São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997.

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No Hell's, o principal lugar de culto à música tecno em São Paulo, a noite começa quando a das outros clubes já chegou ao fim

Madrugada no inferno

MAURICIO STYCER
da Reportagem Local

Marlene Bergamo/Folha Imagem
"Cluber" dança no Hell's, clube noturno na esquina de Augusta com Estados Unidos, em São Paulo


São 4h da manhã de domingo. Para a grande maioria dos paulistanos, a noite de sábado já acabou ou está chegando ao fim. No coração dos Jardins, bairro de classe média alta de São Paulo, na rua Estados Unidos, esquina com rua Augusta, a noite ainda nem começou -e será uma noite tecno, uma noite que só vai terminar às 11h da manhã de domingo.
Nessa movimentada esquina da cidade fica o Columbia, um misto de bar, restaurante e pista de dança que, normalmente, costuma atrair jovens de classe média apelidados, por conta de seus hábitos conservadores de consumo e vestuário, de mauricinhos e patricinhas.
Às 4h da manhã de domingo, os últimos remanescentes dessa tribo já deixaram o Columbia. No mesmo lugar, mas num ambiente diferente, uma espécie de subterrâneo do Columbia, vai acontecer a celebração da música e da atitude tecno -uma celebração nem sempre pacífica, como demonstra a batida policial ocorrida do último domingo, que terminou com a passagem de cerca de 400 participantes da festa pela delegacia.
4h30
Garotos maquiados, garotas com dragões tatuados no braço, a maioria vestindo camisetas e calças pretas, começam a se aglomerar numa porta lateral do Columbia, contígua à entrada do 78º Distrito Policial da cidade.
Marcada para começar às 4h30, a noite conhecida como Hell's Club não terá início antes das 5h. Além dos que se amontoam à porta, muitos aguardam a abertura do Columbia folgadamente recostados em carros policiais estacionados em frente ao 78º DP.
Conseguir passar pela portinha do Columbia e chegar à pista de dança não é fácil. A aglomeração é grande porque, além dos que pagam ingresso para entrar (R$ 20), há muitos convidados -e há muitas listas de convidados.
Ao tentar entrar, a reportagem da Folha descobre que não basta ter o nome listado na porta. ``Você está na lista de quem?'', pergunta o segurança -enorme, como todo segurança de porta de boate.
A confusão na porta aumenta à medida que o segurança perde tempo até achar o nome de cada convidado na respectiva lista onde ele afirma que o seu nome deve constar. Há ``a lista do Pil'' (o organizador da noite), há a ``lista do Mau Mau'' (o DJ), entre outras.
5h15
A noite do Hell's (inferno, em inglês) existe já há dois anos e meio. É um dos principais pontos de celebração do culto à música tecno -uma música que incomoda o não-iniciado pelo barulho que produz (semelhante a um bate-estaca) e pela monotonia melódica.
``É uma música repetitiva mesmo. É uma música com muitas interferências, frequências moduladas, ondas, que vão mexendo com a cabeça. Mas só se a pessoa estiver a fim de ouvir'', explica Maurício Bischain, o DJ Mau Mau.
É ele quem comanda, de uma cabine no mezanino, as madrugadas no inferno, no Columbia. Suas escolhas afetam o humor da pista de dança. Uma música mais pesada, em que o ritmo de batidas por minuto é muito superior a 130, provoca gritos de contentamento.
``A música começa sempre de forma leve e vai, aos poucos, ficando mais agressiva. Termino sempre com algo superleve, que é para a pessoa relaxar'', diz Mau Mau.
O Hell's Club se passa num ambiente que tem capacidade para 400 pessoas. No lugar há um pequeno hall de entrada, uma enorme pista de dança, um palco, onde ocorrem shows, um bar, dois banheiros e uma salinha.
Quando não há show, muitas pessoas dançam no alto do palco, viradas para a pista de dança, como se estivessem se apresentando. Mas ninguém assiste a esse suposto espetáculo. No Hell's, quase todo mundo dança sozinho -e ninguém olha para ninguém.
