São Paulo, Domingo, 07 de Março de 1999
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A necessidade do bilinguismo

NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

O Brasil é um dos países mais autocentrados que existem, um país insular à sua maneira e fechado, como diria o ditador português Salazar, numa espécie de orgulhoso isolamento que, além de geográfico, tem também um fundo linguístico.
Não há como alterar o mapa, mas a situação pode começar a ser remediada com a adoção, na prática, por parte dos brasileiros, de uma segunda língua: o inglês.
É desnecessário cantar as virtudes óbvias do idioma falado não só na potência econômica e militarmente hegemônica dos dias de hoje como em todos os continentes, em países ricos e pobres, do vernáculo tanto da Internet quanto da cultura popular que vai de Hollywood ao rock, da língua franca da ciência e do comércio internacional.
Mesmo quem pretenda criticar as mensagens implícitas do universo pop deve ser capaz de entender as explícitas. E tampouco é segredo que as elites e a classe média nacional, embora de modo desorganizado, andam tentando se tornar bilíngues. Se isso é um fato, por que não generalizá-lo, democratizá-lo? Por que não aplicar a ele as vantagens da economia de escala?

Sacrifício do idioma
Há quem ache que o verdadeiro bilinguismo redunda em duas línguas mal faladas, mas a experiência prática e os linguistas nos garantem o contrário. E há quem imagine que o uso frequente de outro idioma implicaria o sacrifício do nosso e a consequente abolição da identidade nacional. A língua, diz-se, é o cerne dessa identidade e uma espécie de cimento da unidade territorial. Mas como se explica que o espanhol não tenha mantido coesa a América Hispânica e que o inglês comum jamais tenha impedido os irlandeses de se sentirem diferentes de seus opressores da ilha vizinha?
Uma língua como a nossa não corre perigo, mas, se ela está sujeita a arranhões, eles decorrem antes de uma situação na qual o inglês é tanto mais prestigiado quanto menos é entendido. Quem quer que fale bem duas línguas é mais capaz de mantê-las separadas do que quem não domine realmente uma ou mesmo nenhuma delas.
Saber inglês é, portanto, útil não apenas em qualquer dimensão prática que se possa imaginar (uma mão-de-obra bilíngue, mais competitiva no mercado mundializado de trabalho, têm condições melhores de barganhar em casa), mas também para a cultura como um todo.
Convém, no entanto, desfazer um mal-entendido: o bilinguismo não é um passaporte automático para o que antigamente se chamava de civilização: se holandeses e escandinavos, além das próprias línguas e das dos vizinhos, falam em geral fluentemente o inglês, alguns dos lugares mais conturbados do planeta, da Caxemira ao Sri Lanka, do Oriente Médio a Ruanda, são também habitados por gente bi e não raro trilíngue.

Acepção concreta
Não há línguas melhores ou piores, mas elas têm histórias diferentes, e a do inglês, se não é a causa, converteu-se pelo menos num veículo privilegiado da pujança atual da civilização anglo-americana. Conceitos que se tornaram inerentes ao inglês, como "the rule of law" ("o império da lei", mas sem império e "o Estado de direito" que não é meramente um "Estado") ou "fairness" ("justiça", mas numa acepção muito mais concreta, que é uma afirmação, sem ser, como no caso da "imparcialidade", a negação de uma parcialidade pressuposta, e evoca o sentido de "beleza"), nunca foram de fato traduzidos para (e talvez não possam ser realmente entendidos em) nosso idioma. Tampouco sei de uma expressão luso-brasileira que dê um peso tão preciso ao que é impreciso quanto "beyond a reasonable doubt" (para além de uma dúvida razoável).
Fórmulas de uma exatidão matemática, tais como "one man, one vote" (um homem, um voto) soam menos convincentes em português, e o mesmo se aplica, por exemplo, a "free speech", pois "liberdade de expressão" é algo infinitamente mais abstrato. E o modo anglo-americano de argumentar empiricamente e por meio de fatos, concisa, clara e objetivamente, seja num tribunal ou numa universidade, num tratado científico ou num ensaio literário, transforma-se, entre os cultores da "última flor do Lácio", na verborragia bacharelesca por intermédio da qual o "nouveau-richisme" do recém-letrado esfrega sua superioridade na cara tartamudeante da massa de "Untermenschen" (sub-humanos) e de escravos.
O uso ou o conhecimento do inglês não garantem a concretização dessas palavras, frases ou estilos, e ninguém o demonstrou melhor do que Lee Kuan Yew, o homem forte de Cingapura que, apesar de (ou talvez devido a) sua formação (cursou direito em Cambridge), tratou de, em seu país, transformá-las numa paródia "non sense", semelhante a tudo o que já havia sido preconizado por Lewis Carrol.
Seja como for, existem dois argumentos fortes a favor de um verdadeiro bilinguismo: para quem acha que a civilização anglo-americana, se não um sucesso, é pelo menos o mais tolerável dos fracassos disponíveis, o inglês é um "must", pois lhe permite acesso ao segredo da redução do insucesso; para quem, por seu turno, vê nessa língua e no que ela contém os instrumentos diabólicos de dominação do mais solerte e voraz imperialismo, não há outra saída exceto a de aprendê-la para, no seu interior, descobrir as fraquezas ocultas do inimigo.


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