São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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Devastadoramente capaz

Biografia "Lacerda na Guanabara", de Maurício Dominguez Perez, mostra a trajetória do político nos anos 1960

CESAR MAIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Blowback" é uma expressão usada por alguns politólogos para definir uma ação política que aponta numa direção e produz um resultado inesperado e contrário ao objetivo inicial.
Em grande medida, foi o que ocorreu com Carlos Lacerda a partir de sua candidatura a governador da Guanabara, em 1960. Jogava tudo, mesmo antes, na desestabilização dos governos do PSD e do PTB. E olhava para a sua meta: a eleição presidencial de 1965.
Assumiu o governo da Guanabara promovendo reformas inaugurais na administração pública brasileira, na área fiscal e na área administrativa. Com o auxílio de Aliomar Baleeiro [1905-78], deputado constituinte na Guanabara, jurista especializado em finanças públicas, estruturou um sistema orçamentário, tanto nas relações entre o Executivo e o Legislativo como na implantação, pela primeira vez no Brasil, do orçamento-programa.
Essas inovações construíram a base do que se chama hoje de responsabilidade e transparência fiscais, que pautaram as reformas durante o regime militar até a Constituição de 1988, à qual foram incorporadas.
Lacerda implantou o acesso geral ao serviço público por concurso. Construiu um amplo arco de fundações, autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, na busca da descentralização, agilidade e eficiência na administração pública, que terminaram sendo a referência do governo Geisel e de outros até recentemente.
Introduziu um plano de metas nos moldes de Juscelino Kubitschek, enfatizando a infra-estrutura urbana, econômica e social.
Abriu a discussão sobre a questão das favelas e, quando governo, mudou de posição, saindo de temas como urbanização e acesso a serviços sociais em direção à remoção. São esses dados e fatos que Maurício Dominguez Perez nos traz na melhor biografia sobre Carlos Lacerda ("Lacerda na Guanabara").

Para admiradores e críticos
Melhor por não ser fundamentalista -nem de um lado nem de outro- em relação a um político que tinha uma fronteira nítida entre os que o amavam e os que o odiavam. Melhor porque permite aos admiradores de Lacerda sublinhar suas opiniões. Melhor porque também permite aos críticos dele sublinhar suas opiniões, apesar da diagonal favorável do livro.
Melhor porque o governo Lacerda não caiu do céu, mas surgiu da dinâmica anterior das prefeituras do então Distrito Federal.
Se o quadro político anterior mostrava uma prefeitura manipulada pelos interesses da menor política de clientela, devido à volatilidade dos períodos de governo dos prefeitos escolhidos pelos presidentes, não se pode omitir que a condição de capital e a presença de talentos em todas as áreas, fora e dentro da prefeitura, encheu as gavetas de projetos dos mais diversos campos, muitos deles de excepcional qualidade.
Entravam, mas não saíam das gavetas pela inoperância da máquina municipal a partir da República de 1946.
Um governo estadual eleito para a Guanabara dispunha de um mandato de cinco anos e, com isso, previsibilidade e possibilidade de uma programação de governo em médio prazo.
Para Lacerda, a equação era simples: apenas uma questão de construir uma máquina eficiente, tirar os projetos da gaveta e selecionar os mais adequados à sua visão de governo. As restrições eram a falta de recursos para isso e o tumultuado ambiente político daquele período.
Lacerda conviveu com quatro presidentes: Jânio Quadros, os primeiros-ministros [Tancredo Neves, Francisco de Paula Brochado da Rocha e Hermes Lima], João Goulart e Castello Branco. Seus conflitos maiores concentraram-se entre o início de 1963, quando o plebiscito restabeleceu o presidencialismo, e março de 1964, quando veio o golpe militar.
Com Jânio, o desgaste das relações ocorre em um período curto. Talvez porque Lacerda, em seu íntimo, não se imaginava como candidato dele em 1965 ou porque realmente temesse que um golpe de Jânio eliminasse aquela eleição.
O risco político que cercou o Brasil a partir da renúncia de Jânio, visto pelas lentes norte-americanas, aproximou Lacerda de John Kennedy e o transformou em seu interlocutor. A partir daí vêm os recursos da AID, da Aliança para o Progresso, do Bird, do BID e do Fundo do Trigo.
Perez demonstra que, embora importantes, eles não explicam a amplitude das realizações do governo Lacerda.
Uma restrição a mais é a força centrípeta do temperamento de Lacerda, que terminou por agregar obstáculos aos que já existiam, em ambiente político polarizado entre trabalhistas-comunistas e udenistas-lacerdistas.

