São Paulo, domingo, 07 de abril de 2002

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O ESCRITOR ARGENTINO EM SUA TRADIÇÃO


Incerteza e ameaça de caos social forjaram as obras de autores como Sarmiento, Borges e Cortázar e as inseriram na literatura do Ocidente


por Juan José Saer

Depois da última crise, que sacudiu e que sem dúvida por muito tempo continuará sacudindo as bases sobre as quais se sustenta milagrosamente a sociedade argentina, muitos se perguntam se a atividade cultural, e sobretudo a literatura, poderá continuar a ser exercida -como tem acontecido até agora- em meio a tantos conflitos reais e a outros, possivelmente até mais graves, que se insinuam, inquietantes, no horizonte. É verdade que nos últimos meses a demonstração de impotência política, de aberração econômica e a ameaça de um iminente caos social parecem justificar essa compreensível interrogação. Talvez seja impossível tentar respondê-la, limitando-nos à literatura que, no plano linguístico, temático e estético existe na Argentina desde a primeira metade do século 19, uma tradição original e vigorosa. Basta citar os nomes de Sarmiento, Hernández, Lugones, Macedonio Fernández, Roberto Arlt, Ezequiel Martínez Estrada, Borges e Bioy Casares, Cortázar e Silvina Ocampo, Juan L. Ortiz, Oliverio Girondo ou Antonio Di Benedetto para comprovar que tanto na poesia como no ensaio, no romance ou na literatura fantástica, essa tradição, da qual aparecem aqui unicamente os nomes principais, é rica e diversificada, criativa e viva. Mas, antes de analisar essa tradição e as condições que fizeram possível sua existência, são necessárias algumas reflexões sobre a crise que o país atualmente atravessa.

Crise latente
Sabe-se que na sociedade capitalista as crises, como no passado as epidemias, são inevitáveis e frequentes, e que sua maior ou menor gravidade depende, em cada país, da solidez do aparelho produtivo. Nos países subdesenvolvidos, a crise é endêmica: um estado febril permanente que, de quando em quando, atravessa uma fase aguda. Na Argentina, desde sua origem, a crise é latente, ocultada em certos períodos de prosperidade, os quais, sem embargo, privavam boa proporção dos habitantes do país de seus benefícios. A simples operação pela qual os prestidigitadores da macroeconomia calculavam a renda per capita não era mais que uma miserável abstração destinada ao papel impresso.
Desde o início daquilo que os sociólogos consideram como a Argentina moderna, no final do século 19, os ataques de febre foram recorrentes, e não devemos esquecer a gravíssima inflação de 1989, provocada pelos meios financeiros -que seguem manobrando com completa impunidade hoje em dia- para derrubar o presidente Raúl Alfonsín. A crise atual é sem dúvida espetacular mas o que inquieta mais do que ela são as consequências, não só no plano econômico, que ela pode acarretar.
A verdadeira, a profunda, foi a terrível crise dos anos 70, da qual, em muitos sentidos, os acontecimentos atuais são não mais que o resultado, e não somente porque -durante aqueles anos- contraiu-se a ominosa dívida externa. Entre 1969 e 1982, entre os primeiro assassinatos políticos, os primeiros episódios de guerrilha urbana e as primeiras intervenções terroristas do Estado, e até a insensata guerra das Malvinas, em abril de 1982, o país inteiro se afundou em um pântano de exasperação e violência, de corrupção e crueldade, de ódio e sangue. Como as instituições sem as quais nenhuma sociedade civilizada pode sobreviver, toda moral foi aprisionada em um recesso obrigatório.
Revelou-se de novo apropriado o protesto imortal de Sófocles: a ordem do mundo foi transtornada porque naquela era, na Argentina, eram os pais que sepultavam os filhos. Praticamente não existe sociedade que escape, em um momento ou outro de sua evolução, desse paroxismo de destruição. Mas podemos dizer que a sociedade argentina, desde as suas origens, devido ao que podemos paradoxalmente chamar de um constante estado de transição, de desequilíbrios estruturais demasiado visíveis, que se aprofundam e perpetuam, vê-se obrigada a administrar continuamente a violência, sem jamais conseguir fazê-lo de todo.
Nesse terreno da violência, mais ou menos explícita de acordo com o período, floresceu a literatura argentina. A matéria mesma de nossos clássicos é a violência política. Das guerras civis do século 19, as quais, podemos dizer quase sem exagerar, se nutriram de conflitos semelhantes aos que nos despedaçam hoje, saíram os textos fundadores que encontramos nas obras de Sarmiento (1811-1888) e de José Hernández (1834-1886).
A carreira política de Leopoldo Lugones, que escrevia em verso refinadas cenas modernistas, o conduziu em seus textos em prosa do socialismo juvenil do final do século 19 ao fascismo de 1930, quando ele proclamou, em um panfleto famoso, que era chegada "la hora de la espada". E os romances de Roberto Arlt, nos mesmos anos, estão sacudidos pelas grandes mitologias do século, o fascismo, a revolução social, a angústia dos indivíduos asfixiados nas grandes cidades pela alienação capitalista, a ameaça da guerra total.
Um tema insistente percorre a obra lírica de Juan L. Ortiz (1896-1978), em quase 70 anos de prática poética: a injustiça que introduz desarmonia na beleza do mundo. Amigo dos comunistas (e sempre mordaz quando se referia ao dogmatismo de seus dirigentes), ele, o homem mais frágil e bondoso do mundo mesmo com seus inimigos, era detido a cada vez que um tiranete local decidia aprisionar os membros da oposição (os policiais encarregados de vigiá-lo cuidavam de alimentar os gatos de Ortiz).
Não se pode esquecer a virada política de Julio Cortázar (1914-1984), que descobriu a revolução cubana e a causa latino-americana em princípios dos anos 60, o que o levou não só a simpatizar com elas mas também a introduzi-las tematicamente no coração mesmo de sua obra narrativa e a seguir foi-lhes fiel até a morte, seja qual tenha sido o resultado literário dessa autêntica paixão literária. Essa conversão, ainda assim, é mais conhecida do que a constante militância de Borges (1899-1986) a favor, mas amiúde também contra, diferentes correntes culturais e políticas. Para falar a verdade, desde os anos 20, em revistas literárias ou grandes órgãos nacionais de imprensa, abundam suas intervenções polêmicas quanto a problemas da atualidade, sob uma óptica liberal que o levou a opor-se ao fascismo e ao peronismo, e mais raramente ao comunismo.

