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"Detalhes de um Pôr-do-Sol" reúne contos escritos por Vladimir Nabokov durante seu exílio europeu nos anos de 1920
Um obsessivo zoológico de palavras
Reprodução
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O escritor russo naturalizado americano Vladimir Nabokov (1899-1977) |
Fábio de Souza Andrade
especial para a Folha
Como os quilos bem pesados dos feirantes brasileiros, as quatro coletâneas de contos que receberam sinal verde em vida do autor de "Lolita" e "Fogo Pálido" traziam "dúzias russas" ou "de Nabokov",
todas engordadas por uma 13ª história.
É o caso de "Detalhes de um Pôr-do-Sol
e Outros Contos", edição americana de
1976, agora lançada no Brasil em ótima
tradução (do inglês) de Jorio Dauster. O
rascunho manuscrito dos títulos que
fariam parte de um quinto volume (a
"raspa do tacho", em suas palavras)
orientou a escolha que Dmitri Nabokov, seu filho e tradutor, a quatro mãos
ou solista, fez postumamente, para somar os 65 contos da edição reunida, de
1995.
O narrador que sobrevive nos contos
é o Nabokov do período de exílio voluntário europeu, escrevendo na língua
materna, ainda sob o peso opressivo da
riquíssima tradição ficcional russa,
mergulhado nos círculos literários de expatriados em Berlim e Paris. A marca
pessoal e o estilo próprio, contudo, não
tardariam a repontar. Ter chamado de
"Uma Fatia de Vida" uma das narrativas
que compõem a coletânea corre por conta da ironia militante que, desde então,
dedicava ao modelo realista -segundo
ele, ao contrário de Flaubert, biscoito fino, Stendhal, Balzac e Zola não passavam de platitudes vulgares.
Episódios marcantes
É certo que o leitor de "Speak, Memory" (volume de
memórias expurgado do acidental do
dia-a-dia e da investigação de causas e
efeitos entre fatos e feitos individuais, antes uma arqueologia do artista em formação, batizado na edição brasileira de
"A Pessoa em Questão") reconhecerá
em alguns contos, transpostos ao registro ficcional, episódios marcantes da
infância aristocrática e da decisiva
aproximação da escrita, em meio às
convulsões das duas primeiras décadas
do século passado em São Petersburgo.
Assim, o menino de "Armoles" é um
duplo do autor que, estranho no ninho
na escola, se angustia na sala de aula com
a perspectiva do pai se batendo em duelo; outro garoto descobre a inutilidade
dos esforços gregários contra a irredutibilidade dos mundos individuais no piquenique infantil de "Um Mau Dia".
Trocas de endereço
Sem que houvesse separação nítida entre os assuntos
domésticos e os de Estado, nos quais seu
pai, jurista liberal, desempenhava papel
de destaque (foi ministro do gabinete
provisório de Kerenski), Nabokov experimentou no lance seguinte de sua vida
as trocas de endereço, reuniões e separações reservadas aos russos emigrados
(matéria de "O Reencontro", "A Campainha da Porta" ou "A Carta Que Nunca Chegou à Rússia").
Esses dois períodos-chave -a juventude russa e os anos passados em Paris e
na Berlim dos anos 20- correspondem,
grosso modo, àqueles em que estão ambientados os contos.
Mas sob essa coincidência epidérmica
se entrevê o verdadeiro desenho que dá
unidade às histórias: a certeza de que a
experiência só passa a fazer sentido se filtrada pela linguagem da arte, expressa
pela palavra exata, encapsulada na imagem inusitada. A referência flaubertiana
não é vã; também há em Nabokov uma
religião da arte, uma perícia em aprisionar a vida no "zoológico das palavras"
quase insultuosa, de tão apurada. Suas
várias versões do mesmo personagem
fechado em universo próprio, excluído
da normalidade por um traço obsessivo
incomum, seja o xadrez, as borboletas ou
os poemas, são reelaborações de uma
matriz original insubstituível: a do artista
que opõe resistência à anestesia do hábito e à esterilização da rotina.
Na brevidade das anotações do "Guia
de Berlim", divididas em cinco microsseções ("Os Canos", "O Bonde", "Trabalho", "Éden" e "Um Botequim"), há um
programa estético condensado.
Nele, o transitório sob máscaras múltiplas e em si desimportantes (manilhas
de esgoto abandonadas na paisagem
urbana, sob a neve; o bonde elétrico, último grito da modernidade, fadado à
velhice prematura) se deixa apreender
por um olhar que singulariza e preserva, intactos, na surpresa da forma que
lhes confere, o jogo sensorial do instante da sua descoberta e a centelha de
eternidade de que os inocula, transmutados em imagens, memória prévia e
imperecível.
Nabokov encarna como poucos essa
disponibilidade dos sentidos, a figura
do artista como ser sem pálpebras, a
serviço da metamorfose das impressões
em linguagem aguda e reveladora. São
esses momentos epifânicos, quando a
consciência vacila e os detalhes ignorados à plena luz são despertados pelo
lusco-fusco do fim do dia, que verdadeiramente interessam a sua escrita, de
um cromatismo notável e vivacidade
únicos.
Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP e autor de "O Engenheiro Noturno" (Edusp), sobre a lírica de Jorge de Lima.
Detalhes de um Pôr-do-Sol e Outros Contos
176 págs., R$ 28,00 de Vladimir Nabokov. Tradução de Jorio Dauster.
Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto
32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3167-0801).
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