São Paulo, domingo, 07 de abril de 2002

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CIDADES DESENCANTADAS

Evelson de Freitas/Folha Imagem - 28.fev.2002
Céu encoberto no centro de São Paulo



Impulso secreto para o exibicionismo atenua falta de esperança das metrópoles latino-americanas


Juliana Monachesi
especial para a Folha

Decidido a empurrar disciplinas como antropologia, semiótica e psicanálise para o encontro com a vida cotidiana das metrópoles atuais, o colombiano Armando Silva iniciou em 1989 a formulação de uma teoria sobre as cidades a partir dos imaginários sociais. "O próprio Greimas [linguista (1917-1992) e um dos principais nomes do estruturalismo", pouco antes de morrer, incluiu a palavra paixão em seu dicionário semiótico. Diante de uma semiótica das paixões, já estamos na vida das ruas", afirma.
Diretor do Instituto de Estudos em Comunicação da Universidade Nacional da Colômbia e PhD em filosofia e literatura pela Universidade da Califórnia, Silva propõe um estudo comparado das culturas urbanas da América Latina, com uma mesma metodologia que foi apresentada no livro "Imaginários Urbanos" (1992, lançado neste ano em português pela ed. Perspectiva). Hoje há equipes executando essa pesquisa em 14 cidades da região, do México à Argentina. Silva foi convidado pela Documenta de Kassel para representar a América Latina na teorização sobre arte e urbanismo da 11ª edição da mostra, que começa em junho na Alemanha. O livro resultante integrará as publicações da importante exposição alemã de arte.

