São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003 |
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O historiador alemão Heinrich August Winkler afirma que o unilateralismo da era Bush é um "perigo" para o Ocidente e diz que o continente precisa agir de forma clara e imediata EUROPA, ano zero
José Galisi Filho
Ao contrário dos franceses, os alemães, desde
Adenauer [chanceler de 1949 a 1963], mantiveram uma fidelidade incondicional aos interesses militares americanos no centro do continente durante a Guerra Fria. Depois da Queda do Muro,
em 1989, a primeira administração Bush reconhecia na
Alemanha reunificada uma "parceria na liderança" sob
a égide da Otan [aliança militar ocidental, liderada pelos
EUA]. O democrata Clinton tomava a economia social
alemã como modelo em sua campanha eleitoral em
1992, e, finalmente, a participação militar alemã em Kosovo em 1999, a primeira no exterior desde a Segunda
Guerra Mundial, consolidou aparentemente um sistema de defesa transatlântico que viria abaixo depois do
11 de Setembro.
A história dessa amizade chegou ao fim depois da intervenção americana no Iraque e da última campanha eleitoral alemã em setembro passado, que reelegeu o chanceler Gerhard Schroeder. A posição irredutível da Alemanha em não participar do conflito precipitou, nos últimos meses, uma guerra diplomática entre Berlim e
Washington numa escalada de desaforos e constrangimentos, reanimando ressentimentos adormecidos entre americanos e alemães, que pareciam superados havia muito no pós-guerra. As águias de Bush não apenas
definiram um "eixo do mal", mas, escudados pela imprensa republicana, reservaram aos franceses e alemães
o rótulo de "eixo da covardia" ("New York Post").
No auge dessa ofensiva verbal, o secretário de Defesa
Donald Rumsfeld desdenhou a "Velha Europa" diante
da "Realpolitik" de Washington.
Na esteira dessa guerra, as respostas intelectuais ainda
parecem ofuscadas pelo pragmatismo da Doutrina
Bush [conjunto de diretrizes unilaterais de política externa, anunciadas em 2002 pelo governo dos EUA, que
enfatizam sobretudo a necessidade de agir preventivamente contra Estados hostis e grupos terroristas, mesmo sem apoio internacional], que pretende levar até as
últimas consequências um projeto hegemônico que já
ameaça os europeus. "A Doutrina Bush é um ato revolucionário, do qual os europeus ainda não perceberam
as consequências." Essa é o opinião do mais importante
historiador alemão da atualidade, Heinrich August
Winkler, autor do tratado em dois volumes "O Longo
Caminho para o Ocidente" (C.H. Beck Verlag, 2000),
que descreve a normalização da Alemanha no sistema
ocidental no pós-guerra numa perspectiva social-democrata. Winkler é professor titular da cadeira de história contemporânea na Universidade Humboldt, em
Berlim, e recebeu o Mais! para discutir o futuro da parceria transatlântica e os limites da posição européia.
Tanto Schroeder quanto Bush vieram da província para o centro do poder sem nenhuma experiência em política internacional e fazem desta um instrumento de política interna. Bush tomou o ataque de Schroeder à intervenção no Iraque durante a última campanha eleitoral como questão pessoal. Como o sr. vê essa constelação de acentos pessoais numa questão-chave para o futuro da aliança transatlântica? De uma perspectiva histórica a longo prazo, prefiro acreditar que isso será apenas uma mera nota de rodapé nesse diálogo. Acentos pessoais não são duradouros nessa escala, mas seria particularmente desastroso para essa relação se as idiossincrasias de políticos e intelectuais persistirem não naquilo que nos vincula, mas no que nos diferencia. E por que então o sentimento antiamericano é particularmente tão disseminado em intelectuais e em vastas camadas da população? O antiamericanismo está disseminado no resto do mundo, não apenas na Alemanha. Não acho que ele seja tão intenso como se afirma. Existe, sim, na Alemanha uma esquerda tradicional anticapitalista, com sua tradicional imagem de inimiga dos EUA. Há também na Alemanha uma direita radical e nacionalista contra a americanização de nosso cotidiano. Ambas são minorias inexpressivas do espectro político, pois o nosso cotidiano é americanizado. Acredito que o movimento da sociedade civil parte, na verdade, da distinção de que o governo Bush não representa a sociedade americana como um todo. Aqueles que afirmam que os protestos em massa contra a Guerra do Iraque são expressões desse antiamericanismo se