São Paulo, domingo, 06 de julho de 2008

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África dos sonhos

PROJETO CONTROVERSO DO ECONOMISTA JEFFREY SACHS TENTA REVERTER SITUAÇÃO DE PENÚRIA DE ALDEIAS DO CONTINENTE

SAM RICH

Sauri deve ser a aldeia mais afortunada da África. O milho cresce mais, a água é mais limpa, e os estudantes da escola local recebem alimentação melhor do que em quase qualquer outra parte da África ao sul do Saara.
Poucos anos atrás, Sauri era só mais uma aldeia queniana para a qual pobreza, fome e doença eram fatos cotidianos.
Agora se tornou sede de uma experiência que fez dela o protótipo para a "aldeia do milênio". É uma idéia simples: a cada ano, por um prazo de cinco anos, investir um total per capita de cerca de US$ 100 nessa aldeia de 5.000 habitantes, para descobrir o que acontece.
O projeto Aldeias do Milênio foi concebido pelo economista Jeffrey Sachs, principal arquiteto do projeto de transição da economia estatizada para a economia de mercado na Polônia e na Rússia.
Os críticos e os defensores de seu trabalho discordam quanto ao sucesso dessas empreitadas, muitas vezes descritas sob o rótulo "terapia de choque", mas seu papel na reforma econômica radical de ambos os países o arremessou à fama.
Agora, tem uma nova missão: pôr fim à pobreza na África.

Conta-gotas
Os africanos vêm recebendo assistência em conta-gotas há décadas, alega Sachs em "O Fim da Pobreza" [Companhia das Letras], mas jamais em volume suficiente para que a ajuda faça diferença.
O dinheiro que chega a eles termina desperdiçado em pagamentos a consultores que recebem honorários altos demais ou é usado para custear assistência humanitária e alimentar, o que não ajuda a erradicar a pobreza.
O africano médio, afirma Sachs, está preso na "armadilha da pobreza". Ele cultiva uma pequena porção de terras para sustentar a família e simplesmente não dispõe dos ativos necessários para gerar lucros.
À medida que a população cresce, as pessoas passam a dispor de menos e menos terra, e isso as torna ainda mais pobres.
Quando o agricultor precisa pagar a escola dos filhos ou comprar remédios, se vê forçado a vender as poucas propriedades de que dispõe ou a se endividar. Mas, se dispusesse de algum capital, poderia investir em sua fazenda, cultivar o bastante para obter um excedente, vender o produto e, assim, começar a ganhar dinheiro.
Não é o diagnóstico que Sachs apresenta quanto aos problemas da África que torna suas teorias controversas, mas a solução que propõe, que poderia ser definida como um "choque de assistência" -grandes e rápidas injeções de capital em áreas pobres.
Ao longo de cinco anos, a aldeia de Sauri receberá, sozinha, US$ 2,75 milhões em investimentos e montantes semelhantes serão investidos nas 11 outras Aldeias do Milênio que estão sendo estabelecidas em dez países africanos.

Visita
Em 2006, visitei Sauri, a aldeia da qual tanto parece depender. Eu havia acabado de ler o livro de Sachs e admito que estava cético quanto à sensatez de investimentos tão elevados em uma única aldeia.
No dia seguinte à minha chegada haveria uma excursão de visitantes partindo na jornada de 50 quilômetros até Sauri.
Nossa primeira parada foi na clínica de saúde, que oferecia lembretes severos sobre a profundidade dos problemas de Sauri e sobre os benefícios que o dinheiro pode propiciar.
A enfermeira de plantão nos informou que, no início do projeto, todos os domicílios receberam redes de proteção contra mosquitos, após testes aleatórios com os moradores revelarem que mais de 40% deles sofriam de malária. Agora, o índice caiu para menos de 20%.
A malária está sendo tratada gratuitamente com Coaterm, um remédio caro e indisponível na maior parte do Quênia.
Minutos mais tarde, chegamos ao pátio verdejante da escola primária. Os edifícios de tijolos vermelhos não estão equipados com portas e janelas e oferecem salas de aula para mais de 600 crianças. Uma das construções não tem teto.
O professor demonstrava entusiasmo com o inovador programa de alimentação adotado na escola. Cerca de 10% dos produtos agrícolas colhidos na aldeia são destinados às refeições escolares das crianças, disse. Além disso, o projeto compra frutas, carne e peixe para prover os estudantes de vitaminas e proteínas.
Voltamos ao Toyota e partimos para mais uma visita, a um novo edifício de tijolos mal acabado, com piso de terra batida.
Lá, os cerca de 12 integrantes do comitê agrícola da aldeia tomam decisões cruciais para o sucesso de todo o projeto. As safras melhoradas podem ajudar a manter o programa de alimentação escolar e a elevar a renda dos agricultores.
O sucesso na agricultura deve permitir que a aldeia mantenha seu crescimento depois que o projeto de cinco anos for encerrado, em 2009.
A maior contribuição do projeto à agricultura foi a aquisição de fertilizantes para elevar a produção de milho. O milho, cultivado na região há mais tempo do que é possível lembrar, é a principal safra de subsistência ali, como em outras partes da África.
Os fertilizantes sintéticos são dispendiosos demais para os agricultores médios, mas em Sauri o projeto investe US$ 50 mil ao ano neles.
Os professores partiram, mas eu decidi ficar. Era evidente que o Projeto Aldeias do Milênio havia conseguido grandes realizações, mas eu não sentia que tivesse contemplado o quadro completo. Cruzei a estrada e fui à aldeia conversar com um dos orientandos de Sachs, um pesquisador da Universidade Columbia. Havíamos nos conhecido algumas horas antes, quando ele se ofereceu para me apresentar a um morador de Sauri, Ben Bunde, na casa deste.
Quando perguntei a Bunde de que maneira a aldeia mudara com o projeto, ele inclinou o corpo para trás, riu e disse que "agora as meninas têm cortes de cabelo melhores". O número de salões de cabeleireiros aumentou, ele afirmou, entusiástico, e todas as meninas estão fazendo tranças. Pela primeira vez, as pessoas estão vendendo batatas fritas à beira da estrada. Bunde também diz que a preponderância dos clãs fomenta o nepotismo e outras formas de favorecimento indevido.
Segundo ele, os moradores não foram suficientemente instruídos sobre o projeto. Depois de receberem fertilizantes e redes contra mosquitos gratuitamente, alguns dos aldeões os venderam a moradores de comunidades vizinhas já no dia seguinte e começaram a conspirar para conseguir mais fertilizantes e mais redes contra mosquitos.

