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Em "O Livro das Provas", o irlandês John Banville faz um thriller intelectual
e alucinatório com referências a Henry James, Stevenson e Dostoiévski
A consciência imponderável
O lúcido e debochado narrador do romance não poupa a própria narrativa de apreciações negativas, desqualificando os fatos que narra como historinhas de terceira categoria
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Sérgio Medeiros
especial para a Folha
O escritor irlandês John Banville,
nascido em 1945 e considerado
hoje um dos melhores estilistas
da língua inglesa, visitou São
Paulo em julho passado para participar
de um congresso sobre cultura irlandesa
na USP e no Memorial da América Latina, onde o autor de "Doctor Copernicus"
leu passagens de suas obras.
Dois dias antes, na USP, um de seus livros mais aclamados pela crítica, "O Livro das Provas" (1989), foi analisado por
especialistas, que chamaram a atenção
para a "sensibilidade pós-moderna" do
escritor. Precursores como Dostoiévski
("Crime e Castigo") e Capote ("A Sangue
Frio") foram lembrados nas discussões
sobre a personalidade fragmentada do
protagonista de "O Livro das Provas",
que, na prisão, escreve uma confissão em
que fatos e ficção se misturam, construindo e desconstruindo sem fim sua
própria identidade.
Enfatizou-se também o caráter alucinatório desse auto-retrato que revelaria,
por trás da aparência de um intelectual
cultivado, um duplo monstruoso, capaz
de matar com um martelo a mulher desconhecida que o flagrou roubando um
quadro do século 17.
Pormenores
Outros precursores
não menos ilustres, como Henry James
("The Sense of the Past", romance inacabado que fala do fascínio do protagonista
por um quadro do passado) ou Stevenson ("O Médico e o Monstro"), poderiam ser mencionados, ressalvando-se
porém que "O Livro das Provas" não deve ser confundido com um relato convencional sobre encarceramento, crime
e punição.
Adepto do "thriller intelectual", Banville escreve romances que se lêem de uma
assentada. E "O Livro das Provas" é talvez sua realização mais bem-sucedida. O
narrador, Frederick (Freddie) Montgomery, chamado pelos jornais irlandeses
de "A Fera do Equinócio" e por eles descrito como um sujeito insensível e violento (o que escandaliza o próprio personagem), decide contar sua história enquanto aguarda julgamento, afirmando
que "a prisão, para mim, é perpétua".
Embora ele mesmo declare que os pormenores o entediam, estes pululam no
seu texto, do começo ao fim, grotescos,
cômicos, às vezes cruéis. Um bom exemplo é o retrato da velha mãe de Freddie,
que ele reencontra após um longo período de vagabundagem no estrangeiro:
"Minha mãe chegou à cozinha com os
pés descalços. A visão daqueles joanetes
enormes e das unhas amarelas desagradou-me profundamente". O desagrado
na verdade é ilimitado, pois o filho recém-chegado ainda compara a mãe às
prostitutas decadentes dos quadros de
Toulouse-Lautrec.
Abundam no depoimento de Freddie
as caricaturas. Talvez se pudesse comparar "O Livro das Provas" a um dos romances do português Lobo Antunes ("A
Ordem Natural das Coisas", por exemplo), com seus personagens fantasmagóricos e deformados, ou ainda a uma das
primeiras novelas de Nabokov ("Convite
para uma Decapitação", 1934), com seus
cenários teatrais.
O lúcido e debochado narrador do romance, utilizando-se do mesmo recurso
literário de outros "absurdists" irlandeses da geração de Banville, não poupa a
própria narrativa de apreciações "negativas", desqualificando os fatos que narra:
são historinhas de terceira categoria,
mundo de faz-de-conta, dramazinho ridículo, para acabar concluindo que "tudo, sempre, acaba em farsa". Os personagens de sua história pessoal, como a
mãe citada, são atores de uma comédia
de terceira categoria, figuras grotescas...