Cultura e barbárie
Mas há também algo de mais importante: sua obra de ficção e sua poesia se nutrem em muitos casos da política e particularmente da violência que as lutas políticas engendram. As guerras civis do século 19 inspiraram muitos de seus textos, entre os quais o comentadíssimo "Poema Conjetural", uma lúcida reflexão sobre a cultura e a barbárie, que parte da morte de um dos pais da independência, Narciso Laprida, às mãos de gaúchos sublevados. Na década de 40, escreveu alguns contos, fantásticos ou não, por exemplo "Deutsches Requiem" ou "El Milagro Secreto", inspirados pela Segunda Guerra Mundial, que para ele representava a atualidade imediata, como nos anos 50 a morte de Eva Perón e a queda do peronismo serão tema de diversos textos em prosa e poesia. Os estudiosos de sua obra consideram que a violência é um dos principais elementos constitutivos do trabalho de Borges. Mesmo um escritor como Antonio Di Benedetto, cuja obra parece elaborar exclusivamente cataclismos privados, foi alcançado pela violência em 1976, já que, por negar-se a aceitar uma ordem proferida pelo poder militar na noite mesma do golpe de Estado, como editor de um jornal, teve de suportar um ano de cárcere, tortura e a seguir o exílio, aos 54 anos. Para não falar de Haroldo Conti, Rodolfo Walsh, Francisco Urondo e tantos outros arrebatados pela turbulência desses anos, e cujos rostos, como diria Merleau-Ponty, foram apagados da terra. Já faz quase meio século, foi em 1953, que Borges pronunciou uma conferência sobre o escritor argentino e a sua tradição. Esse texto amplamente conhecido é uma contribuição tardia ao debate sobre a essência do ser nacional, em voga sobretudo nos anos 30, e marca a meia-volta definitiva de seu autor quanto às posições nacionalistas que havia defendido em sua juventude, rumo a uma concepção mais universal de literatura. A conclusão de Borges é correta, mas incompleta: para ele, a tradição argentina é a tradição ocidental (por certo essa afirmação é válida não unicamente para a Argentina mas para cada parcela do continente americano, do Alasca à Terra do Fogo, onde tenha penetrado o elemento europeu). Mas é incompleta porque parece ignorar as transformações que o elemento local, propriamente, impõe às influências que recebe. A literatura de Borges mesma é produto dessa interação. Não se trata aqui de explicar o processo. Mas há um ponto que deveria induzir a essa reflexão.

Sair à rua ou escrever?
A tradição literária argentina se forjou sempre na incerteza, na violência e sob a ameaça do caos, e em muitos casos fez disso a sua matéria-prima. E é justamente por isso que ela pertence à tradição do Ocidente. Quando pensamos na história européia do século 20, sobretudo em sua primeira metade, não podemos ignorar que a magnífica literatura que o período nos legou se construiu entre duas guerras mundiais e em meio aos mais terríveis cataclismos sociais e morais que aquele continente conheceu. Alguns autores os ignoram em seus livros e outros os comentam ou integram. Mas, porque são seres humanos, não se podem subtrair a essa série de catástrofes.
Alguns pretendem que diante das crises econômicas e sociais os escritores deveriam se abster de escrever, para sair às ruas e expressar seu protesto diante dos cidadãos. Sair à rua é bom, mas não devemos nos esquecer de que aquilo que leva alguns às ruas talvez seja indiferente para muitos outros. Mas nenhum escritor verdadeiro deixaria de escrever para sair às ruas.
Poder-se-ia dizer que a obstinação inexplicável de seguir escrevendo, sejam quais forem as circunstâncias, é o que define a condição de escritor. Só os que ignoram a razão mesma da literatura incorreriam no erro de supor o contrário. Cada escritor constrói sua literatura, por mais íntima que seja, com o mundo que tem ao seu alcance; a jornada empírica de vida que alimenta sua imaginação é a seiva secreta que justifica cada um dos signos que ele imprime no papel. Aos escritores argentinos (como provavelmente a todos os demais) coube viver em um país agitado por conflitos insolúveis. E hoje só continuam sendo legíveis aqueles que se aventuraram por essa selva de conflitos e conseguiram forjar, a partir deles, uma tradição.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Migliacci.


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