São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A perversidade da família

especial para a Folha

Nos dois livros de Russell Banks recentemente publicados no Brasil pela Editora Record -"O Doce Amanhã" e "Temporada de Caça"-, a família é o centro das atenções e de onde emanam todos os dramas e problemas.
No primeiro, quatro narradores contam, em cinco monólogos, a história do acidente com o ônibus escolar de uma pequena cidade ao norte do Estado de Nova York (região onde o escritor mora quando não está lecionando literatura na Universidade de Princeton), ao qual só sobreviveram a motorista, uma senhora que adora crianças, e uma adolescente, Nichole Burnell.
No dia seguinte ao desastre, um advogado, ele mesmo pai de uma moça viciada em drogas, corre ao local para tentar capitalizar sobre a tragédia, oferecendo seus préstimos aos pais das crianças mortas, tentando convencê-los a entrar na Justiça com um processo de indenização para as famílias.
O acidente serve de pretexto para o autor encenar sua perplexidade diante do esfacelamento da família (o desastre como metáfora da "perda" das crianças), o que fica evidente com os enredos paralelos da relação incestuosa mantida pelo pai com Nichole Burnell e também pela impotência desesperada do advogado com a situação da própria filha drogada.
Em "Temporada de Caça", também ambientado numa cidadezinha do norte de Nova York, são ainda o conflito e a culpa entre pais e filhos, essa cisão traumática, essa linha divisória entre os adultos e as crianças, e a corrupção da comunidade e da família que estão por trás da violência delirante de um homem adulto, um policial decadente, num processo paranóico contra tudo a sua volta, inclusive o pai.
"É verdade que não há muitos pais bons nas minhas histórias. O caso do advogado em "O Doce Amanhã" é diferente do pai em "Temporada de Caça". Ele tem tanto poder em suas mãos, o poder da vida e da morte sobre sua filha, e faz um grande esforço para ser um bom pai, embora no final sinta que falhou. Isso é inevitável.
O pai de "Temporada de Caça" se parece mais com o de Nichole Burnell em "O Doce Amanhã". Ele trata os filhos como se fossem objetos e não como seres humanos. "No primeiro caso, por causa da natureza do seu ódio, ele abusa fisicamente dos filhos. No segundo, por causa da natureza da sua vida fantasiosa e da sua fraqueza, ele abusa sexualmente da filha. Mas não estou propondo nenhuma grande afirmação sobre a impossibilidade da paternidade. Sou apenas um contador de histórias. São personagens verossímeis para mim. Não os estou usando como peças de xadrez sobre o tabuleiro da vida ou qualquer coisa no gênero", diz Banks.
A idéia de "O Doce Amanhã" foi desencadeada por um artigo de jornal sobre o acidente real de um ônibus escolar numa pequena cidade no sul do Texas. O artigo tratava do que havia acontecido com a cidade depois do acidente, com a chegada dos advogados.
"Temporada de Caça" tem origens mais pessoais e biográficas, em especial na vida do pai e do avô do próprio escritor, e no relacionamento entre os dois. Segundo Banks, foram incidentes familiares que geraram o romance.
"Não estou tão interessado em salvar a família, pois não tenho certeza de que isso possa ser feito. Apenas tento entendê-la e descrevê-la com precisão a partir do que vejo. É um dos grandes mistérios do nosso tempo, a natureza da família. É a mais antiga unidade social, tribal, e que persiste mesmo no final do século 20, quando a economia dessa sociedade parece se opor a ela de todas as maneiras possíveis. É uma imagem primitiva muito forte. Muito dos nossos desejos, necessidades e sonhos está baseado nela. Precisamos entender seus limites e perversões, especialmente a forma como a família se tornou perversa no final do século 20 nos EUA, nem que seja para aprender a viver sem ela", diz. (BERNARDO CARVALHO)


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.