A sua vítima, "uma heroína de melodrama acuada", e ele mesmo, Freddie, "um
vilão de cinema mudo, fazendo caretas e
mexendo as sobrancelhas".
A estrada do andarilho Freddie é artificial, pode parecer-se às vezes, como ele
mesmo reconhece, com uma ilustração
de algum livro de geografia para crianças. Há cenários estereotipados, paisagens saídas de cartões-postais, quando
não dos romances sentimentais que se
vendem em bancas de revista. Não surpreende que ele se sinta, logo após cometer seu crime, como um menino sonhando acordado num lugar de faz-de-conta
(onde tudo começa a ruir). A partir desse
momento, a Irlanda perde seu fundamento, sua base sólida: "O mundo nunca
me pareceu tão instável", declara Freddie, "o meu lugar nele, tão excitantemente precário". As algemas da polícia vêm
salvá-lo dessa "liberdade sem limites",
desse estado de indeterminação.
Contudo, no seu depoimento, ele continua dando provas de que não há salvação para o seu caso: "Saber usar uma
máscara parece-me ser a pedra de toque
do refinamento humano". Se por um lado ele se declara culpado de homicídio
de primeiro grau, por outro continua
sendo incapaz de justificar seus atos. Matou porque sua vítima "não estava viva".
Freddie revela, então, como levou a vida nos últimos anos, "seguindo sempre
em direção ao nada", abandonando uma
promissora carreira acadêmica, casando-se com uma mulher que lhe era "estranha" e tendo com ela um filho retardado. Ele próprio, que inicialmente se
imagina um homem atraente e bronzeado, descobre-se um senhor pálido, gordo, flácido, inclinado à bebida.
O homem oco
O testemunho "impossível" (o que são fatos?, o que é ficção?) expõe o abismo intransponível entre aquele que agiu e aquele que escreve
para explicar suas motivações: "Desde
que me entendo por gente", justifica-se
Freddie, "sempre penso uma coisa e faço
outra". Parece que o leitor perplexo não
entenderá seu crime nem poderá solidarizar-se com seu sofrimento.
Ao narrar seu projeto de roubar o quadro, por exemplo, Freddie não revela nada: "Era como se fosse o projeto de uma
outra pessoa que me tivesse sido dado
para testar. Esse processo de distanciamento parece ter sido algo preliminar e
essencial à ação".
Esse homem oco, que também se classifica como volátil, afirma que ultimamente se sente como se estivesse apenas
assistindo a tudo: "Eu já não mais me reconhecia. Nada tinha a ver com o homem que eu acreditava ter sido".
A linguagem do seu testemunho só leva avante a infinita separação entre Freddie e seu duplo.
Seu ato narrativo não pressupõe mais,
como no realismo, a transparência de
uma consciência, mas a deriva do sujeito
sem autonomia ou soberania que mergulha na indeterminação do texto. O "espaço literário" prolonga o exílio do irlandês errante enquanto ele pretende justamente dar testemunho do seu exílio.
Quanto mais se avança pelo "espaço literário", nos diz Blanchot, menos claro se
torna o projeto do narrador -e mais
confusos ou paradoxais, concluímos
nós, tomando como exemplo a narrativa
de Freddie, a verdade e o testemunho.
Ao contrário dos leitores que ainda
possam estar em busca da palavra final,
do sentido último, o lúcido Freddie sabe
que a escrita não garante autoconhecimento nem qualquer outra revelação.
Sobre os fatos narrados, sobre sua história, seu crime e seu sofrimento, ele nos
alerta: "Não se deixem iludir: nada disso
tem, tampouco, qualquer significado".
Sérgio Medeiros é professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina, autor de "Mais ou Menos do Que Dois" (Iluminuras).
O Livro das Provas
256 págs., R$ 32,00 de John Banville. Tradução de Maria Alice Máximo. Editora Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/ xx/21/ 2585-2000).
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