São Paulo, domingo, 07 de abril de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Na Cinelândia Paulistana" reúne críticas de cinema e fotografia feitas por Anatol Rosenfeld durante a década de 50

O bom uso da irritação

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

Anatol Rosenfeld (1912-1973) chegou ao Brasil em 1936, vítima da perseguição nazista. Formado em filosofia pela Universidade de Berlim, passou seus primeiros anos no Brasil trabalhando como caixeiro-viajante. Só a partir de 1945 começaria sua trajetória de intelectual free-lance, ministrando cursos particulares de filosofia e colaborando, como ensaísta e crítico, em diversas publicações. A maior parte de sua obra, que a editora Perspectiva vem publicando desde 1977, se volta para o teatro e a literatura. Livros como "Texto/Contexto", "História da Literatura e do Teatro Alemães", "Letras Germânicas" e "Thomas Mann" são modelos de erudição, clareza e discernimento crítico. Essas qualidades também estão presentes nos textos que Rosenfeld escreveu sobre cinema, em inícios da década de 50. Publicados originalmente numa revista mensal de fotografia, "Íris", constituem-se em sua maioria de críticas curtas sobre os filmes em cartaz. Ou melhor, "fitas", como se dizia na época -que o autor escolhia "seja por serem excelentes, seja por serem péssimas ou por apresentarem algum aspecto original". "Na Cinelândia Paulistana" reproduz, assim, os comentários de Rosenfeld sobre filmes famosos como "Ladrões de Bicicleta", de Vittorio de Sica, "O Terceiro Homem" e "Pacto Sinistro", ambos de Hitchcock, e "Rashomon", de Akira Kurosawa; e sobre alguns nem tanto, como "A Glória de Amar", de Compton Bennet, "Pandora", de A. Lewin, ou "Sem Piedade", de Lattuada. São avaliações certeiras e sóbrias, em que o crítico sabe dosar seu entusiasmo e fazer bom uso da própria irritação. Frases sarcásticas, mas pronunciadas num tom neutro e contido, surgem quando se trata de atacar superproduções como "Sansão e Dalila", de Cecil B. de Mille. "A melhor figura do filme é, sem dúvida, o leão -certamente emprestado pela Metro aos estúdios da Paramount." Lidos a 50 anos de distância, os artigos de "Na Cinelândia Paulistana" não parecem ter envelhecido nada; tampouco apresentam surpresas. As estréias que Rosenfeld aponta como excelentes se tornaram, de fato, filmes clássicos, como "Crepúsculo dos Deuses", por exemplo. A crítica desse drama de Billy Wilder se mostra especialmente atenta a pormenores felizes da mise-en-scène.

Repulsa ao lixo
Também do ponto de vista mais teórico ou das opções estéticas do autor, há pouco o que estranhar nos textos da coletânea. A repulsa ao lixo de Hollywood, a condenação do "teatro filmado" e as reservas quanto ao simples virtuosismo formal aparecem com clareza assim como a disposição, nem sempre enfática, de acolher as produções do cinema nacional.
Menos usual é o princípio de contar toda a história do filme, quase sempre no primeiro parágrafo.
O efeito de muitas dessas sinopses termina sendo irônico. Um filme de Jules Dassin, "Sombras do Mal", é assim resumido: "Um jovem malandro de marca menor, integrado no "bas-fonds" de Londres, dado a cavições não muito limpas (...), mete-se no negócio de lutas livres e acaba provocando o chefão desse ramo de diversão. Perseguido através de amplos trechos de Londres, cai finalmente nas mãos de um dos lutadores, que o esgana".
Às críticas propriamente ditas, segue-se uma centena de páginas reunindo pequenas notícias e comentários sobre curiosidades do mundo do cinema, provavelmente escritas por Rosenfeld para preencher espaço na diagramação. Do número de salas de exibição na Bulgária às opiniões de Thomas Mann e Aldous Huxley sobre a arte cinematográfica, nada escapou ao zelo da organizadora deste livro.
Há ainda uma segunda parte, sobre fotografia, com uma discussão sobre a suposta indecência do "nu artístico" e resenhas de livros e exposições.
"Na Cinelândia Paulistana" serve como documento da versatilidade de Anatol Rosenfeld como intelectual e de um momento específico da história do cinema. Ao que tudo indica, o começo da década de 50 é uma época em que ainda não se dera a separação entre o cinema feito para o público comum e aquele voltado especificamente para o público intelectual. Mesmo quando havia filmes de alto teor artístico, como os de Kurosawa, Wilder ou De Sica, não estava ainda em questão buscar a complexidade, a simbologia, o desconcerto, o hermetismo que iriam se impor a partir dos anos 60 -tendência que hoje em dia, por sua vez, está em declínio.
O aspecto de "serviço para o leitor", de qualquer modo, é o que predomina nesses artigos. É de lamentar que textos mais longos, como os dedicados por Rosenfeld a Charles Chaplin, sejam raros na coletânea. Os ensaios sobre "Luzes da Cidade" e "Luzes da Ribalta" valem, entretanto, pelo livro inteiro.


Na Cinelândia Paulistana
380 págs., R$ 38,00 de Anatol Rosenfeld. Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/3885-6878).




Texto Anterior: + livros: A gôndola do consumo
Próximo Texto: A gênese do Terceiro Mundo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.