São Paulo, domingo, 07 de abril de 2002

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+ memória

Sem se prender a escolas ou linhas, o coreógrafo Klauss Vianna, que morreu há dez anos, se tornou uma das figuras mais influentes da dança e do teatro brasi leiros

Reflexões sobre o corpo ausente

Inês Bogéa
Crítica da Folha

Inovador e rebelde, Klauss Vianna (1928-1992) foi um bailarino, coreógrafo e professor que influenciou toda uma geração da dança e do teatro brasileiros, com seu trabalho de consciência corporal. Sua técnica baseava-se em reflexões sobre o corpo humano e suas implicações anatômicas, funcionais e afetivas. Sem se prender a nenhum sistema particular de regras, fossem elas fundadas na dança clássica ou na moderna, e sem se restringir aos trabalhos de terapia corporal, Klauss Vianna usava essas fontes variadas como base comum, capaz de fornecer elementos para a construção de corpos mais aptos.
No próximo dia 12, completam-se dez anos de sua morte. Mais do que tempo de reverenciar sua visão, que buscava, acima de tudo, a liberdade individual, e a natureza expressiva de cada um de nós.
O interesse de Klauss Vianna pelo corpo como veículo da identidade começou na infância. Começou às avessas: ele sentia que "não tinha corpo: vivia o corpo dos outros". Em sua casa havia um laboratório, com um esqueleto e um coração de madeira, objetos de estudo do pai, que era médico. Os gestos dos familiares, o jeito de andar, de pisar, o movimento das mãos, tudo ele observava com curiosidade; mas não por acaso sua fascinação eram os ossos. Durante esses anos, vivia com frequência certos estranhamentos de si: "Meu corpo se [tornava" ausente. [...] E, com muita dificuldade, meu corpo [começava] a reaparecer: do chão, da base, dos pés".


Ele dizia que "o teatro, à noite, modificava a dança, de dia; e tudo se juntava numa coisa só"


Seu interesse inicial foi pelo teatro. Desde pequeno, inventava textos e cenários. Mas ao ver o Balé da Juventude, sob a direção de Igor Schwezoff, decidiu entrar na dança. Logo se decepcionou com a distância entre o espetáculo que tinha visto e a rotina das aulas, baseadas em regras impostas e sem explicação para o caminho dos movimentos. Interessou-se, então, pelos elementos que estruturam uma coreografia e o funcionamento dos corpos dos bailarinos.
Por essa época, buscou apoio nas artes plásticas, convivendo com artistas como Guignard, Amílcar de Castro e Ceschiatti. Aprendeu com eles que cada desenho tinha um movimento, um centro, linhas, volume e um peso, que diferenciavam o estilo de um pintor do outro. Nas pinturas (Rafael, Da Vinci, Modigliani) observava também as articulações, os músculos, o apoio dos corpos, começando a vislumbrar sua técnica. Outras pesquisas análogas, em literatura e música, foram táticas privadas de modernização.
Para Klauss Vianna, o papel do professor seria revelar a dança que se encontra em cada aluno. O gesto do balé deve ser "um gesto trabalhado por um ser humano, especialista, e que envolve não apenas a memória daquele corpo mas o corpo de todos os homens. [..." É milagroso o que o corpo é capaz de fazer quando o deixamos livre após o aprendizado técnico. [..." A forma é consequência: são os espaços internos que devem criar o movimento de cada um. [..." A arte é antes de tudo um gesto de vida. [..." Não é só dançar, é preciso toda uma relação com o mundo à nossa volta".
Suas idéias de pedagogia foram postas em prática muitas vezes: foi professor em Belo Horizonte, onde fundou o Balé Klauss Vianna (hoje dá nome a um teatro); na Bahia, onde deu aulas na Escola de Dança da Universidade Federal; e no Rio de Janeiro, onde trabalhou na Escola Municipal de Bailados, ao mesmo tempo em que desenvolveu um intenso trabalho com atores. Por exemplo, na peça "Roda Viva", de Chico Buarque, dirigida por José Celso Martinez Correa, ou em "Navalha na Carne", de Plínio Marcos. Ele dizia que "o teatro, à noite, modificava a dança, de dia. E tudo se juntava numa coisa só".
Ainda no Rio dirigiu a Escola Oficial de Teatro Martins Pena e o Instituto Estadual das Escolas de Artes. Em São Paulo foi diretor da Escola Municipal de Bailados e do Balé da Cidade de São Paulo.
Klauss Vianna deixou sua presença inscrita não só no corpo e na imaginação de dezenas de bailarinos e coreógrafos (entre eles Zélia Monteiro, Lia Robatto e Antônio Nóbrega, sem falar em sua parceira Angel Vianna, que dá continuidade a esse trabalho, por outro viés, em sua faculdade/escola no Rio) mas também de atores e diretores. Sua consciência, constantemente alerta, seu zelo pela criação legítima de um movimento brasileiro, ao mesmo tempo vigilante e criador, fundou entre nós a possibilidade de uma existência real. Isto é, de uma expressão viva. Isto é, de uma expressão real da existência brasileira na dança.



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