É uma cena estranha, para quem está acostumado a festas embaladas por outros tipos de música, nas quais as pessoas dançam em duplas, trios ou em rodas.
No Hell's, a dança é um rito individual. Para reforçá-lo, muitos dançam de óculos escuros, num lugar que já é naturalmente bem escuro. Também há os que dançam parados, isto é, com os pés no chão, apenas mexendo lentamente os quadris.
``É uma viagem individual mesmo. A música mexe muito com a cabeça. Acaba sendo uma espécie de terapia'', diz o DJ Mau Mau.
6h
Embora não seja uma noite dedicada ao público gay, o Hell's Club é frequentado majoritariamente por homens. Na semana retrasada, de cada dez pessoas que dançavam na pista, oito eram homens.
Por volta das 6h, a pista está lotada. Empolgado, o DJ Mau Mau manda sinais para quem dança. Parte do público responde, levantando o braço.
Alguns homens dançam sem camisa, exibindo corpos ``trabalhados'' em academias de ginástica e musculação. São conhecidos no mundo gay como ``barbies''.
6h20
Numa cena incomum na noite do Hell's, um casal formado por um homem e uma mulher dança e se beija apaixonadamente no meio da pista. Ninguém parece se incomodar -ou notar.
``Não achava que fosse dar tão certo fazer uma noite com uma proposta direcionada para o underground, começando às 4h30'', conta, feliz, o ``promoter'' Pil Marques, que promove festas há cinco anos. O que diferencia o Hell's Club? ``Aqui, a prioridade é a música'', diz Pil.
6h30
No palco, a banda Habitants, uma das pioneiras do tecno no Brasil, dá início ao seu show lisérgico. O DJ Mau Mau faz uma pausa e arruma os seus discos de vinil.
A música tecno é um produto 100% tecnológico, fruto do uso intensivo de sintetizadores, mas os principais DJs tecno recorrem ao ultrapassado disco de vinil para animar as festas.
``Se o cara usa CD é porque está tocando música consagrada. Material de vanguarda, underground, é difícil de ver em CD. As gravadoras lançam em vinil e, se dão certo, saem em CD'', explica Mau Mau, 28 anos, há dez animando festas.
7h
A pista do Hell's está lotada. O tum-tum-tum do som bate-estacas chega a incomodar os ouvidos. No hall de entrada, alheios à confusão, dois garotos dormem, encostados um no outro -como se estivessem num banco de praça.
7h15
Chegam duas drag queens, homens fantasiados de mulher. Ficam um pouco no bar e logo se dirigem aos banheiros.
Com as portas permanentemente abertas, não dá para saber qual é o banheiro masculino e qual é o feminino -e nenhum usuário parece se preocupar com isso.
Entre homens e mulheres, a drag queen Dalila Dietrich dá o seu recado no banheiro: ``Não sou uma drag queen. Sou uma `transfor queen', uma mistura de transformista com drag queen. Não sou tão exagerada quanto uma drag queen, nem faço programa, como um travesti. `Transfor queen' é uma coisa do futuro'', explica.
Dalila Dietrich conta que não frequentava o Hell's Club havia meses, desde que um incidente policial colocou a noite do Columbia nas páginas dos jornais.
Conhecido, desde a sua inauguração, no início dos anos 90, como ``Delegacia Manhattan'', por conta de sua vizinhança chique, o 78º DP não é um vizinho discreto.
No último dia 10 de novembro, policiais do 78º DP ocuparam o Hell's, levando cerca de 150 frequentadores para a delegacia. Na semana passada, a cena se repetiu.
Os policias afirmam que as ações se justificam diante de denúncias de que haveria tráfico de drogas no Hell's, em particular tráfico de Ecstasy -droga consumida majoritariamente em clubes de dança.
``A música tecno é legal, em si, com ou sem Eecstasy. Na Europa, já há lugares de rock em que as pessoas usam Ecstasy'', diz Mau Mau.
8h30
A entrada do Hell's é fechada às 8h. Lá dentro, a maioria das pessoas dança, mas algumas dormem, no chão. Na rua, ainda há pessoas aglomeradas ao redor da porta, tentando entrar sem pagar. O sol tenta aparecer. O vendedor de cachorro-quente ainda está a postos. A noite começa a acabar.

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