São Paulo, Domingo, 07 de Março de 1999
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LIVROS
Quarta edição de "Primeira Página" traz novidades e revela como a Folha viu o século
O mundo reescrito

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

No dia 9 de dezembro de 1980 John Lennon foi assassinado por Mark David Chapman na entrada do edifício Dakota, em Nova York. No mesmo dia, o então ministro da Comunicação Social do Brasil, Said Farhat, anunciava que o governo do general Figueiredo decidira conceder reajuste de 82% para os servidores federais.
Qual dos dois assuntos iria ocupar a manchete da Primeira Página da Folha do dia seguinte?
Consultando a página 160 da recém-lançada quarta edição do livro "Primeira Página - Folha de S. Paulo", já nas livrarias, verifica-se que o jornal optou pelo funcionalismo. A morte de Lennon foi noticiada dentro de um quadro, em duas colunas, com duas fotografias, sob o anódino título: "A morte de um Beatle".
Sejam quais forem os critérios que naquele dia nortearam o fechamento da edição da Folha, a história encarregou-se de invalidá-los: a inesperada morte de Lennon é, evidentemente, um acontecimento marcante, tanto quanto a chamada "revolução" do quarteto de Liverpool. Já o aumento anunciado, bem... provavelmente aliviou as finanças dos servidores naquele ano de alta inflação.
A avaliação dos fatos que merecem ou não estar na manchete ou em títulos da primeira página de um jornal é sempre problemática.
Mesmo casos aparentemente óbvios, como o da morte de Lennon, estão sujeitos à intervenção de subjetividades, de problemas industriais, de premência de tempo, de interesses circunstanciais e -por que não?- de "acidentes de trabalho".
Basta lembrar a morte de outra personalidade pop inglesa, a princesa Diana, em agosto de 1997. Como o leitor poderá conferir, à pág. 227, a Folha, ao ter a notícia, levou-a à manchete de domingo, realizando uma troca durante a rodagem da edição.
Outros jornais optaram por espaço bem mais discreto -e houve, ainda, quem criticasse duramente a imprensa pelo destaque que veio a dar aos desdobramentos do caso.
Se em acontecimentos dessa magnitude as opções nem sempre são consensuais, imagine quando se trata do inesgotável universo de fatos "menores" que ocorrem no mundo ao longo de um dia. Pense nos diversos fatores e instâncias que conjuram para que eles cheguem ou não ao conhecimento das redações. Imagine, por fim, o complexo processo de clivagem que resultará na decisão final: o que, afinal, é mais importante para o leitor? O que ele gostaria de ler na manchete? O que o jornal considera mais relevante?
Veículos como a Folha, que se filiam à categoria dos "prestige papers", tendem a hierarquizar os fatos segundo determinadas convenções: no topo, as manchetes da primeira página quase sempre circunscrevem-se ao universo da política, da economia, do jogo institucional.
Obviamente, outros temas, como tragédias naturais ou acidentes de grandes proporções impõem-se por si próprios e furam esse bloqueio.
Já fatos esportivos só em grandes ocasiões chegam ao título principal -ainda assim, muitas vezes, sob algum "disfarce" gráfico. Um exemplo pode ser visto numa das páginas acrescentadas a essa quarta edição: a vitória de Gustavo Kuerten em Roland Garros. Embora seja, efetivamente, a manchete da primeira página, ela vem cercada por um quadro colorido, que a diferencia de um tema mais "nobre".
Crimes, é claro, só frequentam o alto da página quando envolvem personalidades ou mortes em massa. Mas, curiosamente, uma área também "elevada", a cultura, não apenas está fora do baralho das manchetes como, frequentemente, é esquecida pelas primeiras páginas -ainda que uma eventual vitória de "Central do Brasil" no próximo Oscar possa vir a ser uma exceção.
Essas opções editoriais são bastante claras ao se folhear a nova versão de "Primeira Página", que traz como novidade capas do jornal de 1995 até 1998. Nas 215 páginas selecionadas, a partir de 1921, desfilam as incontornáveis guerras, crises, eleições, renúncias, mortes de líderes e grandes feitos político-tecnológicos. Mas não há menção a episódios como a Semana de Arte Moderna de 22 ou o show que consagrou a bossa nova nos EUA, reunindo Tom Jobim e Frank Sinatra no Carnegie Hall.
A favor da Folha -cujo interesse pela cultura nas últimas décadas é indiscutível- pode-se mencionar que, já pelos idos da segunda metade dos anos 60, a Ilustrada merecia destaques de uma coluna no alto da primeira página.
Num deles (pág.102), publicado na terça, dia 26 de setembro de 1967, anunciava-se que a hoje histórica estréia de "O Rei da Vela" fora adiada para sexta-feira...
O regime de urgência e a relativa arbitrariedade que comandam esse jogo de múltiplas escolhas são sublinhados pelos dois textos introdutórios do livro. No primeiro deles, o diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho, chama a atenção para o caráter de "rascunho da história" que assume o jornal, ressaltando a mescla de fatos relevantes, trivialidades e utilitarismo que compõe as edições -produzidas, afinal, não exatamente para a posteridade, mas para o leitor do dia seguinte.
Essa mesma precariedade é destacada pelo historiador Nicolau Sevcenko, que se refere ao "grau perturbador de arbitrariedade presente na prática jornalística".
Mas não é apenas esse complexo exercício de escolhas temáticas -em relação ao qual poderemos permanentemente oscilar da concordância para a divergência- que faz de "Primeira Página" uma leitura interessante.
O livro comporta, na realidade, uma infinidade de outras "leituras". Ali está estampada, por exemplo, uma história gráfica -e da técnica jornalística- não apenas da Folha, mas da própria imprensa brasileira. Vemos como a diagramação, anteriormente caótica, vai ganhando funcionalidade, ou como os títulos, que em outros tempos usavam verbos no passado e palavras hifenadas, tornam-se mais enxutos e precisos, embora nem sempre mais atraentes.
Temos ali também -nesse final de século em que as retrospectivas estão por toda parte- uma interessante resenha de grandes acontecimentos lidos e interpretados no calor da hora.
O livro termina com a notícia da reeleição de Fernando Henrique Cardoso, cujo primeiro mandato encerrou uma tentativa de transformar a sobressaltada vida político-econômica do país num "processo" -uma espécie de "não- acontecimento".
Fica para a próxima edição esse novo, crítico e conturbado capítulo histórico que passamos a viver a partir de janeiro, com a queda do real. Um desfecho que ainda será manchete de jornal.



A OBRA
Primeira Página - Folha de S. Paulo - Uma Viagem pela História do Brasil e do Mundo nas 215 Mais Importantes Capas da Folha de 1921 a 1998 - Publifolha (al. Barão de Limeira, 401, 5º andar, CEP 01202-900, SP, tel. 011/224-2142). 232 págs. R$ 54,00.




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