"Ficamos dependentes"
Em última análise, questiona se os especialistas estrangeiros realmente compreendem os problemas de Sauri. Embora a vida tenha melhorado nos anos desde que a experiência do projeto foi iniciada, Bunde especula de maneira temerosa sobre o que acontecerá quando for encerrado, "porque nos tornamos totalmente dependentes".
Dois dias depois, me encontrei com um dos dirigentes do projeto, que pediu para não ter seu nome divulgado. Segundo ele, "foram cometidos todos os erros clássicos de projetos de desenvolvimento...
Se você fornece toneladas de fertilizante, é previsível que boa parte do material termine no mercado aberto. Se você investe milhões [de dólares] em um lugar pequeno, vai enfrentar problemas". Cultivar milho anos após ano desgasta a terra, segundo ele.
Além disso, alegou o funcionário, seu preço não é alto o bastante para fazer dele um produto lucrativo. Na opinião desse funcionário, o projeto seria mais efetivo se pressionasse por algumas mudanças macroeconômicas, em lugar de concentrar todos os seus esforços na aldeia.
Por exemplo, os agricultores do Quênia não compram fertilizante porque o produto custa três vezes mais no país do que na Europa, ele afirmou. Caso o governo queniano reduzisse os impostos e tarifas de importação sobre os fertilizantes, "muito mais agricultores comprariam o produto". Sauri realizou mais do que projetos como esses poderiam, mas não se transformou ainda em aldeia-modelo.

África em microcosmo
Em lugar disso, continua a ser uma África em microcosmo. Todos os problemas fundamentais do continente continuam a existir em Sauri; e, em alguns casos, foram ampliados.
A estrutura política da aldeia é confusa. Sauri agora tem dois governos em conflito: os comitês e o governo local existente. Os comitês do projeto introduziram um novo escalão de burocratas, e seus recursos superiores solaparam o poder do governo local.
Além disso, os comitês foram acusados de trabalhar uns contra os outros, e de corrupção, lentidão e falta de praticidade. Os representantes que os integram foram escolhidos por motivos de origem étnica e posição social, e não por sua habilidade política. Como em muitas partes da África, não está claro que decisões foram tomadas pelo governo e que decisões vieram dos doadores.
Sauri continua a enfrentar os desafios econômicos do passado. A maioria dos agricultores produz safras de subsistência e desgasta a terra. O crescimento é lento por conta da tributação, das más estradas e da falta de eletricidade -que terá de ser resolvida em nível nacional.
As aldeias estão claramente desfrutando de melhor saúde em razão do projeto. Mas, encerrados os cinco anos, o governo do Quênia terá de enfrentar a difícil escolha entre continuar a bancar os custos de uma clínica-modelo em Sauri ou reduzir o orçamento da instituição de maneira considerável.
E Sauri ainda precisa resolver as divisões que são típicas do Quênia: entre grupos étnicos, homens e mulheres, jovens e velhos -legar mulheres como herança é uma prática que continua em uso. Essas formas de problemas culturais não podem ser resolvidas por doações; é preciso que as intervenções sejam mais sutis.
Isso não equivale a dizer que Sauri não pode mudar ou que é desperdício investir na aldeia. Mas mudanças duradouras só acontecerão por meio da educação de crianças e treinamento de adultos, e não pela distribuição de mercadorias.
Para expressar o dilema de outro modo, quando alguém dá a uma pessoa uma rede contra mosquitos, a pessoa procurará o doador para obter uma rede nova quando a antiga se rasgar.
Mas, se lhe for demonstrado de que maneira a rede contra mosquitos beneficia sua saúde e como isso pode resultar em economia com a compra de remédios, em longo prazo, é provável que a pessoa opte por comprar a rede sem ajuda.


A íntegra deste texto foi publicada na revista "Wilson Quarterly". Tradução de Paulo Migliacci .


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