|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CIDADES DESENCANTADAS
Evelson de Freitas/Folha Imagem - 28.fev.2002
|
Céu encoberto no centro de São Paulo |
Impulso secreto para o exibicionismo atenua falta
de esperança das metrópoles latino-americanas
|
Juliana Monachesi
especial para a Folha
Decidido a empurrar disciplinas como antropologia, semiótica e psicanálise para o encontro
com a vida cotidiana das metrópoles atuais, o
colombiano Armando Silva iniciou em 1989 a formulação de uma teoria sobre as cidades a partir dos imaginários sociais. "O próprio Greimas [linguista (1917-1992) e
um dos principais nomes do estruturalismo", pouco
antes de morrer, incluiu a palavra paixão em seu dicionário semiótico. Diante de uma semiótica das paixões,
já estamos na vida das ruas", afirma.
Diretor do Instituto de Estudos em Comunicação da
Universidade Nacional da Colômbia e PhD em filosofia
e literatura pela Universidade da Califórnia, Silva propõe um estudo comparado das culturas urbanas da
América Latina, com uma mesma metodologia que foi
apresentada no livro "Imaginários Urbanos" (1992, lançado neste ano em português pela ed. Perspectiva). Hoje há equipes executando essa pesquisa em 14 cidades
da região, do México à Argentina. Silva foi convidado
pela Documenta de Kassel para representar a América
Latina na teorização sobre arte e urbanismo da 11ª edição da mostra, que começa em junho na Alemanha. O
livro resultante integrará as publicações da importante
exposição alemã de arte.
O sr. acredita que alguma cidade latino-americana possa
se tornar um paradigma urbano no século 21, assim como Paris -para Walter Benjamin- o foi no século 19?
Penso que haveria duas. São Paulo, com um pouco
mais de vida íntima, pois é uma cidade da velocidade, sem respiro, mas que, por causa dessa mesma
vertigem, se qualifica como paradigma, e Cidade do
México, por sua intensa vida local em meio à globalização internacional, mas com um pouco mais de
consciência, em seus vários setores. Ambas são fragmentárias, híbridas e constituem uma referência para outras cidades, especialmente as vizinhas, afetadas diretamente pelo que acontece nelas. Mas as
duas carecem de esperanças de futuro. Eu as vejo como paradigmas, no sentido de que se assumem incompletas: Paris, no século 19, ou Nova York, no 20,
eram "completas", e isso permitia seu romantismo.
Uma cidade simboliza seus moradores ou são os moradores que simbolizam sua cidade?
Existe uma relação dinâmica e dialética entre a formação física e a simbólica das cidades. A cidade cria
cidadãos, e estes criam a mentalidade urbana. Mas
só nos últimos anos -e eu mesmo me incluo nisso- as disciplinas sociais se interessaram pela cidade dos cidadãos. É como se, do ponto de vista de seu
estudo, ocorressem duas operações: por um lado, tiramos a cidade das mãos dos arquitetos e urbanistas
(para ao menos compartilhá-la em sua compreensão e previsão); por outro lado, empurramos os estudos simbólicos da filosofia e da antropologia para
um novo sujeito, o cidadão contemporâneo.
Mas como fazer isso? São necessárias novas metodologias, pois se trata de um esforço para dotar esse
novo objeto de recursos para sua compreensão. O
problema é que ou a tradição vê o simbólico como
uma hermenêutica discursiva sem um campo de
aplicação prática ou ele é mais facilmente vinculado
a sociedades tradicionais ou aborígines. Nessas novas tendências para o estudo do urbano a partir dos
imaginários deve-se reconhecer, portanto, que algumas disciplinas sociais aprenderam da literatura que
a cidade é dos habitantes e de suas fantasias.
A cidade foi a grande personagem dos romances romântico e realista do século 19 -a Londres de Dickens ou a
Paris de Balzac e Flaubert. A grande expressão do romance latino-americano do século 20 foge da cidade, como
em Guimarães Rosa, ou a "encanta", como no realismo
mágico. Por que esse deslocamento?
Hoje em dia há um sentimento estranho: enquanto
as cidades se pensam de fora, a nação se pensa com
os de dentro. Hoje a nação se reforça para não sucumbir, enquanto as cidades não querem ficar para
trás no mundo global. A cidade de hoje é mais uma
experiência da televisão ou da internet. E a literatura
urbana ou a arte urbana, para merecerem esse nome, têm de ser fortes. Ou seja, desencantadas.
A cidade já não oferece tudo, porque ela mesma
nos escapa. A cidade se torna estranha, estrangeira,
porque o urbano é o que diariamente vem de fora
para nos urbanizar. Por isso se fala no paradigma da
telecidade, da cidade à distância, a da internet, que
não é tanto um território, e sim uma rede que permite parentescos interurbanos. A cidade imaginada é
uma cidade distante da "real", mas esta, em seu processo de desterritorialização, é cada vez mais um
exercício imaginário que impõe limites, situa paisagens, evoca lugares, permite encontros fantásticos.
