São Paulo, domingo, 6 de dezembro de 1998

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LIVROS
"História da Alimentação" estuda da pré-história aos hábitos atuais dos norte-americanos
Olhos, boca e barriga

MARCO ANTONIO VILLA
especial para a Folha

A "História da Alimentação", que chega às livrarias nesta semana, está dividida em sete partes, seguindo a divisão tradicional dos manuais de história européia (pré-história, antiguidade etc.), com 47 capítulos desenvolvidos em quase 900 páginas.
Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, diretores da obra, pretendem apresentar a história da alimentação de maneira temática, com "estudos sobre os aspectos econômico e demográfico (ou seja, sobre o binômio produção-consumo), sobre as diferenças entre a alimentação das cidades e do campo, sobre a arte culinária, a dietética, as refeições e os costumes à mesa, os aspectos simbólicos da alimentação etc".
A primeira parte trata da pré-história e das primeiras civilizações do Oriente Próximo. Sobre a pré-história, Catherine Pérles descreve como, há 500 mil anos, o uso regular do fogo pelos homens acabou modificando a alimentação e os comportamentos sociais. Com as primeiras fogueiras temos indícios do cozimento dos alimentos e o surgimento do hábito de realizar as refeições em comum.
Na Mesopotâmia, os banquetes assumiram um papel religioso, onde os deuses tomavam importantes decisões. Para Francis Joannés, "é o deus mais velho ou mais bem colocado na hierarquia que o organiza e faz os convites. No poema babilônico da Criação ("Enouma Elish"), quando os deuses estão procurando um campeão para combater o Mar (a deusa Tiamat), que quer arrasá-los, é o deus Anshar, o mais eminente deles, que cuida de reuni-los. Esses banquetes são descritos como momentos de festejos".
Na segunda parte, que trata do mundo greco-romano, é analisado como foi construída a consciência de que ser civilizado era produzir o próprio alimento, diversamente dos "bárbaros", que não comiam pão nem bebiam vinho e se alimentavam da carne e bebiam leite.
No mundo greco-romano, os convivas participavam dos banquetes semideitados. Na Grécia, apoiavam-se sobre o cotovelo direito tendo ao lado da cama inclinada uma pequena mesa. Já em Roma, as camas circundavam uma mesa onde estavam os alimentos.
Diversamente dos gregos, os romanos não separavam a bebida do momento da refeição. Os judeus, que comiam sentados, também abandonaram a tradição: é provável que a última refeição de Jesus com os apóstolos tenha acontecido segundo a forma romana. Se os nobres romanos tinham uma alimentação sofisticada, o mesmo não ocorria com os soldados: estes se alimentavam de pão, carne, óleo e vinho. A bebida mais popular entre os militares era a posca - água misturada com vinagre; um soldado romano, segundo a tradição, teria umedecido com ela os lábios de Jesus na cruz.
Na terceira parte, sobre as invasões bárbaras e a alta Idade Média, temos o contato entre o mundo bárbaro e romano.
Apesar de vitoriosos militarmente, os bárbaros, especialmente da elite dirigente, acabaram sucumbindo diante da alimentação ocidental. A vitória do cristianismo, primeiro como religião oficial do Império Romano e depois convertendo os bárbaros, acabou por europeizar o consumo do vinho, do pão e do óleo -sagrados na liturgia cristã-, manteve os hábitos alimentares romanos e os interditos religiosos.
A quarta parte é formada por três capítulos: um para os bizantinos, outro para os árabes e o último para os judeus. Foram os islâmicos que acabaram deixando a maior herança alimentícia para os europeus (e para o mundo). Por meio da Espanha e do sul da Itália -domínios islâmicos durante vários séculos-, acabaram chegando à Europa diversos produtos, receitas e hábitos alimentares. Entre tantos produtos podem ser lembrados os legumes: aspargo, espinafre, acelga, berinjela, cenoura, alcachofra, lentilha, fava, grão-de-bico e ervilha.
Na quinta parte, reservada à baixa Idade Média, temos o surgimento de uma culinária urbana, a valorização do pão branco, das carnes frescas, da carne de carneiro em relação à carne de porco. Apareceram as boas maneiras, a "etiqueta", a faca passou a ser um componente da mesa, assim como o garfo, que acabou se tornando um utensílio doméstico após a peste negra (1347-1349). Nessa época aumentou a distância física entre os comensais devido à generalização do uso de pratos, copos e talheres individuais.
A sexta parte, correspondente à era moderna, é a melhor do livro. Por meio da expansão colonial novos produtos chegaram à Europa: pimentão, peru -chamado de galinha-da-índia-, batata, café, milho, tomate, feijão americano, chá, chocolate, entre outros. Com a Reforma protestante, no século 16, foram abolidos vários interditos da Igreja Católica, o que acabou possibilitando a diversificação das cozinhas nacionais. Mas uma das maiores modificações foi trazida pela abundância no consumo de açúcar a partir do século 17 -devido ao barateamento do produto graças às plantações na América- e as popularizações do chá, café e chocolate.
