São Paulo, domingo, 6 de dezembro de 1998

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AUTORES
Combate à desigualdade necessita de maior pressão das classes desfavorecidas
Desvio à esquerda

ALAIN TOURAINE
especial para a Folha

Todos são conscientes da extrema gravidade da crise que atravessa o Brasil. A exemplo de muitos países, ela tem uma origem dupla. A mais evidente é a amplitude destruidora da fuga de capitais que perdem a confiança no futuro do país e, como reflexo, põem em risco esse mesmo futuro, forçando uma elevação sufocante das taxas de juros. A outra é mais interior do que exterior. O real se encontra sobrevalorizado, o comércio exterior sofre com esse ônus e o déficit fiscal torna-se cada dia mais gravoso. Não seria o caso de desvalorizar o real? A pergunta já foi feita, e a resposta do governo brasileiro foi negativa.
Alegou-se, para justificá-la, que uma desvalorização acarretaria efeitos sociais incontroláveis e, portanto, o retorno da inflação. As situações do sistema político e do Estado não melhoraram o bastante para que esse julgamento seja modificado. Ao contrário, o essencial, tanto no interior quanto no exterior, é afirmar a capacidade de o Estado administrar a crise. É nesse espírito que os eleitores reelegeram Fernando Henrique no primeiro turno, quando ele já havia anunciado o plano de austeridade. Espera-se que a vontade de ação do governo restabeleça a confiança internacional. Aliás, as circunstâncias tornaram-se parcialmente favoráveis ao Brasil, já que a expressiva queda do dólar resulta numa desvalorização do real em relação ao euro, o que deverá facilitar as exportações brasileiras para essa zona.
A reação do presidente tem a enorme vantagem de demonstrar que os brasileiros querem um programa de governo. Talvez um dia eles adotem aquele de Ciro Gomes, mas, em termos gerais, eles não acreditam que o descontentamento e a ideologia diversa constituam um programa de governo. Não é a pessoa de Lula que está em questão, mas a ausência de uma verdadeira unidade programática do PT. Não basta denunciar a globalização e condenar a priori todas as políticas que se abrem à economia mundial para convencer a população, ou convencer a si próprios, de que uma mudança de política trará efeitos benéficos; essa perspectiva suscita, ao contrário, incerteza e temor.
O mais importante para o Brasil, assim como para muitos outros países, é livrar-se de escolhas retóricas para definir escolhas reais, sempre muito mais limitadas e cujos termos e consequências podem ser definidos de maneira precisa. Na América Latina ou na Europa, não se trata mais de escolher entre capitalismo e socialismo: o primeiro, porque não passa de uma transição liberal; o segundo, porque não existe mais em lugar algum. Mas também não se trata de construir uma social-democracia, no momento em que acabam de ruir os antigos regimes social-democratas, em especial o da Suécia.
A escolha real hesita entre duas concepções bastante diversas, mas bem mais próximas uma da outra do que as noções vagas que acabam de ser evocadas. Seu tronco comum, reconhecido por todos, é a necessidade de reforçar a capacidade de intervenção do Estado e do sistema político. A aceitação dessa idéia é um progresso considerável, se nos lembrarmos que, ainda há pouco, muitos falavam de se apoderar e destruir um Estado que era o elo mais fraco da dominação imperialista, enquanto outros consideravam que o Estado era um simples obstáculo ao bom funcionamento dos mercados. Partamos, portanto, deste princípio, que hoje não é mais contestado e que até mesmo o FMI e o BID reconhecem: é preciso reforçar o Estado nacional.
Onde as posições se separam é na resposta dada à pergunta de como conseguir tal feito. Para uns, é a abertura ao mercado que permite reforçar efetivamente o Estado; para outros, são as pressões populares que obrigam o Estado a resistir aos aspectos mais irracionais da economia globalizada. As duas respostas não são contraditórias, mas complementares. É preciso, contudo, distingui-las claramente e sem apriorismos ideológicos.
Os partidários da primeira resposta pensam que o mais importante é desembaraçar o Estado do antigo corporativismo que o esmaga e substituir um sistema político centrado no Estado pelo jogo "normal", à inglesa, dos partidos políticos. Essa solução foi batizada de "terceira via". Tony Blair foi quem a expôs de maneira mais consequente, apoiando-se nas idéias de Anthony Giddens; é lícito pensar que Gerhard Schroeder seja um aliado próximo. Essa terceira via une duas idéias: conferir o máximo de liberdade e responsabilidade possíveis ao maior número de pessoas, mas também lhes proporcionar os meios de ação ("empowerment"). A principal objeção erguida conta esse liberalismo social é que ele auxilia todos aqueles que já possuem meios de agir, mas não propõe soluções para o problema da precarização do trabalho.