O estudo da leitura simbólica que os moradores fazem da
cidade lhe possibilitou delinear a personalidade de metrópoles latinas e o sr. fala mesmo em "latino-americanidade". Que especificidade encontrou nessas cidades?
Não procuramos uma "essência" latino-americana,
pois ela não existe, e sim modos comparativos por
afinidade ou exclusão. Podemos dizer, por afinidade, que cinco capitais do subcontinente se constroem, nos croquis cromáticos, como cinzas: São
Paulo, Cidade do México, Santiago (Chile), Bogotá
(Colômbia) e Quito (Equador).
Por identidade comparativa, podemos assegurar
que todas as cidades do continente se percebem inseguras, em maior ou menor grau, e que o imaginário da insegurança, apesar dos pesares, não impede o
uso da rua com certa normalidade.
Diferentemente do que ocorre nos EUA, onde o 11
de setembro fundou um paradigma em grande parte
desconhecido. Há muitas maneiras de sermos urbanos, e todas são nosso patrimônio. Pensar a modernidade como modelo de cidade que se repete foi, talvez, a principal fratura de seus ideais.
É por esse caminho que apresentamos os "croquis", no sentido de mapas de "cognição coletiva",
que revelam a latino-americanidade. Nossos estudos
procuram captar a cidade percebida pelos cidadãos,
e é aí que encontramos familiaridades segundo diferentes "pontos de vista urbanos", onde as classes sociais, sexo, idade ou topografia das cidades mostram
semelhanças. Permita-me citar alguns exemplos.
Um imaginário que atravessa todos os pontos de
vista é o da imensidão: não há cidade do continente
que não acredite ter mais habitantes do que consta
nos números oficiais. Também encontramos nas
lembranças cidadãs do continente uma tendência a
enxergar o país como a cidade mais conhecida: por
exemplo, ao reconhecer as praias do Rio em São
Paulo. A latino-americanidade, portanto, não existe, a não ser como um imaginário poderoso que nos
impele a procurá-la. Essa é sua maior realidade.
O sr. criou o termo "terceirismo simbólico" para designar
o imaginário dos latino-americanos. Ele se refere a uma
autodesvalorização ou a uma auto-afirmação?
A produção de identidade como processo consciente surge como valor coletivo a partir dos últimos
anos do século 20. Talvez seja uma defesa diante da
padronização mundial. O território físico, que por
muitos anos se manteve como paradigma para identificar uma nação ou uma região, entra em decadência e dá lugar à produção de outros "territórios", que
se relacionam de modo mais abstrato com a produção simbólica do poder, como estratégias de auto-afirmação: na mídia, no esporte, na literatura e ultimamente na internet.
A "terceiridade", como conceito, vem de um exercício lógico inspirado no filósofo norte-americano
Charles S. Peirce (1839-1914), para quem a realidade
se constrói na ordem de três. A ordem imaginária
precede a realidade. Isto é, eu vivo a cidade como antes a imagino. O filósofo Cornelius Castoriadis
(1922-1997) diz que primeiro inventamos Deus para
depois temê-lo.
A idéia de um terceirismo simbólico para a América Latina vem de uma consciência de Terceiro Mundo contraposta a um desejo manifesto de rivalizar e
sermos os primeiros (o que não parece ocorrer em
outros continentes, como a África). Pense nos momentos de vitória dos nossos países: o êxito do modelo econômico chileno; a formação do tratado de livre comércio entre o México e os Estados Unidos e
até o domínio do futebol brasileiro. Em cada um desses episódios, os respectivos países se apresentam
como tendo chegado ao "Primeiro Mundo". Isso
não é um problema da Europa nem dos Estados
Unidos.
Nós temos necessidades exibicionistas que nos
dão uma consciência de terceiridade a meu ver enriquecedora. Esse impulso secreto de sermos os primeiros e nos destacarmos do resto constitui um motor e, ao mesmo tempo, um lastro que arrastamos
sem descanso. Mas essa terceiridade também resulta
do fato de imaginar como o outro nos imagina: e,
quando se trata da Europa ou dos Estados Unidos,
nós somos os terceiros do Ocidente, desejados em
sua própria repressão.
É por meio do planejamento que se poderá reverter o
processo das "cidades catastróficas"? Qual o papel do
imaginário urbano nessa mudança?
