São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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Em "O Livro das Provas", o irlandês John Banville faz um thriller intelectual e alucinatório com referências a Henry James, Stevenson e Dostoiévski

A consciência imponderável


O lúcido e debochado narrador do romance não poupa a própria narrativa de apreciações negativas, desqualificando os fatos que narra como historinhas de terceira categoria


Sérgio Medeiros
especial para a Folha

O escritor irlandês John Banville, nascido em 1945 e considerado hoje um dos melhores estilistas da língua inglesa, visitou São Paulo em julho passado para participar de um congresso sobre cultura irlandesa na USP e no Memorial da América Latina, onde o autor de "Doctor Copernicus" leu passagens de suas obras. Dois dias antes, na USP, um de seus livros mais aclamados pela crítica, "O Livro das Provas" (1989), foi analisado por especialistas, que chamaram a atenção para a "sensibilidade pós-moderna" do escritor. Precursores como Dostoiévski ("Crime e Castigo") e Capote ("A Sangue Frio") foram lembrados nas discussões sobre a personalidade fragmentada do protagonista de "O Livro das Provas", que, na prisão, escreve uma confissão em que fatos e ficção se misturam, construindo e desconstruindo sem fim sua própria identidade. Enfatizou-se também o caráter alucinatório desse auto-retrato que revelaria, por trás da aparência de um intelectual cultivado, um duplo monstruoso, capaz de matar com um martelo a mulher desconhecida que o flagrou roubando um quadro do século 17.

Pormenores
Outros precursores não menos ilustres, como Henry James ("The Sense of the Past", romance inacabado que fala do fascínio do protagonista por um quadro do passado) ou Stevenson ("O Médico e o Monstro"), poderiam ser mencionados, ressalvando-se porém que "O Livro das Provas" não deve ser confundido com um relato convencional sobre encarceramento, crime e punição. Adepto do "thriller intelectual", Banville escreve romances que se lêem de uma assentada. E "O Livro das Provas" é talvez sua realização mais bem-sucedida. O narrador, Frederick (Freddie) Montgomery, chamado pelos jornais irlandeses de "A Fera do Equinócio" e por eles descrito como um sujeito insensível e violento (o que escandaliza o próprio personagem), decide contar sua história enquanto aguarda julgamento, afirmando que "a prisão, para mim, é perpétua". Embora ele mesmo declare que os pormenores o entediam, estes pululam no seu texto, do começo ao fim, grotescos, cômicos, às vezes cruéis. Um bom exemplo é o retrato da velha mãe de Freddie, que ele reencontra após um longo período de vagabundagem no estrangeiro: "Minha mãe chegou à cozinha com os pés descalços. A visão daqueles joanetes enormes e das unhas amarelas desagradou-me profundamente". O desagrado na verdade é ilimitado, pois o filho recém-chegado ainda compara a mãe às prostitutas decadentes dos quadros de Toulouse-Lautrec. Abundam no depoimento de Freddie as caricaturas. Talvez se pudesse comparar "O Livro das Provas" a um dos romances do português Lobo Antunes ("A Ordem Natural das Coisas", por exemplo), com seus personagens fantasmagóricos e deformados, ou ainda a uma das primeiras novelas de Nabokov ("Convite para uma Decapitação", 1934), com seus cenários teatrais. O lúcido e debochado narrador do romance, utilizando-se do mesmo recurso literário de outros "absurdists" irlandeses da geração de Banville, não poupa a própria narrativa de apreciações "negativas", desqualificando os fatos que narra: são historinhas de terceira categoria, mundo de faz-de-conta, dramazinho ridículo, para acabar concluindo que "tudo, sempre, acaba em farsa". Os personagens de sua história pessoal, como a mãe citada, são atores de uma comédia de terceira categoria, figuras grotescas... A sua vítima, "uma heroína de melodrama acuada", e ele mesmo, Freddie, "um vilão de cinema mudo, fazendo caretas e mexendo as sobrancelhas". A estrada do andarilho Freddie é artificial, pode parecer-se às vezes, como ele mesmo reconhece, com uma ilustração de algum livro de geografia para crianças. Há cenários estereotipados, paisagens saídas de cartões-postais, quando não dos romances sentimentais que se vendem em bancas de revista. Não surpreende que ele se sinta, logo após cometer seu crime, como um menino sonhando acordado num lugar de faz-de-conta (onde tudo começa a ruir). A partir desse momento, a Irlanda perde seu fundamento, sua base sólida: "O mundo nunca me pareceu tão instável", declara Freddie, "o meu lugar nele, tão excitantemente precário". As algemas da polícia vêm salvá-lo dessa "liberdade sem limites", desse estado de indeterminação. Contudo, no seu depoimento, ele continua dando provas de que não há salvação para o seu caso: "Saber usar uma máscara parece-me ser a pedra de toque do refinamento humano". Se por um lado ele se declara culpado de homicídio de primeiro grau, por outro continua sendo incapaz de justificar seus atos. Matou porque sua vítima "não estava viva". Freddie revela, então, como levou a vida nos últimos anos, "seguindo sempre em direção ao nada", abandonando uma promissora carreira acadêmica, casando-se com uma mulher que lhe era "estranha" e tendo com ela um filho retardado. Ele próprio, que inicialmente se imagina um homem atraente e bronzeado, descobre-se um senhor pálido, gordo, flácido, inclinado à bebida.

O homem oco
O testemunho "impossível" (o que são fatos?, o que é ficção?) expõe o abismo intransponível entre aquele que agiu e aquele que escreve para explicar suas motivações: "Desde que me entendo por gente", justifica-se Freddie, "sempre penso uma coisa e faço outra". Parece que o leitor perplexo não entenderá seu crime nem poderá solidarizar-se com seu sofrimento.
Ao narrar seu projeto de roubar o quadro, por exemplo, Freddie não revela nada: "Era como se fosse o projeto de uma outra pessoa que me tivesse sido dado para testar. Esse processo de distanciamento parece ter sido algo preliminar e essencial à ação".
Esse homem oco, que também se classifica como volátil, afirma que ultimamente se sente como se estivesse apenas assistindo a tudo: "Eu já não mais me reconhecia. Nada tinha a ver com o homem que eu acreditava ter sido".
A linguagem do seu testemunho só leva avante a infinita separação entre Freddie e seu duplo.
Seu ato narrativo não pressupõe mais, como no realismo, a transparência de uma consciência, mas a deriva do sujeito sem autonomia ou soberania que mergulha na indeterminação do texto. O "espaço literário" prolonga o exílio do irlandês errante enquanto ele pretende justamente dar testemunho do seu exílio. Quanto mais se avança pelo "espaço literário", nos diz Blanchot, menos claro se torna o projeto do narrador -e mais confusos ou paradoxais, concluímos nós, tomando como exemplo a narrativa de Freddie, a verdade e o testemunho.
Ao contrário dos leitores que ainda possam estar em busca da palavra final, do sentido último, o lúcido Freddie sabe que a escrita não garante autoconhecimento nem qualquer outra revelação. Sobre os fatos narrados, sobre sua história, seu crime e seu sofrimento, ele nos alerta: "Não se deixem iludir: nada disso tem, tampouco, qualquer significado".


Sérgio Medeiros é professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina, autor de "Mais ou Menos do Que Dois" (Iluminuras).


O Livro das Provas
256 págs., R$ 32,00 de John Banville. Tradução de Maria Alice Máximo. Editora Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/ xx/21/ 2585-2000).



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