A batalha da comunicação
Um comunicador como Lacerda, fundador ainda nos anos 1940 do discurso coloquial, sem fortes entonações, em que a série de sinonímias substituía com muito maior força o tom da voz, terminou perdendo a batalha da comunicação e terminou carregando, ao longo do tempo, a imagem de repressor dos pobres -mendigos e favelados- que lhe lançava a oposição.
A leitura atenta das inúmeras referências analisadas por Perez permite voltar ao efeito "blowback". Olhando certamente para 1965 -e para isso teria que sair do governo seis meses antes-, Lacerda estabeleceu um plano de metas que não poderia realizar em seu período de governo. Mas serviria para demonstrar ao país o que faria como presidente e as mudanças e reformas que estabeleceria, reconstruindo a máquina pública e usando muito melhor os recursos disponíveis.
Não contava, porém, com que o golpe de mão, abertamente defendido por ele desde a metade dos anos 50, acabasse sendo seu calvário. Principalmente porque Castello Branco, o presidente escolhido pelos militares, se perfilava como lacerdista até 1964.
O plano de reforma econômica e estabilização monetária do governo Castello Branco produziu uma forte recessão, especialmente nos centros urbanos, como o Rio. A queda acentuada do PIB e, com ele, das receitas afundou o governo Lacerda num para-e-anda de obras, prejudicou até o pagamento dos servidores e culminou no atraso efetivo da folha antes das eleições.
A oposição radical de Lacerda ao plano econômico de Roberto Campos-Bulhões é exemplo de sua fúria, que aumentou com o cancelamento da eleição presidencial de 1965.
Quando Lacerda dizia, na campanha de seu sucessor, que o candidato do governo Castello era Negrão de Lima, não estava apenas criando uma figura de retórica. Paradoxalmente, o governo Lacerda ofereceu idéias e métodos ao regime militar em matéria fiscal, administrativa, habitacional (o BNH foi o desdobramento de sua política de habitação) e financeira.
Um regime que em seu início descontinuou as ambições políticas de Lacerda, primeiro pelos fatos econômicos e, depois, pela vontade política, resultando mais tarde em sua cassação.
Os acertos e os exemplos do governo Lacerda estão presentes até hoje, seja em relação ao planejado (linha Amarela, linha Vermelha etc.), seja em relação à máquina profissional herdada até hoje pela Prefeitura do Rio.
Mas também se podem acentuar alguns equívocos estratégicos, como a substituição dos bondes pelos ônibus, apesar de um projeto de metrô existir desde o início dos anos 1950. Talvez a decisão tenha levado em conta o tempo e custos incorporados à sua realização, além da fixação de Lacerda na eleição de 1965.
Da mesma forma, na contramão das grandes cidades do mundo naquele momento, ele confundiu economia com industrialização, debilitando relativamente a dinâmica do Rio como uma cidade de serviços.
Não há melhor qualificação dele do que a encontrada no relatório da CIA de 31/12/1964, citado por Elio Gaspari antes e reproduzido por Perez no final de seu livro e que serve de título a esta resenha: devastadoramente capaz. Leitura insubstituível para quem quiser entender bem e melhor Lacerda, o Rio e o Brasil a partir dos anos 1960.


CESAR MAIA é economista e prefeito do Rio de Janeiro, eleito pelo PFL (atual DEM).

LACERDA NA GUANABARA - A RECONSTRUÇÃO DO RIO DE JANEIRO NOS ANOS 1960
Autor:
Maurício Dominguez Perez
Editora: Odisséia/Lexikon
(tel. 0/xx/21/3212-2600)
Quanto: R$ 45 (320 págs.)



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