São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

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LIVROS

Uma queda sem fim

O escritor Olavo de Carvalho responde às críticas feitas ao "Imbecil Coletivo 2"
OLAVO DE CARVALHO
especial para a Folha

Ao supor que refuta "O Imbecil Coletivo" mediante a alegação de que o emburrecimento das massas não é culpa das esquerdas e sim da TV, o sr. Gilberto Vasconcellos dá uma prova cabal de que não leu ou não entendeu, do livro, nem mesmo aquele mínimo indispensável para captar, ainda que por alto, o teor geral do assunto.
"O Imbecil Coletivo 2", como aliás também o "O Imbecil Coletivo 1", não aborda nem de raspão a suposta imbecilidade popular, cuja análise e revelação correm por conta da fértil imaginação do sr. Gilberto Vasconcellos. Ambos os volumes tratam unicamente da estupidez de elite, da burrice letrada e da acadêmica, da qual, como se vê, não é preciso ir muito longe para encontrar exemplos.
Que a TV estupidifique as massas incultas em vez de educá-las é provavelmente um fato, mas, não podendo acreditar que o sr. Vasconcellos atribua seu próprio emburrecimento ou o de seus pares acadêmicos ao mau hábito de assistir a Faustão e Xuxa, só me resta concluir que o livro afirma uma coisa e o crítico refuta outra, imaginando que é a mesma.
Não tendo razões para imputar ao sr. Vasconcellos a premeditada intenção de falsear a conversa para me prejudicar, só posso concluir pela hipótese da inépcia: o sr. Vasconcellos lê mal e, rigorosamente, não sabe do que está falando.
Tão deslocadas são as opiniões dele ante o livro nominalmente incumbido de posar como objeto de sua crítica, que me vejo desarmado para respondê-las. Ele afirma, por exemplo, que meu discurso neoliberal teria a obrigação de tomar como ponto de partida as reflexões de José Guilherme Merquior. Não tendo escrito jamais algum discurso neoliberal e não tendo tido outra participação nessa ideologia política senão uma conferência feita no Instituto Liberal do Rio sob o título "Por Que Não Sou Neoliberal", que é que hei de responder?
Só me ocorre, de passagem, observar que o sr. Vasconcellos não encontrou no livro outros indícios de meu suposto neoliberalismo senão o fato de eu criticar a esquerda e elogiar, de passagem, alguns escritores liberais -o que mostra que o crítico não conhece outra leitura senão a lambida superficial e que, em matéria de compreensão de textos, o único instrumento hermenêutico à sua disposição é a catalogação dualista, mecânica e sumária, burra até o limite do indizível. Logo, irrespondível.
Também nada posso responder a suas ponderações sobre a "ditadura liberal" dos militares, pela simples razão de que não atino com o sentido dessas palavras: se tomadas na acepção econômica, não podem designar o regime mais centralizador e estatizante que já tivemos; na acepção política, só podem querer dizer que a ditadura não foi ditatorial o bastante. Em ambos os casos, estão aquém do entendimento humano.
Que o sr. Vasconcellos não faz a mínima questão de saber do que fala é coisa que aliás já havia sido assinalada pelo jornalista Reinaldo Azevedo, o qual, mesmo num artigo elogioso ("República", dezembro de 1997), não pôde deixar de observar que o professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) "não se incomoda de ser injusto ou impreciso se isso valer uma boa frase". Eis aí a definição mesma do charlatanismo intelectual, já tantas vezes denunciado na nossa literatura, desde Machado de Assis e Lima Barreto, como a encarnação mesma da peste que nos atrofia o pensamento. Verboso e inconsequente, embriagado pelo próprio discurso, desprovido daquele mínimo de autofiscalização sem o qual a vida da inteligência não pode nem sequer começar, o sr. Vasconcellos provou, com seu arremedo de crítica, ter as qualificações intelectuais requeridas a um aspirante a cabo eleitoral do PDT.
Que em larga medida a vida intelectual brasileira ainda seja dominada por essa oratória de psitacídeos é coisa da qual não se pode culpar o sr. Gilberto Vasconcellos. Culpado é o governo, que dá emprego universitário a sujeitos como ele e depois, para não se desmoralizar, tem de ajudá-los a fingir que são intelectuais. E as piores vítimas deste engodo são eles próprios: recebendo mensalmente do governo federal um contracheque que os confirma nas mais ilusórias convicções acerca de si mesmos, esses indivíduos tanto mais se afastam da realidade quanto mais se aproximam da aposentadoria.
Mas a auto-ilusão do sr. Vasconcellos vai ainda mais fundo. Hipnotizado pela sua própria fala, ele perde todo o senso das proporções e chega ao paroxismo de declarar que sente pelos seus desafetos ideológicos nada menos que "asco" -sim, "asco"-, sem perceber que a própria escolha da palavra pomposa e teatral denota menos fanatismo sectário do que afetação, pose, histrionismo de um infeliz que, tendo perdido todo o respeito por si mesmo, necessita fingir um sentimento hipertroficamente elevado da própria dignidade. Que exista platéia para levar a sério espetáculo tão miserável, eis aí o sinal de que, na vida intelectual como em tudo o mais, a sociedade subdesenvolvida não tem fundo: pode-se cair indefinidamente.
Deixarei sem resposta, por conta de tão abissal patologia, a ofensa direta, brutal e grosseira que ele faz à minha honra pessoal ao incluir-me implicitamente entre os objetos do seu posadíssimo asco -os liberais que a seu ver só escrevem "com o interesse posto no jabaculê argentário". Não responderei nada. Não perguntarei nem sequer qual será a fonte argentária da qual aguardo o tal jabaculê, e muito menos que raio de coisa poderia ser, mesmo na estilística gosmenta do meu crítico, um jabaculê não argentário. Não respondo, em suma, nem pergunto. O artigo do sr. Vasconcellos não me motiva a uma coisa nem a outra. Lendo-o, não sinto nada, nem mesmo asco, já que tão forte sentimento de repugnância tenderia a manifestar-se sob a forma de convulsões estomacais, e a escrita vasconcellina, bem feitas as contas, não vale o vômito.


Olavo de Carvalho é escritor, autor, entre outros, de "O Imbecil Coletivo 2" (Topbooks).



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