O sr. acredita que alguma cidade latino-americana possa se tornar um paradigma urbano no século 21, assim como Paris -para Walter Benjamin- o foi no século 19?
Penso que haveria duas. São Paulo, com um pouco mais de vida íntima, pois é uma cidade da velocidade, sem respiro, mas que, por causa dessa mesma vertigem, se qualifica como paradigma, e Cidade do México, por sua intensa vida local em meio à globalização internacional, mas com um pouco mais de consciência, em seus vários setores. Ambas são fragmentárias, híbridas e constituem uma referência para outras cidades, especialmente as vizinhas, afetadas diretamente pelo que acontece nelas. Mas as duas carecem de esperanças de futuro. Eu as vejo como paradigmas, no sentido de que se assumem incompletas: Paris, no século 19, ou Nova York, no 20, eram "completas", e isso permitia seu romantismo.
Uma cidade simboliza seus moradores ou são os moradores que simbolizam sua cidade?
Existe uma relação dinâmica e dialética entre a formação física e a simbólica das cidades. A cidade cria cidadãos, e estes criam a mentalidade urbana. Mas só nos últimos anos -e eu mesmo me incluo nisso- as disciplinas sociais se interessaram pela cidade dos cidadãos. É como se, do ponto de vista de seu estudo, ocorressem duas operações: por um lado, tiramos a cidade das mãos dos arquitetos e urbanistas (para ao menos compartilhá-la em sua compreensão e previsão); por outro lado, empurramos os estudos simbólicos da filosofia e da antropologia para um novo sujeito, o cidadão contemporâneo.
Mas como fazer isso? São necessárias novas metodologias, pois se trata de um esforço para dotar esse novo objeto de recursos para sua compreensão. O problema é que ou a tradição vê o simbólico como uma hermenêutica discursiva sem um campo de aplicação prática ou ele é mais facilmente vinculado a sociedades tradicionais ou aborígines. Nessas novas tendências para o estudo do urbano a partir dos imaginários deve-se reconhecer, portanto, que algumas disciplinas sociais aprenderam da literatura que a cidade é dos habitantes e de suas fantasias.
A cidade foi a grande personagem dos romances romântico e realista do século 19 -a Londres de Dickens ou a Paris de Balzac e Flaubert. A grande expressão do romance latino-americano do século 20 foge da cidade, como em Guimarães Rosa, ou a "encanta", como no realismo mágico. Por que esse deslocamento?
Hoje em dia há um sentimento estranho: enquanto as cidades se pensam de fora, a nação se pensa com os de dentro. Hoje a nação se reforça para não sucumbir, enquanto as cidades não querem ficar para trás no mundo global. A cidade de hoje é mais uma experiência da televisão ou da internet. E a literatura urbana ou a arte urbana, para merecerem esse nome, têm de ser fortes. Ou seja, desencantadas.
A cidade já não oferece tudo, porque ela mesma nos escapa. A cidade se torna estranha, estrangeira, porque o urbano é o que diariamente vem de fora para nos urbanizar. Por isso se fala no paradigma da telecidade, da cidade à distância, a da internet, que não é tanto um território, e sim uma rede que permite parentescos interurbanos. A cidade imaginada é uma cidade distante da "real", mas esta, em seu processo de desterritorialização, é cada vez mais um exercício imaginário que impõe limites, situa paisagens, evoca lugares, permite encontros fantásticos.
O estudo da leitura simbólica que os moradores fazem da cidade lhe possibilitou delinear a personalidade de metrópoles latinas e o sr. fala mesmo em "latino-americanidade". Que especificidade encontrou nessas cidades?
Não procuramos uma "essência" latino-americana, pois ela não existe, e sim modos comparativos por afinidade ou exclusão. Podemos dizer, por afinidade, que cinco capitais do subcontinente se constroem, nos croquis cromáticos, como cinzas: São Paulo, Cidade do México, Santiago (Chile), Bogotá (Colômbia) e Quito (Equador).
Por identidade comparativa, podemos assegurar que todas as cidades do continente se percebem inseguras, em maior ou menor grau, e que o imaginário da insegurança, apesar dos pesares, não impede o uso da rua com certa normalidade.
Diferentemente do que ocorre nos EUA, onde o 11 de setembro fundou um paradigma em grande parte desconhecido. Há muitas maneiras de sermos urbanos, e todas são nosso patrimônio. Pensar a modernidade como modelo de cidade que se repete foi, talvez, a principal fratura de seus ideais.
É por esse caminho que apresentamos os "croquis", no sentido de mapas de "cognição coletiva", que revelam a latino-americanidade. Nossos estudos procuram captar a cidade percebida pelos cidadãos, e é aí que encontramos familiaridades segundo diferentes "pontos de vista urbanos", onde as classes sociais, sexo, idade ou topografia das cidades mostram semelhanças. Permita-me citar alguns exemplos.
Um imaginário que atravessa todos os pontos de vista é o da imensidão: não há cidade do continente que não acredite ter mais habitantes do que consta nos números oficiais. Também encontramos nas lembranças cidadãs do continente uma tendência a enxergar o país como a cidade mais conhecida: por exemplo, ao reconhecer as praias do Rio em São Paulo. A latino-americanidade, portanto, não existe, a não ser como um imaginário poderoso que nos impele a procurá-la. Essa é sua maior realidade.
O sr. criou o termo "terceirismo simbólico" para designar o imaginário dos latino-americanos. Ele se refere a uma autodesvalorização ou a uma auto-afirmação?
A produção de identidade como processo consciente surge como valor coletivo a partir dos últimos anos do século 20. Talvez seja uma defesa diante da padronização mundial. O território físico, que por muitos anos se manteve como paradigma para identificar uma nação ou uma região, entra em decadência e dá lugar à produção de outros "territórios", que se relacionam de modo mais abstrato com a produção simbólica do poder, como estratégias de auto-afirmação: na mídia, no esporte, na literatura e ultimamente na internet.
