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AUTORES
Mais do que descrever as leis da sociedade, o mercado as interpreta de modo infeliz
O curto-circuito da economia
BRUNO LATOUR
especial para a Folha
A esquerda nunca teve muita
sorte com a ciência. Depois de ter
associado a ciência à luta contra o
obscurantismo e a favor do progresso, ela quis, resguardada na
sólida autoridade dos marxistas,
inventar uma política "enfim
científica". Mas a vida política
não carecia de ciência e sim, principalmente, de política, isto é, de
democracia. Ao inventar uma economia científica de esquerda, os
marxistas inventaram, no século
19, uma forma de curto-circuitar
as exigências da vida política. Ao
abrigo de uma extensão da razão
científica, dissimulava-se de fato
um total desdém pelas formas
próprias à vida política. Os resultados catastróficos disso são, infelizmente, bem conhecidos hoje
para que se tenha a necessidade de
recordá-los.
É em nome da "ciência" econômica, das leis "científicas" da história, de uma política enfim
"científica" que se pôde massacrar tanta gente. Infelizmente, o
desmoronamento do marxismo
não permitiu que se tirassem desse
erro as conclusões que se impunham. Acreditou-se que o marxismo desabou porque teria "politizado" indevidamente uma ciência exata, a saber, a economia liberal neoclássica. Querem nos fazer
crer que, depois desse "desvio"
político do marxismo, nada resta
além de uma ciência triunfante e
indiscutível: a economia. Ora, tirar uma tal conclusão da terrificante experiência deste século que
em breve termina seria juntar um
terror novo àquele que se pretende
explicar.
Na verdade, o marxismo desmoronou por pretender tornar científica a política por meio da economia e não por ter indevidamente
politizado a ciência econômica.
Temos felizmente em Karl Polanyi
(1) um mestre, igualmente de esquerda, mas infinitamente mais
profundo que Marx. Os pecados
que um primeiro Karl cometeu,
um segundo Karl pode apagar! A
diferença essencial entre os dois
argumentos vem do lugar da economia. Para Marx, como para os
liberais que ele acreditava combater, a economia como coisa existe
e serve de infra-estrutura indiscutível para o resto da vida social.
Para Polanyi, pelo contrário, é justamente essa crença que permitiu
o desenvolvimento do capitalismo, e uma economia política de
esquerda deve justamente "evitar
compartilhá-la".
A ciência econômica nada mais é
do que uma interpretação infeliz
de fenômenos desencadeados por
um erro: "Para assombro dos espíritos refletidos, descobriu-se
que uma riqueza inaudita era inseparável de uma pobreza inaudita.
Os cientistas proclamavam em
uníssono que havia sido descoberta uma ciência que não deixava a
menor dúvida a respeito das leis
que governavam o mundo dos homens. Foi sob a autoridade de tais
leis que a compaixão foi arrancada
dos corações e que uma determinação estóica de renunciar à solidariedade humana, isto é, o maior
bem do maior número, adquiriu a
dignidade de uma religião secular" (pág. 144 da edição francesa).
Coisa surpreendente: a economia como coisa provém da economia como disciplina ou, como diriam os ingleses -que têm dois
termos, enquanto o português
tem apenas um- "economies are
produced by economics". Se Polanyi, 50 anos depois, permanece
exatamente tão novo quanto em
seus primeiros dias -enquanto
Marx parece tão datado- é porque ele é o único a ter sabido antropologizar o mercado (2). Não
se trata, como é frequentemente
afirmado, de juntar à economia a
influência do mundo social, das
relações de confiança, das redes de
comprometimentos, enfim, de tudo o que a socioeconomia pretende analisar, frequentemente de
forma brilhante.
Trata-se de algo bem mais profundo: a economia como disciplina não "descreve" o mercado auto-regulado, mas antes o executa,
isto é, o produz por imposição
mais ou menos violenta daquilo
que ele deve ser (3). A ciência econômica não descobre as leis indiscutíveis da natureza social: ela oferece uma interpretação cuja extensão é indispensável à sua continuação. Se ser de esquerda, para
Marx, queria dizer colocar no lugar de uma economia "burguesa" e "ideológica" uma economia "enfim científica", ser de esquerda para Polanyi quer dizer
que é absolutamente proibido
acreditar que a ciência econômica
descreva o mundo do qual fala. Ela
"prescreve" a forma que deseja
que se passe usar para falar do
mundo. Não é de maneira alguma
a mesma coisa.
Essas duas interpretações diferentes das ligações entre a esquerda, a ciência e a economia têm
uma consequência essencial sobre
a concepção da história e sobre a
política. Enquanto, para Marx, a
história obedecia a uma lei dialética pela qual o socialismo "concluía", em todos os sentidos da
palavra, a economia burguesa, para o segundo Karl a história dos
dois últimos séculos é aquela da
resistência legítima de toda vida
social contra a interpretação dada
pela economia para os fenômenos
disparados sob seus auspícios:
"É o mito da conspiração antiliberal que, sob uma ou outra forma, é comum a todas as interpretações, de 1870 a 1890 (...). É assim
que, sob sua forma mais espiritualizada, a doutrina liberal hipostasia o funcionamento de alguma lei
dialética da sociedade moderna
que torna vãos os esforços do pensamento esclarecido, ao passo
que, em sua visão grosseira, ela se
reduz a um ataque contra a democracia política, suposta como o
principal reduto do intervencionismo. O testemunho dos fatos
contradiz a tese liberal de forma
decisiva. A conspiração antiliberal
é pura invenção. A variedade das
formas tomadas pelo contramovimento "coletivista" não é devida a
alguma preferência pelo socialismo ou pelo nacionalismo de parte
dos interesses implicados, mas exclusivamente ao registro mais amplo dos interesses sociais vitais
atingidos pelo mecanismo do
mercado em expansão" (pág. 196
da edição francesa).
Não acreditar na economia como descrição dos mercados pode
ser o novo sinal pelo qual se reconhecerá o pensamento de esquerda. Em todo caso, está claro que,
no próximo século, não se aceitará
mais chamar "de esquerda" a alguém que pretenda que as leis da
economia lhe permitam curto-circuitar mais rapidamente a vida
política. Se este século foi tão frequentemente marxista, o próximo
será talvez polanyista.
Notas
1. Karl Polanyi, "La Grande Transformation - Aux Origines Politiques et Economiques de Notre Temps" (A Grande Transformação - Em Direção às Origens Políticas e
Econômicas de Nosso Tempo), Gallimard,
Paris, 1983, tradução do original em inglês "The Great Transformation", Beacon
Press, Boston, 1944;
2. No livro de meu amigo Michel Callon
está uma excepcional síntese das discussões recentes sobre os pontos fortes e fracos da antropologização do mercado. Michel Callon (editor), "The Laws of the Market" (As Leis do Mercado), Routledge,
Londres, 1998;
3. Isso é ainda mais verdade no que diz
respeito à contabilidade, como mostram
os apaixonantes trabalhos reunidos por
Michael Power (editor) em "Accounting
and Science - National Inquiry and Commercial Reason" (Contabilidade e Ciência -
Levantamento Nacional e Razão Comercial), Cambridge University Press, Cambridge, 1995.
Bruno Latour é sociólogo e pesquisador da
ciência francês, autor, entre outros, de "A Vida
de Laboratório" (Relume-Dumará), "Jamais Fomos Modernos" (Ed. 34) e acaba de publicar "Paris - Ville Invisible" (Paris - Cidade Invisível, La
Découverte), com Emille Hermant.
Tradução de Jesus de Paula Assis.
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