São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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Comissões de frente

Jean-Claude Bernardet fala de "Brasil em Tempo de Cinema", lançado em 67 e agora reeditado, e ataca os subsídios à produção de filmes

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

A classe média foi ao povo." Com essa sentença, o crítico Jean-Claude Bernardet fustigou o cinema brasileiro e seus realizadores em 1967, com "Brasil em Tempo de Cinema".
O livro, agora reeditado pela Cia. das Letras, analisa a produção nacional feita entre os anos de 1958 e 1966, para extrair dela uma tese sem rodeios: os filmes nacionais eram expressão de "uma classe média à cata de raízes, que quer representar na tela seu marginalismo, mas sem se colocar problemas a si própria e sem revelar sua má consciência".
Como explica na entrevista a seguir, ele reprova hoje o "conceito tosco" de classe média que usou, mas considera intacta sua observação do personagem Antônio das Mortes, de Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, a quem dedica o livro, "quase uma autobiografia".
"Essa inter-relação que pode haver entre mim e o personagem -o personagem ajudando a me compreender, eu ajudando a compreender o personagem- é uma dimensão que até hoje eu prezo", afirma.

 

FOLHA - A afirmação de que "a história humana do cinema brasileiro é um museu de personalidades amarguradas e frustradas" ainda é válida para os dias de hoje?
JEAN-CLAUDE BERNARDET
- Alguns se deram bem. Mas que tem muita gente frustrada, tem. Não vou citar nomes. Há uma estrutura que deveria ser questionada, que é o fato de o cinema brasileiro ser subsidiado. Às vezes acho que isso simplifica o diálogo com o público. Quando um filme vai para as salas, a produção está paga. O filme não é feito para angariar espectadores, mesmo que o desejo do cineasta seja esse.

FOLHA - Além do desapego pelo público, o fato de a produção do cinema brasileiro ser subsidiada não a reveste também de certo oficialismo?
BERNARDET
- Para poder entrar nas chamadas leis de incentivo, você precisa, antes, ter o aval de comissões. De forma que o primeiro cliente do cineasta são as comissões. Não há isso de se dirigir a um produtor. Ele se dirige primeiro a uma comissão -da prefeitura, do Estado, da Federação, do ministério, da Petrobras.
Isso certamente deixa marcas, não é indiferente. Quais marcas precisamente, eu não sei dizer. Mas é impossível que não deixe. Por outro lado, é um assunto tão delicado que as pessoas preferem não falar sobre ele.
Como a política consiste em formar as comissões com pessoas da profissão, isso leva a que colegas julguem colegas. Por mais que se queira ser isento de absolutamente tudo, é difícil pensar que amizades, desavenças, competições não influenciem alguns resultados.

FOLHA - O fato de seu livro manter-se atual, não obstante seus próprios méritos, indica também que o cinema brasileiro não solucionou as precariedades que já tinha há quatro décadas?
BERNARDET
- A atualidade ou não do livro eu deixo inteiramente a cargo dos leitores. Para mim, é algo passado. Nunca mais usaria esse conceito de classe média que usei aqui, que é muito tosco.
Depois vieram trabalhos do [sociólogo] Sérgio Miceli sobre a questão da intelectualidade, trabalhos muito mais detalhados do que esse conceito tosco que usei.
Li Pierre Sorlin, a "Sociologia do Cinema", a questão de não ver a classe média de forma tão uniforme, homogênea, de perceber que dentro dela há tensões, que os intelectuais, os artistas constituem certas tensões. Hoje, seria muito mais sofisticado.
Mas o livro teve uma função polêmica. Não deixou de repercutir, de inquietar as pessoas, tanto que inquieta até agora.

FOLHA - O livro é dedicado a Antônio das Mortes, de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", que, na sua opinião, "encerra uma fase do cinema brasileiro e inaugura uma nova". Desde então, houve outro personagem equivalente, outro ponto de inflexão no cinema brasileiro?
BERNARDET
- Não. Um personagem, propriamente dito, não.

FOLHA - O cineasta Eduardo Coutinho afirma, em nota introdutória desta reedição, que realizou "Cabra Marcado para Morrer" como resposta a "Brasil em Tempo de Cinema". Essa declaração respalda sua idéia de que o crítico deve ser "obrigatoriamente combativo"?
BERNARDET
- É o auge da minha carreira. Coutinho e eu não somos amigos, mas gosto muito dele. Essa declaração mostra que houve diálogo intenso entre nós, por meio de nossos trabalhos. Foi o que me comoveu tanto.

FOLHA - O sr. previu, no livro, que o cineasta brasileiro teria de "mudar de profissão ou fazer cinema na base do heroísmo ou produzir obras comerciais, até que consigamos conquistar pelo menos 51% do mercado nacional para o produto nacional".
BERNARDET
- (Interrompendo) Todos nós tínhamos essa visão. Isso era um chavão da época.

FOLHA - Na nova conjuntura econômica da indústria do cinema, faz sentido falar em cinematografias nacionais?
BERNARDET
- De alguma forma, faz. Mesmo que haja co-produções, que não se saiba muito bem de onde vêm os capitais, existe um cinema norte-americano, um cinema chinês, um cinema indiano. No caso do Brasil, sem dúvida, isso se dá fora da carga ideológica do nacionalismo que havia naquela época.

FOLHA - Quando afirma que Glauber Rocha, ao fazer "Barravento", não era consciente da verticalidade de sua obra, os sr. quer dizer que ele era menos genial do que se julgou posteriormente?
BERNARDET
- Não. Ultrapassar as previsões do realizador é quase condição da grande obra. Não quis dizer de modo nenhum que ele seria menos genial do que é.

FOLHA - Se Antônio das Mortes não encontra paralelo na produção posterior, isso significa que Glauber Rocha permanece sendo o mais importante cineasta brasileiro?
BERNARDET
- Há um aspecto nessa pergunta de que não gosto. Ela implica uma classificação. Não acho Bressane inferior a Glauber. Não acho "Cabaret Mineiro" [de Carlos Alberto Prates] inferior a "Terra em Transe". Acho justamente que se deve evitar isso. E, no caso específico, evitar também o culto à personalidade.

FOLHA - Mas o cinema não vive de cultos à personalidade?
BERNARDET
- Sim, mas não necessariamente eu. É claro que há culto de atores, de diretores, mas não acho isso bom. Inclusive, prefiro os filmes aos diretores.


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