogo vazio, em pura técnica, que ele via expandir-se por todos os campos da experiência como uma ameaça aos recursos vitais dos indivíduos -e de que o discurso acadêmico seria apenas um sintoma.
É nesse movimento de ataque à mentalidade tecnocrática que entra em
campo a distinção pasoliniana entre o "futebol de prosa", praticado pelos europeus, e o "futebol de poesia", característico de brasileiros e não-europeus
em geral. Enquanto o primeiro seria voltado exclusivamente para os resultados e regido pela observância às regras do sistema, o segundo se basearia sobretudo na capacidade de invenção de cada jogador, resultando o gol de uma
subversão prazerosa do código, e não da "otimização dos podemas".
Portanto, segundo Pasolini, na famosa final disputada por Brasil e Itália em
1970, estavam em campo não só dois times com estilos diferentes de jogar, o
prosaico e o poético, mas também dois modelos distintos de sociedade: o europeu, engessado pelas regras do sistema (capitalista, subentende-se), e o latino-americano ou terceiro-mundista (para continuar com o jargão da época),
supostamente mais imune ao sistema e capaz de afirmar-se pela subversão
das regras.
É provável que, se Pasolini tivesse conhecido melhor a realidade brasileira e
o tipo de capitalismo que prosperou nos trópicos, visse menos poesia no país.
Mas, como termo de contraste em relação ao modelo europeu, a metáfora-Brasil era eficaz naquele momento e atingia em cheio o público italiano, ainda
abalado pela derrota.
Em novembro deste ano, os italianos e a imprensa internacional lembrarão
os 30 anos do assassinato de Pier Paolo, que não teve tempo de assistir à conversão dos brasileiros ao "futebol de prosa".
Maurício Santana Dias é professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
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