Essa crítica faz com que muitos confiram novamente prioridade à pressão social exercida pelos excluídos e marginalizados não para que se chegue a uma política redistributiva ignorante das realidades econômicas, mas, ao contrário, para liberar o Estado da dominação exercida sobre ele pelas forças financeiras, sejam nacionais ou internacionais. Eu denomino essa via 2 «, já que ela é intermediária entre a terceira via e a antiga social-democracia, sendo esta última a segunda via, e o liberalismo, a primeira.
Se definirmos como "centro" o conjunto dos políticos convencidos de que é preciso combinar objetivos econômicos e objetivos sociais, o que Blair denomina terceira via constitui a centro-direita, e a outra política, 2 «, constitui a centro-esquerda. Na verdade, a diferença entre essas duas é menos de escolha ideológica do que de adaptação a realidades sociais. Em ambos os casos, a questão básica é reforçar a capacidade de ação pública; no primeiro, porém, confere-se à pressão dos mercados internacionais a tarefa de libertar o Estado de sua paralisia e de seus déficits, enquanto no segundo, a tarefa de reforçar o Estado cabe à pressão das forças populares.
Mas antes de seguir adiante, cabe dizer onde se manifesta essa lógica de centro-esquerda, essa política 2 «. A meu ver, ela é patente no México, talvez porque a abertura econômica lançada por De la Madrid tenha resultado, após um período de entusiasmo suscitado por Salinas, numa catástrofe política. Hoje, isso faz com que todos os mexicanos, e não somente o PRD, denunciem a corrupção e sobretudo o colossal escândalo do Fobaproa (1), que engoliu dezenas de bilhões de dólares. Sobretudo depois de 1985, formaram-se inúmeros movimentos de base que deram novo alento à sociedade civil, ao mesmo tempo em que se reconstituiu, ou melhor, se construiu um sistema político capaz de substituir o Estado-partido, hoje em ruínas.
Esse exemplo é tanto mais relevante pelo fato de o resto do continente considerar que o México, de tão incorporado aos Estados Unidos, tornou-se estranho a seus propósitos. Idéia perigosamente falsa. No caso europeu, é tanto na Europa mediterrânea -na Itália, antes da queda de Prodi, e em Portugal- quanto na Europa do norte, em especial na Dinamarca e na Holanda, que encontramos políticas 2 «. O caso italiano foi durante mais de dois anos o mais interessante, já que o governo Prodi recebia o apoio do Banco da Itália e do establishment econômico, do antigo partido político e sobretudo dos grandes sindicatos. Não cito aqui a França, que, embora se esforce para rumar nessa direção, ainda está muito presa ao antigo modelo da chamada social-democracia e esbarra em dificuldades para livrar-se de um setor público em apuros, mas no qual a opinião pública deposita um valor mítico.
O Brasil está numa situação que o obriga a dar preferência à terceira via. Essa, de resto, foi a escolha feita por FHC. Com isso ele desagradou à classe média do setor público, mas é justamente a reforma do Estado e das aposentadorias, em particular, que comanda a recuperação do país. E este acaba de reiterar sua confiança na política do presidente. O que os partidários e os adversários inteligentes deste último devem fazer é insistir para que essa política evolua rumo ao modelo 2 «, rumo à centro-esquerda, ou seja, rumo a uma pressão mais forte vinda das categorias populares desfavorecidas, o que supõe, por sua vez, que essa pressão não se perca em brumas populistas de inspiração teológica.
Será que essas análises cedem à tentação de criar categorias e classificações artificiais? De modo algum. Seu propósito é convencer que as escolhas ideológicas dos últimos 50 anos entre capitalismo e socialismo não possuem mais sentido hoje em dia, que a solução social nos moldes escandinavos também perdeu sua razão de ser. Todas essas soluções encontram-se no centro. Por outro lado, no interior desse último, existem diferenças reais e profundas entre uma centro-direita e uma centro-esquerda, diferenças que a idéia de pensamento único falsamente ignora. Devemos aprender a elaborar estratégias realistas, que dêem primazia à melhor forma de aumentar a capacidade de ação pública. A estratégia da terceira via seguida pelo Brasil nesses últimos anos foi um sucesso parcial, mas deve ser levada adiante em razão dos atuais perigos. Num futuro próximo, no entanto, é provável que FHC se aproxime da via 2 «, pois não haverá desenvolvimento duradouro no Brasil sem uma luta prioritária contra a desigualdade e a exclusão sociais.

Nota:
1. Programa do governo mexicano de socorro a bancos em dificuldades financeiras.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e publicou no Brasil, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (Vozes); ele escreve uma vez por mês na série "Autores" da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.




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