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LIVROS
"História da Alimentação" estuda da pré-história aos hábitos atuais
dos norte-americanos
Olhos, boca e barriga
MARCO ANTONIO VILLA
especial para a Folha
A "História da Alimentação",
que chega às livrarias nesta semana, está dividida em sete partes,
seguindo a divisão tradicional dos
manuais de história européia
(pré-história, antiguidade etc.),
com 47 capítulos desenvolvidos
em quase 900 páginas.
Jean-Louis Flandrin e Massimo
Montanari, diretores da obra, pretendem apresentar a história da
alimentação de maneira temática,
com "estudos sobre os aspectos
econômico e demográfico (ou seja, sobre o binômio produção-consumo), sobre as diferenças entre a alimentação das cidades e do campo, sobre a arte culinária, a dietética, as refeições e os
costumes à mesa, os aspectos simbólicos da alimentação etc".
A primeira parte trata da
pré-história e das primeiras civilizações do Oriente Próximo. Sobre
a pré-história, Catherine Pérles
descreve como, há 500 mil anos, o
uso regular do fogo pelos homens
acabou modificando a alimentação e os comportamentos sociais.
Com as primeiras fogueiras temos
indícios do cozimento dos alimentos e o surgimento do hábito de
realizar as refeições em comum.
Na Mesopotâmia, os banquetes
assumiram um papel religioso,
onde os deuses tomavam importantes decisões. Para Francis Joannés, "é o deus mais velho ou mais
bem colocado na hierarquia que o
organiza e faz os convites. No poema babilônico da Criação
("Enouma Elish"), quando os
deuses estão procurando um campeão para combater o Mar (a deusa Tiamat), que quer arrasá-los, é
o deus Anshar, o mais eminente
deles, que cuida de reuni-los. Esses banquetes são descritos como
momentos de festejos".
Na segunda parte, que trata do
mundo greco-romano, é analisado como foi construída a consciência de que ser civilizado era
produzir o próprio alimento, diversamente dos "bárbaros", que
não comiam pão nem bebiam vinho e se alimentavam da carne e
bebiam leite.
No mundo greco-romano, os
convivas participavam dos banquetes semideitados. Na Grécia,
apoiavam-se sobre o cotovelo direito tendo ao lado da cama inclinada uma pequena mesa. Já em
Roma, as camas circundavam
uma mesa onde estavam os alimentos.
Diversamente dos gregos, os romanos não separavam a bebida do
momento da refeição. Os judeus,
que comiam sentados, também
abandonaram a tradição: é provável que a última refeição de Jesus
com os apóstolos tenha acontecido segundo a forma romana. Se os
nobres romanos tinham uma alimentação sofisticada, o mesmo
não ocorria com os soldados: estes
se alimentavam de pão, carne,
óleo e vinho. A bebida mais popular entre os militares era a posca
- água misturada com vinagre;
um soldado romano, segundo a
tradição, teria umedecido com ela
os lábios de Jesus na cruz.
Na terceira parte, sobre as invasões bárbaras e a alta Idade Média,
temos o contato entre o mundo
bárbaro e romano.
Apesar de vitoriosos militarmente, os bárbaros, especialmente
da elite dirigente, acabaram sucumbindo diante da alimentação
ocidental. A vitória do cristianismo, primeiro como religião oficial
do Império Romano e depois convertendo os bárbaros, acabou por
europeizar o consumo do vinho,
do pão e do óleo -sagrados na liturgia cristã-, manteve os hábitos alimentares romanos e os interditos religiosos.
A quarta parte é formada por
três capítulos: um para os bizantinos, outro para os árabes e o último para os judeus. Foram os islâmicos que acabaram deixando a
maior herança alimentícia para os
europeus (e para o mundo). Por
meio da Espanha e do sul da Itália
-domínios islâmicos durante vários séculos-, acabaram chegando à Europa diversos produtos,
receitas e hábitos alimentares. Entre tantos produtos podem ser
lembrados os legumes: aspargo,
espinafre, acelga, berinjela, cenoura, alcachofra, lentilha, fava,
grão-de-bico e ervilha.
Na quinta parte, reservada à baixa Idade Média, temos o surgimento de uma culinária urbana, a
valorização do pão branco, das
carnes frescas, da carne de carneiro em relação à carne de porco.
Apareceram as boas maneiras, a
"etiqueta", a faca passou a ser
um componente da mesa, assim
como o garfo, que acabou se tornando um utensílio doméstico
após a peste negra (1347-1349).
Nessa época aumentou a distância
física entre os comensais devido à
generalização do uso de pratos,
copos e talheres individuais.
A sexta parte, correspondente à
era moderna, é a melhor do livro.
Por meio da expansão colonial novos produtos chegaram à Europa:
pimentão, peru -chamado de galinha-da-índia-, batata, café, milho, tomate, feijão americano,
chá, chocolate, entre outros. Com
a Reforma protestante, no século
16, foram abolidos vários interditos da Igreja Católica, o que acabou possibilitando a diversificação das cozinhas nacionais. Mas
uma das maiores modificações foi
trazida pela abundância no consumo de açúcar a partir do século 17
-devido ao barateamento do
produto graças às plantações na
América- e as popularizações do
chá, café e chocolate.