Se seguirmos um modelo ocidental, europeu ou norte-americano, e nos comparamos a ele, seremos
sempre pobres e caóticos. Mas, por outro lado, nossas cidades têm vitalidades invejáveis. Já morei em
cidades perfeitas do ponto de vista urbanístico, como as do sul da Califórnia, que são uma "catástrofe"
emocional. Acho que as cidades devem atender aos
desejos e às representações dos cidadãos, a seus afetos e lembranças.
Veja por exemplo o que aconteceu em um bairro
popular da Cidade do México. Segundo nossos estudos, todos os habitantes desse bairro fizeram questão de dar um pouco mais de dinheiro na compra de
uma casa para que nela se construísse uma garagem.
O insólito é que nenhum deles tinha carro. O que há
aqui é antes uma fantasia que produz um espaço físico -a garagem-, e isso não é apenas encantador,
mas também muito respeitável. Quantos espaços físicos são projeção de nossas fantasias?
Em Bogotá, o então prefeito da cidade, agora presidente da Colômbia (Andrés Pastrana), mandou cortar as árvores de uma avenida para "modernizá-la" e
para que os carros pudessem circular mais rápido.
Nós o advertimos do erro desse "arboricídio", pois a
alameda era objeto do afeto dos cidadãos.
Na época prevaleceu a decisão do governo, mas
dez anos depois tiveram que refazer o jardim como
medida para combater o crime resultante da decadência da avenida. Enfim, em termos gerais, digo
que o planejamento deve passar pelas representações cidadãs, e isso faz com que as cidades não pretendam ser iguais.
Com base em sua pesquisa sobre "imaginários urbanos",
pode-se afirmar que as percepções subjetivas dos cidadãos têm igual relevância no estudo do fenômeno urbano à de aspectos econômicos, políticos e sociais?
De fato. Isso porque os cidadãos são a outra metade
da cidade. Pôr o cidadão entre parênteses foi coisa
do primeiro modernismo, para o qual a cidade, suas
construções, suas grandes obras, eram feitas por
personagens seletos - pense em Le Corbusier, por
exemplo -, sem a participação de seus habitantes,
para que estes as desfrutassem ou, no máximo, se
"apropriassem" delas. Pensava-se na cidade vista,
não sentida.
Hoje caminhamos para uma maior participação
do cidadão em todos os aspectos: políticos, culturais,
artísticos. Da política ideológica estamos passando
para uma outra, da sociedade civil, da arte de museu
para uma arte pública, uma arte cidadã. Quando se
perde o interesse no político, surgem as etnias e o gênero. Penso que o Centro George Pompidou, em Paris, constitui um marco como fato cidadão, político e
artístico. Sua construção se deveu a um grupo de
profissionais, arquitetos, designers, filósofos (o próprio Derrida participou) que repararam no uso que
os habitantes faziam de Paris e na evolução da cidade
central. Hoje é talvez o local "fechado" mais visitado.
Um dos fatores desse êxito é sua abertura ao cidadão, que entra ali como se estivesse fora. Baniu-se
parte dos limites entre dentro e fora.
Se nas ciências sociais esse arcabouço teórico é novo, na
arte a sondagem do imaginário urbano está presente pelo menos desde o final dos anos 50, com as estratégias de
"détournement". O tema da 25º Bienal de São Paulo são
as "iconografias metropolitanas" e muitos trabalhos trazem para a mostra o resultado de uma certa arqueologia
urbana, apresentam o imaginário afetivo das cidades.
Em que medida a arte ressemantiza a cidade?
A arte de hoje é cada vez mais urbana, o que significa
um paradoxo, já que as cidades se desterritorializam.
O urbano já não corresponde ao espaço citadino.
Você tem razão quando diz que a arte contemplava
um imaginário citadino antes das ciências sociais.
Penso que a tendência dos "ready-made" foram reveladoras para fazer do objeto uma exibição teatral e
urbanizá-lo na mente dos visitantes dos museus.
A arte pública continua com intervenções e outras
estratégias para urbanizar a cidade a partir de uma
ação estética. Penso que o melhor exemplo de como
arte e cidade andam juntas é a arte pública, e em meu
livro da Documenta 11 apresento argumentos para
sustentar que a arte pública chega a sua última manifestação sob o paradigma da cidade imaginada, onde
os cidadãos constroem e desconstroem suas cidades.
Esse é um exercício público, coletivo e criativo de
base estética. A Bienal de São Paulo sobre iconografias metropolitanas, que ainda não pude visitar,
acontece num momento oportuno: as cidades se agigantam no novo milênio, mas seu uso se reduz, seus
percursos se estreitam e as razões para as novas urbanizações vêm de fora: modas, internet, música,
mídia, capital. Assim, afirmar a cidade em suas memórias e em suas possibilidades é uma necessidade
para continuar amando.
Tradução de Sergio Molina.
Texto Anterior: O escritor argentino em sua tradição Próximo Texto: + livros: A gôndola do consumo Índice
|