São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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NOVOS BRASILIANISTAS
James Green faz a primeira obra histórica panorâmica do homossexualismo no Brasil
Os gays além do clichê e Carnaval

especial para a Folha

O brasilianista James Green, 47, vai lançar em setembro deste ano "Beyond Carnival" (Além do Carnaval), o primeiro livro de um historiador a abordar o homossexualismo masculino no Brasil em perspectiva panorâmica.
Utilizando como fontes arquivos médicos e policiais, jornais alternativos e muitas entrevistas, a pesquisa focaliza as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo desde o final do século 19 até os anos 70, com o surgimento dos primeiros movimentos gays. A obra sairá pela University of Chicago Press, uma das mais importantes editoras acadêmicas norte-americanas sobre o tema.
Como outros brasilianistas da "geração afirmativa", a trajetória de Green mistura vida pessoal e profissional. Em 73, Green fez parte de um comitê de apoio à oposição ao regime militar brasileiro, na Filadélfia (EUA). Depois de conhecer exilados brasileiros, foi para o país, onde morou em São Paulo, entre 76 e 81. Em 78, participou da fundação do Somos, um dos primeiros grupos de apoio aos direitos a homossexuais no Brasil.
De volta aos EUA, começou a fazer pós-graduação, em 88. "Beyond Carnival", seu primeiro livro, é o resultado de sua tese de doutorado, defendida na Universidade da Califórnia. Atualmente, Green ensina história latino-americana na Universidade Estadual da Califórnia, em Long Beach.
Os estudos de gênero são uma das áreas que mais têm crescido entre os brasilianistas nos últimos anos. Segundo Robert Levine, co-editor da "Luso-Brazilian Review", a única revista acadêmica norte-americana especializada no Brasil, 50% dos artigos que ele recebe atualmente têm gênero como tema. A seguir, a entrevista que Green concedeu à Folha.
Folha - É possível definir "homossexual" desde o século 19?
James Green -
O termo "homossexual" foi introduzido no Brasil em 1895, mas antes disso alguns já se viam com uma identidade diferenciada. No Rio da década de 1870, os homens que desejavam ter sexo com outros homens eram conhecidos pejorativamente como "frescos" ou "putos" e claramente se consideravam diferentes de homens que mantinham relações sexuais com mulheres. Alguns desses homens eram efeminados, e esses eram os mais visíveis, especialmente para médicos e juristas que escreveram sobre o assunto. Eles formavam uma cultura semiclandestina no Rio.
Folha - O sr. afirma que, no Brasil, há uma clara distinção entre "ativo" e "passivo", sendo que muitas vezes apenas o último é identificado como gay. Isso é uma particularidade brasileira?
Green -
No Brasil, "ativos" e "passivos" são associados à "masculinidade" e à "feminilidade". Presume-se que os homens que agem masculinamente têm de penetrar o seu parceiro, e o contrário ocorre com os homens efeminados, que devem ser penetrados. No entanto a minha pesquisa indica que não havia só esse padrão. Ou seja, no século 19 havia homens efeminados que gostavam de penetrar seus parceiros, e "ativos" que gostavam de ser penetrados. O estereótipo social tem categorizado o modelo ativo e passivo de uma forma rígida e nunca inteiramente de acordo com a realidade. Nos anos 50, esse modelo começou a ser quebrado mais abertamente à medida que homens que tiveram sexo com outros homens saíram dos papéis "ativo" e "passivo", identificando-se como "entendidos", "gays" ou "homossexuais". A mesma noção ativo-passivo prevalece no restante da América Latina.
Folha - O sr. usa duas imagens para definir o que seria o paradoxo da questão homossexual no Brasil: a do Carnaval, como momento de certa tolerância, e a da violência dirigida contra os gays. Qual é a mais próxima da realidade?
Green -
Ambas fazem parte da realidade brasileira. Eu diria que existe outra realidade entre o Carnaval e a violência: a subcultura, o mundo que os homens que gostam de homens ou as mulheres que gostam de mulheres criaram para se socializar, se divertir, construir redes de apoio, encontrar parceiros sexuais etc. Esse mundo envolve tanto clubes, bares gays e grupos sociais, como também organizações políticas que se formaram desde 1978 para mudar o preconceito contra a homossexualidade. É um mundo complexo, criado para a sobrevivência e para permitir a integração.
Folha - De que forma os gays no Brasil são divididos por raça e classe social? Eles reproduzem a estrutura da sociedade brasileira?
Green -
Sem dúvida. Embora existam algumas vezes contatos entre raça ou classe baseados num desejo mútuo ou em interesses socioeconômicos, no caso de michês e travestis, o mundo gay está inserido dentro das divisões sociais e raciais da sociedade brasileira.
Folha - Qual foi o período da história em que os gays sofreram mais perseguição no país?
Green -
Durante a ditadura militar, sobretudo no período Médici (1969-74), quando os grupos gays e lésbicos estavam surgindo no mundo, era impossível organizar algo similar no Brasil, por causa da repressão. Além disso, os anos 80, quando a Aids atingiu o país, e as pessoas não sabiam exatamente o que a doença era, foram um momento difícil para os gays. Durante esse período, setores da direita atacavam os gays, e houve um aumento de assassinatos e violência.


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