São Paulo, domingo, 07 de abril de 2002

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"Holocaustos Coloniais" investiga a relação entre imperialismo e desastres ecológicos no século 19

A gênese do Terceiro Mundo

Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

O autor deste livro anticolonialista é um ex-caminhoneiro que leciona teoria urbana numa universidade californiana dos Estados Unidos. Ele trocou o pé no acelerador "on the road" pela cátedra forrada de biblioteca, tornando-se um pesquisador das questões climáticas e da crise ecológica na atualidade.
Autodefinindo-se marxista por conectar a ambiência climática ao processo de produção econômica, Mike Davis tematiza, em "Holocaustos Coloniais", a fome, a raça e o colonialismo inglês do século 19 em países como Índia, China e Brasil. São os anos de 1876 a 1914, época de drenagem da mais-valia para os escritórios da "city" de Londres.
A origem da fome nos países colonizados está no bolso voraz do lorde inglês, que tirou proveito da comercialização dos grãos, ou seja, a safada aliança dos "especuladores de grãos e procônsules coloniais".
No caso do Brasil, não há dúvida que a fome não veio trazida pelos marujos de Cabral naquele abril, final de tarde de 1500, em Porto Seguro. Por outro lado, seria um despautério asseverar que a fome estivesse aqui entre os aborígenes dos trópicos. Os amerabas não passavam fome de espécie alguma. Destarte, a mandioca, rainha do Brasil, é mais nutritiva do que o trigo. Nossos índios detinham o segredo tecnológico do cultivo e preparação culinária da mandioca.
A tese principal do autor é que o Terceiro Mundo tem a sua verdadeira gênese e inscrição no holocausto causado pela fome e seca no contexto do colonialismo do século 19. O detalhe é que a expressão "Terceiro Mundo" foi um termo usado durante a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Embora afeiçoado ao estudo do fator climático, o autor não quer passar um atestado ridículo de quem demoniza a região tropical, atribuindo causas naturais ao fenômeno da seca, a exemplo do El Niño que estorricou o Nordeste da geração de Antônio Conselheiro. Nenhum pingo de chuva, por exemplo, no Piauí é, até hoje, sinônimo de felicidade popular.
É curioso observar que, no quadro da fome e seca no Nordeste de 1881, aparece simultaneamente a ideologia do colonialismo inglês, cujos efeitos são visíveis até hoje no pensamento brasileiro, responsabilizando pelos nossos males o calor, os ventos alísios, os rios largos, as altas montanhas, em contraste com a exuberância poluidora do carvão mineral e seu feliz conúbio com a máquina a vapor na Inglaterra. Pois sim...


Mike Davis mostra-se familiarizado com Euclides da Cunha, os cangaceiros e o padre Cícero


Já se chegou ao absurdo de estigmatizar o sol dos trópicos como a causa da seca. O astro-rei foi levianamente culpabilizado, e não o desmatamento que elimina o húmus da terra. Desde o século 19 a armadilha do dinheiro ludibria os colonizados em relação ao tempo e ao espaço em que vivem.
Davis mostra-se familiarizado com Euclides da Cunha, os cangaceiros e o padre Cícero. Como um bom marxista que se preza, ele sublinha que o mundo "natural" deve ser sociologizado e historicizado. Isso porque a influência do clima pode ser mudada em diferentes sistemas de produção.
Resumindo: "A seca hidrológica tem sempre uma história social".
A seca no Nordeste foi decorrência da queima da floresta para o latifúndio escravocrata poder produzir açúcar destinado a adoçar a boca do homem europeu.
Por conseguinte, as exigências econômicas do sistema colonial explicam o rompimento do ciclo das águas, ou seja, o desarranjo da estabilidade ecológica do Nordeste. Nesse aspecto, como em tudo o mais, a verdade é o todo: a rainha Vitória, o doutor Disraeli, a carvão mineral, o príncipe da Inglaterra, a libra esterlina, isso tudo tem a ver com os flagelados da seca no Nordeste esperando a vinda dos messias escatológicos.
A fome é um produto da rapina colonial. Karl Marx já havia estabelecido o vínculo entre a exploração econômica nas colônias e o banco, o crédito e a mais-valia relativa nas metrópoles.
É uma pena que a respeito do Brasil, excetuando Euclides da Cunha e Gilberto Freyre, o autor cite apenas os estudiosos brasilianistas; caso contrário sua abordagem sobre o misticismo dos flagelados da seca ganharia maior alento crítico com a análise de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", o filme de Glauber Rocha realizado em 1964, justamente cem anos depois de iniciada a Guerra do Paraguai [1864-70", em que a diplomacia inglesa pirata engambelou o Cone Sul da América Latina com o pérfido fabrico da dívida externa.
É uma pena também que o autor norte-americano desses "Holocaustos Coloniais" desconheça a bibliografia recente da nossa "escola da biomassa" e a reflexão energética sobre a biosfera, tendo em mira que o Brasil, a selva selvagem dos trópicos, possui a maior quantidade de água doce do planeta, cujas florestas úmidas serão necessariamente objeto de cobiça do neocolonialismo anglo-ianque neste século 21, que aliás já começou com a internacionalização das hidrelétricas brasileiras.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de, entre outros, "Glauber Pátria Rocha Livre" (Senac).

Holocaustos Coloniais
490 págs., R$ 45,00 de Mike Davis. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2000).


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