O cacau, originário da América, chegou à Europa pela Espanha, quando, em 1527, Hernan Cortez enviou algumas amostras a Carlos 5º. No México era tomado pelos astecas na forma líquida após ser fervido com pimentão. Após a conquista, religiosas de um convento em Oaxaca teriam substituído o pimentão pelo açúcar de cana e criado o chocolate.
O café, originário da Etiópia e depois levado para o Iêmen, popularizou-se seguindo os passos do expansionismo islâmico. No Oriente, desde o século 15, havia estabelecimentos servindo café. No século 17, os italianos resolveram eliminar a borra do café turco por meio do lançamento de água fervente sob o café abrigado em um filtro de pano. A partir de então, essa forma de tomar café foi transmitida a toda a Europa. Já o chá ficou restrito à Inglaterra e Rússia. Paradoxalmente, nas regiões de origem, chocolate, chá e café eram tomados sem qualquer adoçante, conservando um gosto amargo.
Dentre os produtos coloniais, a batata acabou tendo um curioso percurso. Originária da América, acabou se transformando no século 17 no alimento básico da Irlanda, Inglaterra e Holanda. Na Alemanha, somente no século 19, após uma grave crise agrícola, foi adotada como alimento humano. Até então era cultivada para consumo dos porcos.
A última parte do livro é dedicada à era contemporânea. A Revolução Industrial acabou alterando profundamente a alimentação: produtos fabricados artesanalmente durante séculos passaram a ser fabricados pelas indústrias (farinha, manteiga, queijo) e outros foram criados (leite condensado e em pó); novos aparelhos são usados no preparo das refeições (fogão a gás, batedeira). Além disso, comer deixou de ser um ato exclusivamente doméstico.
Na segunda metade do século 20 temos o renascimento da dietética, aumenta o consumo de legumes e frutas, diminui o consumo de carne vermelha e do açúcar. A utilização indiscriminada de adubos químicos acabou levando a uma diminuição nos preços das mercadorias, mas também a uma queda da qualidade. A indústria passou a ditar o ritmo da alimentação e até dos regimes.
A marca deste final de milênio é o modo de comer dos americanos. Para eles, as horas destinadas às refeições não existem em si; é possível, ao mesmo tempo, comer e trabalhar. Lembra Claude Fischler que os espiões iraquianos nos Estados Unidos poderiam ter sido mais eficientes caso prestassem atenção aos pedidos que o Pentágono e a Casa Branca fizeram a Domino's Pizza horas antes do bombardeio a Bagdá. A Casa Branca pediu 55 pizzas (em vez da média de 5) e o Pentágono 101 (contra 3 em média).
"História da Alimentação" é um livro agradável, mas há algumas falhas. O leitor notará o excessivo eurocentrismo -que na maior parte da obra se restringe ainda mais, detendo-se exclusivamente na alimentação da França e da Itália-, como se o resto do mundo fosse um mero complemento da Europa, excetuando-se o último capítulo dedicado aos Estados Unidos. Há um certo tom nacionalista em várias passagens do livro. Um exemplo: "Todos nós sabemos que os franceses, depois de terem aprendido com os italianos, têm o gosto mais requintado do mundo". Coincidentemente, os organizadores são um italiano e um francês.
Isso acaba empobrecendo a obra, pois escrever sobre alimentação e ignorar a América Latina, África, Japão, Índia e, principalmente, a China é uma tolice tão grande como um chinês escrever sobre o mesmo tema e omitir a importância da culinária francesa. Não é possível argumentar que faltou espaço, pois o livro tem 900 páginas e há capítulos pouco importantes, como o dedicado à alimentação dos etruscos. Vale lembrar que temos um belíssimo livro sobre o tema, a "História da Alimentação no Brasil", de Luis da Câmara Cascudo.
Como cada capítulo foi escrito por um especialista, é natural que a obra não mantenha a regularidade. Há capítulos brilhantes e outros razoáveis. A tradução, velho problema dos nossos editores, nem sempre é feliz e comete vários equívocos. Como na pág. 609, ao comentar a expansão do café pelo Oeste paulista: "Multiplicaram-se as fazendas nas boas terras violeta de São Paulo". Obviamente, o autor está se referindo à terra roxa.
Estes pequenos problemas não diminuem a importância do livro. Pelo contrário, ao final da leitura nos identificamos com as palavras do sábio Coélet, autor do "Eclesiastes", que no século 3º a.C. escreveu: "Todo trabalho do homem é para a sua boca e, no entanto, seu apetite nunca está satisfeito" ("Eclesiastes", 6, 7).



A OBRA

História da Alimentação - Organização de Jean Louis Flandrin e Massimo Montanari. Tradução de Luciano Vieira Machado e Guilherme Teixeira. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, SP, tel. 011/3824-0020). 920 págs. R$ 65,00.



Marco Antonio Villa é professor de história da Universidade Federal de São Carlos e autor de "O Nascimento da República", entre outros.



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