enganam, pois se trata de um sentimento legítimo pela violação clara do direito internacional por parte da administração Bush. A maneira pela qual o governo americano tratou seus parceiros e a ONU é inaceitável, perigosa e exige de nós, europeus, respostas claras e imediatas. O historiador inglês Eric Hobsbawm afirmou recentemente que os EUA se vêem na posição única de consolidar, finalmente, um projeto hegemônico duradouro no século 21 por meio da divisão e enfraquecimento dos parceiros. O que significa essa hegemonia a longo prazo? A teoria e a prática do unilateralismo americano colocam em xeque de maneira radical o princípio de uma "comunidade de interesse ocidentais". Um Ocidente que acredita poder prescindir de seus valores normativos não é mais um Ocidente em sua definição. Há, de fato, nos pensadores neoconservadores, nas assim chamadas "águias", um projeto de hegemonia "think tanks", que já estava em gestação desde a primeira administração Bush e atingiu sua massa crítica depois do 11 de Setembro. Trata-se da clássica divisa dos antigos impérios: "Dividir para imperar". Caberia então à Europa insistir nesse conceito normativo de Ocidente como uma contradição em si, independentemente de ela poder ou não refrear, agora, esse impulso, assumindo o papel de defesa do direito internacional pelo multilateralismo, sem excluir a possibilidade de intervenções humanitárias. Os europeus deveriam se empenhar em incrementar o diálogo com as forças políticas multilaterais da sociedade americana e desenvolver, simultaneamente, uma estratégia de autodefesa que os torne menos dependentes dos EUA. Normalmente, a vitória militar significa uma vitória política. Os EUA ganharam o conflito militar, mas não ainda do ponto de vista político, se é possível afirmar que ganharão. As objeções européias à intervenção americana não foram apenas normativas do ponto de vista do direito internacional, pela falta de legitimação do Conselho de Segurança, mas em razão da realidade. Os neoconservadores de Washington imaginam poder criar no Oriente Médio um cinturão democrático, o que, para nós, europeus, é uma visão anacrônica e irreal. O cálculo desse cenário pós-guerra dos conservadores parte da premissa de uma "ocidentalização" da região, o que para nós é apenas um "wishfull thinking". A idéia de um Iraque como um dominó democrático é uma grande ilusão, pois as forças políticas locais dominantes não são os políticos exilados, mas os fundamentalistas xiitas. Se eles tomaram o poder em uma eleição livre, esse cálculo fracassa. Mas esse cálculo também fracassa se os americanos adiarem a constituição de um governo democrático. Os americanos não podem correr o risco de aceitar um vitória dessas forças. O mais provável seria então um efeito dominó xiita reverso. E, se essa estratégia fracassar, nós, europeus, não temos motivos para sarcasmo, pois esse enfraquecimento da posição americana também seria perigoso para nós. Portanto, trata-se de reencontrar, dentro da aliança atlântica, um eixo de identidade. Quais são então as fronteiras culturais da expansão dos Estados Unidos? A Europa está impregnada de sentimentos culturais comuns e também tradições jurídicas de séculos de conflitos, cujo ápice foram as duas últimas guerras mundiais. A expansão da "Europa dos 25 países" somente será possível se essa pertinência tiver um núcleo de identidade cultural. Essa Europa poderá ter a chance de desenvolver um cultura política ocidental da democracia. Essas chances não existem, no meu ponto de vista, na perspectiva de uma Turquia, em que a constituição de um Estado moderno somente foi possível por meio da ação militar no século 20 e, mesmo hoje, é garantida por essas forças. Isso não existe em nenhuma das outras democracias ocidentais. Portanto, não vejo como a Turquia pode ser integrada, nesse sentido, à Europa unificada. Não se trata apenas da ampliação de um espaço econômico, mas de diferenciação de cultura política. No que diz respeito à Rússia, valeria o mesmo princípio do déficit de cultura política, mas também o de desproporção espacial. Não consigo imaginar uma Europa unificada que se estenda até Vladivostok. Ela não ofereceria uma sentimento de identidade. Assim, há limites claros nesse processo de expansão. José Galisi Filho é doutor em germanística pela Universidade de Hanover, na Alemanha. Texto Anterior: Império, uma história Próximo Texto: O acaso da juventude dourada Índice |
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