O cacau, originário da América,
chegou à Europa pela Espanha,
quando, em 1527, Hernan Cortez
enviou algumas amostras a Carlos
5º. No México era tomado pelos
astecas na forma líquida após ser
fervido com pimentão. Após a
conquista, religiosas de um convento em Oaxaca teriam substituído o pimentão pelo açúcar de cana
e criado o chocolate.
O café, originário da Etiópia e
depois levado para o Iêmen, popularizou-se seguindo os passos do
expansionismo islâmico. No
Oriente, desde o século 15, havia
estabelecimentos servindo café.
No século 17, os italianos resolveram eliminar a borra do café turco
por meio do lançamento de água
fervente sob o café abrigado em
um filtro de pano. A partir de então, essa forma de tomar café foi
transmitida a toda a Europa. Já o
chá ficou restrito à Inglaterra e
Rússia. Paradoxalmente, nas regiões de origem, chocolate, chá e
café eram tomados sem qualquer
adoçante, conservando um gosto
amargo.
Dentre os produtos coloniais, a
batata acabou tendo um curioso
percurso. Originária da América,
acabou se transformando no século 17 no alimento básico da Irlanda, Inglaterra e Holanda. Na Alemanha, somente no século 19,
após uma grave crise agrícola, foi
adotada como alimento humano.
Até então era cultivada para consumo dos porcos.
A última parte do livro é dedicada à era contemporânea. A Revolução Industrial acabou alterando
profundamente a alimentação:
produtos fabricados artesanalmente durante séculos passaram a
ser fabricados pelas indústrias (farinha, manteiga, queijo) e outros
foram criados (leite condensado e
em pó); novos aparelhos são usados no preparo das refeições (fogão a gás, batedeira). Além disso,
comer deixou de ser um ato exclusivamente doméstico.
Na segunda metade do século 20
temos o renascimento da dietética, aumenta o consumo de legumes e frutas, diminui o consumo
de carne vermelha e do açúcar. A
utilização indiscriminada de adubos químicos acabou levando a
uma diminuição nos preços das
mercadorias, mas também a uma
queda da qualidade. A indústria
passou a ditar o ritmo da alimentação e até dos regimes.
A marca deste final de milênio é
o modo de comer dos americanos.
Para eles, as horas destinadas às
refeições não existem em si; é possível, ao mesmo tempo, comer e
trabalhar. Lembra Claude Fischler
que os espiões iraquianos nos Estados Unidos poderiam ter sido
mais eficientes caso prestassem
atenção aos pedidos que o Pentágono e a Casa Branca fizeram a
Domino's Pizza horas antes do
bombardeio a Bagdá. A Casa
Branca pediu 55 pizzas (em vez da
média de 5) e o Pentágono 101
(contra 3 em média).
"História da Alimentação" é
um livro agradável, mas há algumas falhas. O leitor notará o excessivo eurocentrismo -que na
maior parte da obra se restringe
ainda mais, detendo-se exclusivamente na alimentação da França e
da Itália-, como se o resto do
mundo fosse um mero complemento da Europa, excetuando-se
o último capítulo dedicado aos Estados Unidos. Há um certo tom
nacionalista em várias passagens
do livro. Um exemplo: "Todos
nós sabemos que os franceses, depois de terem aprendido com os
italianos, têm o gosto mais requintado do mundo". Coincidentemente, os organizadores são um
italiano e um francês.
Isso acaba empobrecendo a
obra, pois escrever sobre alimentação e ignorar a América Latina,
África, Japão, Índia e, principalmente, a China é uma tolice tão
grande como um chinês escrever
sobre o mesmo tema e omitir a importância da culinária francesa.
Não é possível argumentar que faltou espaço, pois o livro tem 900
páginas e há capítulos pouco importantes, como o dedicado à alimentação dos etruscos. Vale lembrar que temos um belíssimo livro
sobre o tema, a "História da Alimentação no Brasil", de Luis da
Câmara Cascudo.
Como cada capítulo foi escrito
por um especialista, é natural que
a obra não mantenha a regularidade. Há capítulos brilhantes e outros razoáveis. A tradução, velho
problema dos nossos editores,
nem sempre é feliz e comete vários
equívocos. Como na pág. 609, ao
comentar a expansão do café pelo
Oeste paulista: "Multiplicaram-se
as fazendas nas boas terras violeta
de São Paulo". Obviamente, o autor está se referindo à terra roxa.
Estes pequenos problemas não
diminuem a importância do livro.
Pelo contrário, ao final da leitura
nos identificamos com as palavras
do sábio Coélet, autor do "Eclesiastes", que no século 3º a.C. escreveu: "Todo trabalho do homem é para a sua boca e, no entanto, seu apetite nunca está satisfeito" ("Eclesiastes", 6, 7).
A OBRA
História da Alimentação - Organização de Jean Louis Flandrin e Massimo Montanari. Tradução de Luciano Vieira Machado e Guilherme Teixeira. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, SP, tel. 011/3824-0020). 920 págs. R$ 65,00.
Marco Antonio Villa é professor de história da
Universidade Federal de São Carlos e autor de
"O Nascimento da República", entre outros.
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