A "terceiridade", como conceito, vem de um exercício lógico inspirado no filósofo norte-americano Charles S. Peirce (1839-1914), para quem a realidade se constrói na ordem de três. A ordem imaginária precede a realidade. Isto é, eu vivo a cidade como antes a imagino. O filósofo Cornelius Castoriadis (1922-1997) diz que primeiro inventamos Deus para depois temê-lo.
A idéia de um terceirismo simbólico para a América Latina vem de uma consciência de Terceiro Mundo contraposta a um desejo manifesto de rivalizar e sermos os primeiros (o que não parece ocorrer em outros continentes, como a África). Pense nos momentos de vitória dos nossos países: o êxito do modelo econômico chileno; a formação do tratado de livre comércio entre o México e os Estados Unidos e até o domínio do futebol brasileiro. Em cada um desses episódios, os respectivos países se apresentam como tendo chegado ao "Primeiro Mundo". Isso não é um problema da Europa nem dos Estados Unidos.
Nós temos necessidades exibicionistas que nos dão uma consciência de terceiridade a meu ver enriquecedora. Esse impulso secreto de sermos os primeiros e nos destacarmos do resto constitui um motor e, ao mesmo tempo, um lastro que arrastamos sem descanso. Mas essa terceiridade também resulta do fato de imaginar como o outro nos imagina: e, quando se trata da Europa ou dos Estados Unidos, nós somos os terceiros do Ocidente, desejados em sua própria repressão.
É por meio do planejamento que se poderá reverter o processo das "cidades catastróficas"? Qual o papel do imaginário urbano nessa mudança?
Se seguirmos um modelo ocidental, europeu ou norte-americano, e nos comparamos a ele, seremos sempre pobres e caóticos. Mas, por outro lado, nossas cidades têm vitalidades invejáveis. Já morei em cidades perfeitas do ponto de vista urbanístico, como as do sul da Califórnia, que são uma "catástrofe" emocional. Acho que as cidades devem atender aos desejos e às representações dos cidadãos, a seus afetos e lembranças.
Veja por exemplo o que aconteceu em um bairro popular da Cidade do México. Segundo nossos estudos, todos os habitantes desse bairro fizeram questão de dar um pouco mais de dinheiro na compra de uma casa para que nela se construísse uma garagem. O insólito é que nenhum deles tinha carro. O que há aqui é antes uma fantasia que produz um espaço físico -a garagem-, e isso não é apenas encantador, mas também muito respeitável. Quantos espaços físicos são projeção de nossas fantasias?
Em Bogotá, o então prefeito da cidade, agora presidente da Colômbia (Andrés Pastrana), mandou cortar as árvores de uma avenida para "modernizá-la" e para que os carros pudessem circular mais rápido. Nós o advertimos do erro desse "arboricídio", pois a alameda era objeto do afeto dos cidadãos.
Na época prevaleceu a decisão do governo, mas dez anos depois tiveram que refazer o jardim como medida para combater o crime resultante da decadência da avenida. Enfim, em termos gerais, digo que o planejamento deve passar pelas representações cidadãs, e isso faz com que as cidades não pretendam ser iguais.
Com base em sua pesquisa sobre "imaginários urbanos", pode-se afirmar que as percepções subjetivas dos cidadãos têm igual relevância no estudo do fenômeno urbano à de aspectos econômicos, políticos e sociais?
De fato. Isso porque os cidadãos são a outra metade da cidade. Pôr o cidadão entre parênteses foi coisa do primeiro modernismo, para o qual a cidade, suas construções, suas grandes obras, eram feitas por personagens seletos - pense em Le Corbusier, por exemplo -, sem a participação de seus habitantes, para que estes as desfrutassem ou, no máximo, se "apropriassem" delas. Pensava-se na cidade vista, não sentida.
Hoje caminhamos para uma maior participação do cidadão em todos os aspectos: políticos, culturais, artísticos. Da política ideológica estamos passando para uma outra, da sociedade civil, da arte de museu para uma arte pública, uma arte cidadã. Quando se perde o interesse no político, surgem as etnias e o gênero. Penso que o Centro George Pompidou, em Paris, constitui um marco como fato cidadão, político e artístico. Sua construção se deveu a um grupo de profissionais, arquitetos, designers, filósofos (o próprio Derrida participou) que repararam no uso que os habitantes faziam de Paris e na evolução da cidade central. Hoje é talvez o local "fechado" mais visitado. Um dos fatores desse êxito é sua abertura ao cidadão, que entra ali como se estivesse fora. Baniu-se parte dos limites entre dentro e fora.
Se nas ciências sociais esse arcabouço teórico é novo, na arte a sondagem do imaginário urbano está presente pelo menos desde o final dos anos 50, com as estratégias de "détournement". O tema da 25º Bienal de São Paulo são as "iconografias metropolitanas" e muitos trabalhos trazem para a mostra o resultado de uma certa arqueologia urbana, apresentam o imaginário afetivo das cidades. Em que medida a arte ressemantiza a cidade?
A arte de hoje é cada vez mais urbana, o que significa um paradoxo, já que as cidades se desterritorializam. O urbano já não corresponde ao espaço citadino. Você tem razão quando diz que a arte contemplava um imaginário citadino antes das ciências sociais. Penso que a tendência dos "ready-made" foram reveladoras para fazer do objeto uma exibição teatral e urbanizá-lo na mente dos visitantes dos museus.
A arte pública continua com intervenções e outras estratégias para urbanizar a cidade a partir de uma ação estética. Penso que o melhor exemplo de como arte e cidade andam juntas é a arte pública, e em meu livro da Documenta 11 apresento argumentos para sustentar que a arte pública chega a sua última manifestação sob o paradigma da cidade imaginada, onde os cidadãos constroem e desconstroem suas cidades.
Esse é um exercício público, coletivo e criativo de base estética. A Bienal de São Paulo sobre iconografias metropolitanas, que ainda não pude visitar, acontece num momento oportuno: as cidades se agigantam no novo milênio, mas seu uso se reduz, seus percursos se estreitam e as razões para as novas urbanizações vêm de fora: modas, internet, música, mídia, capital. Assim, afirmar a cidade em suas memórias e em suas possibilidades é uma necessidade para continuar amando.


Tradução de Sergio Molina.


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