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AUTORES
Combate à desigualdade necessita de maior pressão das classes desfavorecidas
Desvio à esquerda
ALAIN TOURAINE
especial para a Folha
Todos são conscientes da extrema gravidade da crise que atravessa o Brasil. A exemplo de muitos
países, ela tem uma origem dupla.
A mais evidente é a amplitude destruidora da fuga de capitais que
perdem a confiança no futuro do
país e, como reflexo, põem em risco esse mesmo futuro, forçando
uma elevação sufocante das taxas
de juros. A outra é mais interior do
que exterior. O real se encontra sobrevalorizado, o comércio exterior sofre com esse ônus e o déficit
fiscal torna-se cada dia mais gravoso. Não seria o caso de desvalorizar o real? A pergunta já foi feita,
e a resposta do
governo brasileiro foi negativa.
Alegou-se, para justificá-la,
que uma desvalorização acarretaria efeitos sociais incontroláveis e, portanto,
o retorno da inflação. As situações do sistema
político e do Estado não melhoraram o bastante
para que esse
julgamento seja
modificado. Ao
contrário, o essencial, tanto no
interior quanto
no exterior, é
afirmar a capacidade de o Estado
administrar a
crise. É nesse espírito que os
eleitores reelegeram Fernando
Henrique no primeiro turno,
quando ele já havia anunciado o
plano de austeridade. Espera-se
que a vontade de
ação do governo
restabeleça a
confiança internacional. Aliás,
as circunstâncias
tornaram-se parcialmente favoráveis ao Brasil, já que a expressiva
queda do dólar resulta numa desvalorização do real em relação ao
euro, o que deverá facilitar as exportações brasileiras para essa zona.
A reação do presidente tem a
enorme vantagem de demonstrar
que os brasileiros querem um programa de governo. Talvez um dia
eles adotem aquele de Ciro Gomes, mas, em termos gerais, eles
não acreditam que o descontentamento e a ideologia diversa constituam um programa de governo.
Não é a pessoa de Lula que está em
questão, mas a ausência de uma
verdadeira unidade programática
do PT. Não basta denunciar a globalização e condenar a priori todas as políticas que se abrem à
economia mundial para convencer a população, ou convencer a si
próprios, de que uma mudança de
política trará efeitos benéficos; essa perspectiva suscita, ao contrário, incerteza e temor.
O mais importante para o Brasil,
assim como para muitos outros
países, é livrar-se de escolhas retóricas para definir escolhas reais,
sempre muito mais limitadas e cujos termos e consequências podem
ser definidos de maneira precisa.
Na América Latina ou na Europa,
não se trata mais de escolher entre
capitalismo e socialismo: o primeiro, porque não passa de uma
transição liberal; o segundo, porque não existe mais em lugar algum. Mas também não se trata de
construir uma social-democracia,
no momento em que acabam de
ruir os antigos regimes social-democratas, em especial o da Suécia.
A escolha real hesita entre duas
concepções bastante diversas, mas
bem mais próximas uma da outra
do que as noções vagas que acabam de ser evocadas. Seu tronco
comum, reconhecido por todos, é
a necessidade de reforçar a capacidade de intervenção do Estado e
do sistema político. A aceitação
dessa idéia é um progresso considerável, se nos lembrarmos que,
ainda há pouco, muitos falavam
de se apoderar e destruir um Estado que era o elo mais fraco da dominação imperialista, enquanto
outros consideravam que o Estado
era um simples obstáculo ao bom
funcionamento dos mercados.
Partamos, portanto, deste princípio, que hoje não é mais contestado e que até mesmo o FMI e o BID
reconhecem: é preciso reforçar o
Estado nacional.
Onde as posições se separam é
na resposta dada à pergunta de como conseguir tal feito. Para uns, é
a abertura ao mercado que permite reforçar efetivamente o Estado;
para outros, são as pressões populares que obrigam o Estado a resistir aos aspectos mais irracionais da
economia globalizada. As duas
respostas não são contraditórias,
mas complementares. É preciso,
contudo, distingui-las claramente
e sem apriorismos ideológicos.
Os partidários da primeira resposta pensam que o mais importante é desembaraçar o Estado do
antigo corporativismo que o esmaga e substituir um sistema político centrado no Estado pelo jogo
"normal", à inglesa, dos partidos
políticos. Essa solução foi batizada
de "terceira via". Tony Blair foi
quem a expôs de maneira mais
consequente, apoiando-se nas
idéias de Anthony Giddens; é lícito
pensar que Gerhard Schroeder seja um aliado próximo. Essa terceira via une duas idéias: conferir o
máximo de liberdade e responsabilidade possíveis ao maior número de pessoas, mas também lhes
proporcionar os meios de ação
("empowerment"). A principal
objeção erguida conta esse liberalismo social é que ele auxilia todos
aqueles que já possuem meios de
agir, mas não propõe soluções para o problema da precarização do
trabalho.
