São Paulo, domingo, 06 de julho de 2008

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Santo grão

A FILÓSOFA MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO ATACA POLÍTICA DO GOVERNO LULA PARA A ÁREA AGRÍCOLA

Rafiqur Rahman - 19.nov.07/Reuters
Sobreviventes de ciclone em Bangladesh que matou mais de 3.000 pessoas aguardam por comida

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

A alta dos preços dos alimentos no Brasil não é uma contingência, mas uma conseqüência da estrutura produtiva brasileira que só tende a piorar, diz Maria Sylvia Carvalho Franco.
Ao mesmo tempo em que confessa seu pessimismo, a professora titular de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) diz à Folha que o processo só pode ser revertido com força política, algo que ela não vê no governo federal.
Mas a autora de "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (ed. Unesp) admite que, enquanto esse processo não gerar níveis extremos de pobreza e fome, dificilmente terá conseqüências na eleição dos próximos governantes.  

FOLHA - A inflação dos alimentos é o principal revés do governo Lula?
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
- Do ponto de vista mais aparente, poderia dizer que sim. Mas revés mesmo são os bilhões sendo usados para pagar especuladores. São bilhões que não são aplicados na produção.

FOLHA - O governo mantém as políticas agrícolas e aumentou os créditos do agronegócio em 12% em relação à última safra. Isso é suficiente para evitar uma crise?
CARVALHO FRANCO
- Não. É um complexo de elementos interligados: há favorecimento ao agronegócio, uma política constante que beneficia uma agricultura expansiva, de grandes espaços de terra -como aconteceu com o café, que esgotou grandes regiões.
Essa tem sido a história do Brasil, a de uma monocultura atrás da outra. A terra é finita, a água é finita, os recursos marinhos também. O Brasil quer um lucro infinito a partir de recursos finitos. Além das crises periódicas, isso acaba se tornando inviável.

FOLHA - A limitação do espaço, em um cenário de alta demanda da produção de biocombustíveis, é apontada como um fator de pressão sobre os preços de alimentos. Essa é uma condição inevitável?
CARVALHO FRANCO
- Não deveria ser. Num país do tamanho do Brasil, bastaria uma utilização mais racional da terra, não depositar o destino do país na monocultura. Mas nunca tivemos ocupação racional da terra.
A agricultura em larga escala tem efeitos colaterais de outras coisas em grande escala. [O economista, 1907-1990] Caio Prado Jr. mostra bem como a produção de cana na região Norte levou à produção, também em grande escala, de gado, de modo a suprir a necessidade da escravaria. E novamente temos a produção concentrada em um ponto só e o desleixo com o resto. O resultado é a fome.
E o que o Fome Zero resolve? Nada. É solução popularesca, que não leva em conta diversos elementos de ordem interna e externa: os países europeus estão se protegendo, lançando mão de tarifas.

FOLHA - Dadas as condições do comércio internacional, é possível a produção local apresentar preços competitivos?
CARVALHO FRANCO
- Isso depende do sistema portuário, que no Brasil não é bom. O transporte é caríssimo.
Desde Juscelino [Kubitschek] ocorre a simbiose entre governo e construtoras que liqüidou o sistema ferroviário e estabeleceu a enorme rede rodoviária, o que leva a um transporte caríssimo, altamente sensível a qualquer variação no preço do combustível -isso encarece alimento e tudo o mais.
O desenvolvimento fictício, de vitrine, a partir de Juscelino pede outros investimentos enormes. O que não vai custar o Rodoanel [em torno da cidade de São Paulo]?
E ele é necessário, pois a cidade é abastecida por caminhões. E irá engolir dinheiro de tudo o que é lado do Estado -universidades, saúde, educação em geral. Você tem de um lado o governo dando a mão ao grande capital e, de outro, aos miseráveis que esse capital ajuda a criar.

FOLHA - O governo federal anunciou um pacote nesta semana segundo o qual o agronegócio contará com R$ 65 bilhões em créditos, e a agricultura familiar, com R$ 13 bilhões. Como avalia o investimento na agricultura familiar?
CARVALHO FRANCO
- É muito pouco. Ouvimos notícias de pequenos produtores plantando mamona para terem renda familiar. Há, sim, investidores estrangeiros comprando sítio atrás de sítio para produzir combustível no Nordeste.
Lula não tem força política para impor uma mudança de perspectiva nos rumos da economia brasileira.
Ele faz algumas coisas, como o aumento do salário mínimo, nós precisamos reconhecer. Mas não tem força na tal "base", comprada, e os partidos não assumem uma atitude mais coletiva -essa idéia é muito difícil de aparecer no Brasil. As vidas pública e privada são muito misturadas.

FOLHA - A alta dos alimentos terá influência nas próximas eleições?
CARVALHO FRANCO
- Acho que não chega até lá. A máquina de propaganda não deixa. Desde que o mundo é mundo a palavra é uma arma política poderosa. E não tem máquina mais azeitada do que a do governo Lula.
Só chega às eleições se houver fome de verdade. Estamos longe da situação da África, felizmente, por isso o colchão da propaganda deve sustentá-lo.


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