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A perversidade da família
especial para a Folha
Nos dois livros de Russell Banks
recentemente publicados no Brasil pela Editora Record -"O Doce Amanhã" e "Temporada de
Caça"-, a família é o centro das
atenções e de onde emanam todos
os dramas e problemas.
No primeiro, quatro narradores
contam, em cinco monólogos, a
história do acidente com o ônibus
escolar de uma pequena cidade ao
norte do Estado de Nova York (região onde o escritor mora quando
não está lecionando literatura na
Universidade de Princeton), ao
qual só sobreviveram a motorista,
uma senhora que adora crianças, e
uma adolescente, Nichole Burnell.
No dia seguinte ao desastre, um
advogado, ele mesmo pai de uma
moça viciada em drogas, corre ao
local para tentar capitalizar sobre
a tragédia, oferecendo seus préstimos aos pais das crianças mortas,
tentando convencê-los a entrar na
Justiça com um processo de indenização para as famílias.
O acidente serve de pretexto para o autor encenar sua perplexidade diante do esfacelamento da família (o desastre como metáfora
da "perda" das crianças), o que
fica evidente com os enredos paralelos da relação incestuosa mantida pelo pai com Nichole Burnell e
também pela impotência desesperada do advogado com a situação
da própria filha drogada.
Em "Temporada de Caça",
também ambientado numa cidadezinha do norte de Nova York,
são ainda o conflito e a culpa entre
pais e filhos, essa cisão traumática,
essa linha divisória entre os adultos e as crianças, e a corrupção da
comunidade e da família que estão
por trás da violência delirante de
um homem adulto, um policial
decadente, num processo paranóico contra tudo a sua volta, inclusive o pai.
"É verdade que não há muitos
pais bons nas minhas histórias. O
caso do advogado em "O Doce
Amanhã" é diferente do pai em
"Temporada de Caça". Ele tem
tanto poder em suas mãos, o poder da vida e da morte sobre sua
filha, e faz um grande esforço para
ser um bom pai, embora no final
sinta que falhou. Isso é inevitável.
O pai de "Temporada de Caça"
se parece mais com o de Nichole
Burnell em "O Doce Amanhã".
Ele trata os filhos como se fossem
objetos e não como seres humanos. "No primeiro caso, por causa da natureza do seu ódio, ele
abusa fisicamente dos filhos. No
segundo, por causa da natureza da
sua vida fantasiosa e da sua fraqueza, ele abusa sexualmente da
filha. Mas não estou propondo nenhuma grande afirmação sobre a
impossibilidade da paternidade.
Sou apenas um contador de histórias. São personagens verossímeis
para mim. Não os estou usando
como peças de xadrez sobre o tabuleiro da vida ou qualquer coisa
no gênero", diz Banks.
A idéia de "O Doce Amanhã"
foi desencadeada por um artigo de
jornal sobre o acidente real de um
ônibus escolar numa pequena cidade no sul do Texas. O artigo tratava do que havia acontecido com
a cidade depois do acidente, com a
chegada dos advogados.
"Temporada de Caça" tem origens mais pessoais e biográficas,
em especial na vida do pai e do avô
do próprio escritor, e no relacionamento entre os dois. Segundo
Banks, foram incidentes familiares que geraram o romance.
"Não estou tão interessado em
salvar a família, pois não tenho
certeza de que isso possa ser feito.
Apenas tento entendê-la e descrevê-la com precisão a partir do que
vejo. É um dos grandes mistérios
do nosso tempo, a natureza da família. É a mais antiga unidade social, tribal, e que persiste mesmo
no final do século 20, quando a
economia dessa sociedade parece
se opor a ela de todas as maneiras
possíveis. É uma imagem primitiva muito forte. Muito dos nossos
desejos, necessidades e sonhos está baseado nela. Precisamos entender seus limites e perversões,
especialmente a forma como a família se tornou perversa no final
do século 20 nos EUA, nem que
seja para aprender a viver sem
ela", diz.
(BERNARDO CARVALHO)
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