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Erudito dissonante
Morto no dia 30, Wilson Martins dignificou a crítica de jornal, mas foi ignorado no debate acadêmico
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Wilson Martins
(1921-2010),
sob vários títulos, poderia
ser autor muito lido, citado e consultado na
crítica universitária contemporânea. Em primeiro lugar, pela
aproximação ampla que tentou
da cultura material e, em particular, da história do livro e da
leitura -hoje, objeto de uma
infinidade de teses e artigos.
Foi o que fez, por exemplo,
em "A Palavra Escrita - História do Livro, da Imprensa e da
Biblioteca" (1957), quando os
historiadores Robert Darnton
ou Roger Chartier nem haviam
feito graduação.
Depois, pelo esforço de pesquisa documental exaustiva,
pela disposição de compor inventários, séries cronológicas e
biobibliográficas, que hoje são
procedimentos correntes e valorizados nas investigações de
arquivo em todas as faculdades
importantes do país.
Nem seria preciso lembrar o
quanto isso ocorre nos sete volumes da "História da Inteligência Brasileira" (1976-79).
Martins poderia ser autor
apreciado também pelo amplo
cruzamento de áreas que promove em suas análises, pela
comparação sistemática da literatura com os diversos gêneros letrados praticados em certo período.
Encontra hoje muitos ecos a
sua tentativa metodológica de
elencar e contrapor diferentes
fenômenos intelectuais, de
modo a lançar hipóteses sobre
a sua estrutura comum, a detectar o que constituísse a sua
"forma mentis", como dizia,
bem como a homologia entre
as várias práticas intelectuais e
artísticas.
É o que ocorre não apenas na
citada "História da Inteligência
Brasileira", cujo título já é elucidativo desse empreendimento interdisciplinar, mas de boa
parte de sua crítica.
Mas não se passa assim. Talvez consultado, antes das aulas,
mas não discutido dentro delas; poucas vezes debatido nas
bancas diárias dos estudos literários na universidade.
Por que isso se dá? Ou melhor, como isso se deu?, ocorre
perguntar, quando a sua morte
tão recente salienta, de repente, a sua ausência anterior.
É possível que o descaso seja
fruto colhido pela ruptura do
pacto de cordialidade no trato
de parceiros de profissão? Está
claro que Martins não tinha
mãos para panos quentes e sua
escrita deixava vazar sem dó o
gosto da polêmica e da mordida
crítica. Não raro, anotava na
obra examinada a pouca familiaridade com a matéria, a ignorância bibliográfica, a indigência no domínio da língua, quando não isso tudo, e mais.
Em qualquer ano que se
abra, por exemplo, os dois volumes da sua "Crítica Literária
no Brasil" (1983), colegas de
ofício, com carreira acadêmica
e representação institucional
importantes, se veem constrangidos a lhe sentir publicamente a fervura do verbo. A vontade de tornar expressiva e superjustificada a crítica
que fazia, mais do que de matizá-la e equilibrá-la, dava ar de
truculência verbal e mesmo de
destempero ao que, por outro
lado, estava mais para orgulho
de andar sozinho, de ser avis
rara "no país da patotagem, do
compadrio, do você é de direita, eu sou de esquerda", como o
traduziu seu editor José Mario Pereira.
É como se não aliviasse a
mão para deixar claro que se
comprometia moralmente,
existencialmente, com a dissonância que introduzia na conversa, e que o desacordo era o
modo privilegiado de fazer andar a conversa.
À estridência de sua crítica,
que entrava sem pedir licença
na cena da leitura, confundindo, por vezes, rigor e falta de
polidez, tem correspondido o
silêncio diante dela, o que tanto ressalta o ambiente suscetível e aparelhado, como a simples indisposição para o trabalho que daria responder a ela.
Mas essa é apenas a hipótese
mais imediata para o terceiro
plano ao qual se relega a sua
obra vasta, de proliferação enciclopédica.
Se comecei dizendo que
Martins calhava com certa tendência inventarial da crítica
contemporânea, ele se afasta
dela não apenas pela exacerbação crítica, pela erudição, mas
sobretudo pela concepção de
crítica, que dá primazia cultural ao debate e ao juízo "a quente" da produção contemporânea -exercidos principalmente nas páginas dos jornais- sobre o ensaio crítico universitário elaborado sobre o consagrado e consensual.
Quando ele diz que "a crítica
só pode ser universitária depois que a crítica jornalística
deu a sua palavra", não está
afirmando apenas uma prerrogativa temporal, mas uma precedência epistemológica.
Num ambiente em que o jornalismo literário e de erudição
autodidata já perdeu há muito
tempo o prestígio diante da especialização universitária,
compreende-se que Martins
soe antiquado.
Não é o mais grave. Não é
apenas que, por exemplo, as
páginas de literatura se encolham nos jornais, não fosse por
outro motivo, pela falta de eruditos nas redações ou de intelectuais de primeira dispostos
a entrar na cena armada dos
lançamentos editoriais.
Mais drástico é o encolhimento dos estudos literários
dentro dos próprios departamentos universitários de literatura, a qual perde -já perdeu- não apenas espaço para
os estudos culturalistas de gêneros, minorias, direitos, testemunhos terríveis e edificantes,
como para a "teoria" que a toma como ilustração e exemplo,
não como corpo epistemológico da investigação ou do prazer
físico da leitura.
Quer dizer, quando a própria
literatura sai de cena, o nome
de Martins é só mais um que
sai junto com ela.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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