Essa crítica faz com que muitos
confiram novamente prioridade à
pressão social exercida pelos excluídos e marginalizados não para
que se chegue a uma política redistributiva ignorante das realidades
econômicas, mas, ao contrário,
para liberar o Estado da dominação exercida sobre ele pelas forças
financeiras, sejam nacionais ou
internacionais. Eu denomino essa
via 2 «, já que ela é intermediária
entre a terceira via e a antiga social-democracia, sendo esta última a segunda via, e o liberalismo,
a primeira.
Se definirmos como "centro" o
conjunto dos políticos convencidos de que é preciso combinar objetivos econômicos e objetivos sociais, o que Blair denomina terceira via constitui a centro-direita, e a
outra política, 2 «, constitui a centro-esquerda. Na verdade, a diferença entre essas duas é menos de
escolha ideológica do que de adaptação a realidades sociais. Em ambos os casos, a
questão básica é
reforçar a capacidade de ação pública; no primeiro, porém, confere-se à pressão
dos mercados internacionais a tarefa de libertar o
Estado de sua paralisia e de seus
déficits, enquanto no segundo, a
tarefa de reforçar
o Estado cabe à
pressão das forças populares.
Mas antes de
seguir adiante,
cabe dizer onde
se manifesta essa
lógica de centro-esquerda, essa política 2 «. A
meu ver, ela é patente no México,
talvez porque a
abertura econômica lançada por
De la Madrid tenha resultado,
após um período
de entusiasmo
suscitado por Salinas, numa catástrofe política.
Hoje, isso faz
com que todos os
mexicanos, e não
somente o PRD,
denunciem a
corrupção e sobretudo o colossal escândalo do
Fobaproa (1), que engoliu dezenas
de bilhões de dólares. Sobretudo
depois de 1985, formaram-se inúmeros movimentos de base que
deram novo alento à sociedade civil, ao mesmo tempo em que se reconstituiu, ou melhor, se construiu um sistema político capaz de
substituir o Estado-partido, hoje
em ruínas.
Esse exemplo é tanto mais relevante pelo fato de o resto do continente considerar que o México, de
tão incorporado aos Estados Unidos, tornou-se estranho a seus
propósitos. Idéia perigosamente
falsa. No caso europeu, é tanto na
Europa mediterrânea -na Itália,
antes da queda de Prodi, e em Portugal- quanto na Europa do norte, em especial na Dinamarca e na
Holanda, que encontramos políticas 2 «. O caso italiano foi durante
mais de dois anos o mais interessante, já que o governo Prodi recebia o apoio do Banco da Itália e do
establishment econômico, do antigo partido político e sobretudo
dos grandes sindicatos. Não cito
aqui a França, que, embora se esforce para rumar nessa direção,
ainda está muito presa ao antigo
modelo da chamada social-democracia e esbarra em dificuldades
para livrar-se de um setor público
em apuros, mas no qual a opinião
pública deposita um valor mítico.
O Brasil está numa situação que
o obriga a dar preferência à terceira via. Essa, de resto, foi a escolha
feita por FHC. Com isso ele desagradou à classe média do setor público, mas é justamente a reforma
do Estado e das aposentadorias,
em particular, que comanda a recuperação do país. E este acaba de
reiterar sua confiança na política
do presidente. O que os partidários e os adversários inteligentes
deste último devem fazer é insistir
para que essa política evolua rumo
ao modelo 2 «, rumo à centro-esquerda, ou seja, rumo a uma pressão mais forte vinda das categorias
populares desfavorecidas, o que
supõe, por sua vez, que essa pressão não se perca em brumas populistas de inspiração teológica.
Será que essas análises cedem à
tentação de criar categorias e classificações artificiais? De modo algum. Seu propósito é convencer
que as escolhas ideológicas dos últimos 50 anos entre capitalismo e
socialismo não possuem mais sentido hoje em dia, que a solução social nos moldes escandinavos também perdeu sua razão de ser. Todas essas soluções encontram-se
no centro. Por outro lado, no interior desse último, existem diferenças reais e profundas entre uma
centro-direita e uma centro-esquerda, diferenças que a idéia de
pensamento único falsamente ignora. Devemos aprender a elaborar estratégias realistas, que dêem
primazia à melhor forma de aumentar a capacidade de ação pública. A estratégia da terceira via
seguida pelo Brasil nesses últimos
anos foi um sucesso parcial, mas
deve ser levada adiante em razão
dos atuais perigos. Num futuro
próximo, no entanto, é provável
que FHC se aproxime da via 2 «,
pois não haverá desenvolvimento
duradouro no Brasil sem uma luta
prioritária contra a desigualdade e
a exclusão sociais.
Nota:
1. Programa do governo mexicano de socorro a bancos em dificuldades financeiras.
Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e publicou no Brasil, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (Vozes); ele escreve uma vez por mês na
série "Autores" da
Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.
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