São Paulo, Domingo, 07 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AUTORES
Mais do que descrever as leis da sociedade, o mercado as interpreta de modo infeliz
O curto-circuito da economia

BRUNO LATOUR
especial para a Folha

A esquerda nunca teve muita sorte com a ciência. Depois de ter associado a ciência à luta contra o obscurantismo e a favor do progresso, ela quis, resguardada na sólida autoridade dos marxistas, inventar uma política "enfim científica". Mas a vida política não carecia de ciência e sim, principalmente, de política, isto é, de democracia. Ao inventar uma economia científica de esquerda, os marxistas inventaram, no século 19, uma forma de curto-circuitar as exigências da vida política. Ao abrigo de uma extensão da razão científica, dissimulava-se de fato um total desdém pelas formas próprias à vida política. Os resultados catastróficos disso são, infelizmente, bem conhecidos hoje para que se tenha a necessidade de recordá-los.
É em nome da "ciência" econômica, das leis "científicas" da história, de uma política enfim "científica" que se pôde massacrar tanta gente. Infelizmente, o desmoronamento do marxismo não permitiu que se tirassem desse erro as conclusões que se impunham. Acreditou-se que o marxismo desabou porque teria "politizado" indevidamente uma ciência exata, a saber, a economia liberal neoclássica. Querem nos fazer crer que, depois desse "desvio" político do marxismo, nada resta além de uma ciência triunfante e indiscutível: a economia. Ora, tirar uma tal conclusão da terrificante experiência deste século que em breve termina seria juntar um terror novo àquele que se pretende explicar.
Na verdade, o marxismo desmoronou por pretender tornar científica a política por meio da economia e não por ter indevidamente politizado a ciência econômica. Temos felizmente em Karl Polanyi (1) um mestre, igualmente de esquerda, mas infinitamente mais profundo que Marx. Os pecados que um primeiro Karl cometeu, um segundo Karl pode apagar! A diferença essencial entre os dois argumentos vem do lugar da economia. Para Marx, como para os liberais que ele acreditava combater, a economia como coisa existe e serve de infra-estrutura indiscutível para o resto da vida social. Para Polanyi, pelo contrário, é justamente essa crença que permitiu o desenvolvimento do capitalismo, e uma economia política de esquerda deve justamente "evitar compartilhá-la".
A ciência econômica nada mais é do que uma interpretação infeliz de fenômenos desencadeados por um erro: "Para assombro dos espíritos refletidos, descobriu-se que uma riqueza inaudita era inseparável de uma pobreza inaudita. Os cientistas proclamavam em uníssono que havia sido descoberta uma ciência que não deixava a menor dúvida a respeito das leis que governavam o mundo dos homens. Foi sob a autoridade de tais leis que a compaixão foi arrancada dos corações e que uma determinação estóica de renunciar à solidariedade humana, isto é, o maior bem do maior número, adquiriu a dignidade de uma religião secular" (pág. 144 da edição francesa).
Coisa surpreendente: a economia como coisa provém da economia como disciplina ou, como diriam os ingleses -que têm dois termos, enquanto o português tem apenas um- "economies are produced by economics". Se Polanyi, 50 anos depois, permanece exatamente tão novo quanto em seus primeiros dias -enquanto Marx parece tão datado- é porque ele é o único a ter sabido antropologizar o mercado (2). Não se trata, como é frequentemente afirmado, de juntar à economia a influência do mundo social, das relações de confiança, das redes de comprometimentos, enfim, de tudo o que a socioeconomia pretende analisar, frequentemente de forma brilhante.
Trata-se de algo bem mais profundo: a economia como disciplina não "descreve" o mercado auto-regulado, mas antes o executa, isto é, o produz por imposição mais ou menos violenta daquilo que ele deve ser (3). A ciência econômica não descobre as leis indiscutíveis da natureza social: ela oferece uma interpretação cuja extensão é indispensável à sua continuação. Se ser de esquerda, para Marx, queria dizer colocar no lugar de uma economia "burguesa" e "ideológica" uma economia "enfim científica", ser de esquerda para Polanyi quer dizer que é absolutamente proibido acreditar que a ciência econômica descreva o mundo do qual fala. Ela "prescreve" a forma que deseja que se passe usar para falar do mundo. Não é de maneira alguma a mesma coisa.
Essas duas interpretações diferentes das ligações entre a esquerda, a ciência e a economia têm uma consequência essencial sobre a concepção da história e sobre a política. Enquanto, para Marx, a história obedecia a uma lei dialética pela qual o socialismo "concluía", em todos os sentidos da palavra, a economia burguesa, para o segundo Karl a história dos dois últimos séculos é aquela da resistência legítima de toda vida social contra a interpretação dada pela economia para os fenômenos disparados sob seus auspícios:
"É o mito da conspiração antiliberal que, sob uma ou outra forma, é comum a todas as interpretações, de 1870 a 1890 (...). É assim que, sob sua forma mais espiritualizada, a doutrina liberal hipostasia o funcionamento de alguma lei dialética da sociedade moderna que torna vãos os esforços do pensamento esclarecido, ao passo que, em sua visão grosseira, ela se reduz a um ataque contra a democracia política, suposta como o principal reduto do intervencionismo. O testemunho dos fatos contradiz a tese liberal de forma decisiva. A conspiração antiliberal é pura invenção. A variedade das formas tomadas pelo contramovimento "coletivista" não é devida a alguma preferência pelo socialismo ou pelo nacionalismo de parte dos interesses implicados, mas exclusivamente ao registro mais amplo dos interesses sociais vitais atingidos pelo mecanismo do mercado em expansão" (pág. 196 da edição francesa).
Não acreditar na economia como descrição dos mercados pode ser o novo sinal pelo qual se reconhecerá o pensamento de esquerda. Em todo caso, está claro que, no próximo século, não se aceitará mais chamar "de esquerda" a alguém que pretenda que as leis da economia lhe permitam curto-circuitar mais rapidamente a vida política. Se este século foi tão frequentemente marxista, o próximo será talvez polanyista.

Notas
1. Karl Polanyi, "La Grande Transformation - Aux Origines Politiques et Economiques de Notre Temps" (A Grande Transformação - Em Direção às Origens Políticas e Econômicas de Nosso Tempo), Gallimard, Paris, 1983, tradução do original em inglês "The Great Transformation", Beacon Press, Boston, 1944;
2. No livro de meu amigo Michel Callon está uma excepcional síntese das discussões recentes sobre os pontos fortes e fracos da antropologização do mercado. Michel Callon (editor), "The Laws of the Market" (As Leis do Mercado), Routledge, Londres, 1998;
3. Isso é ainda mais verdade no que diz respeito à contabilidade, como mostram os apaixonantes trabalhos reunidos por Michael Power (editor) em "Accounting and Science - National Inquiry and Commercial Reason" (Contabilidade e Ciência - Levantamento Nacional e Razão Comercial), Cambridge University Press, Cambridge, 1995.


Bruno Latour é sociólogo e pesquisador da ciência francês, autor, entre outros, de "A Vida de Laboratório" (Relume-Dumará), "Jamais Fomos Modernos" (Ed. 34) e acaba de publicar "Paris - Ville Invisible" (Paris - Cidade Invisível, La Découverte), com Emille Hermant.
Tradução de Jesus de Paula Assis.




Texto Anterior: Joyce Pascowitch
Próximo Texto: Antonio Negri: O nacionalismo de esquerda
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.