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Ponto de fuga
O pintor revisto
Jorge Coli
especial para a Folha
É um novo Norman Rockwell que surge. Não que ele
próprio tenha mudado. São as mesmas célebres imagens. Mas o longo percurso de uma exposição, apresentada primeiro em Atlanta, em 1999, e, depois de passar
por cinco cidades, terminando, no última dia 3, no museu Guggenheim de NY, causou uma reviravolta.
Rockwell (1894-1978) sempre foi visto com desdém
pelos modernos. Uma vez um jovem aluno do Instituto
de Artes de Chicago dirigiu-se a ele: "Você é Norman
Rockwell, não é? Meu professor de arte diz que você é
um lixo". Os intelectuais o excluíram da história das artes. Ele era um "ilustrador", um "figurativo" e, acima de
tudo, pecado dos pecados, popular, em todos os sentidos do termo. A grande retrospectiva revelou o pintor,
porque Rockwell trabalhava a óleo, em telas de bom tamanho, reproduzidas depois como capas de revista ou
publicidade. Mostrou também seu gênio, feito de uma
minúcia microscópica, onde cada célula possui uma
significação intensa, muitas vezes carregada de humor.
É um herdeiro de Meissonier (1815-1891), mas transfigurando a miudeza realista numa engrenagem perfeita
de sentidos. É um herdeiro dos holandeses, de Vermeer
(1632-1675), na poesia irreal da atmosfera. É um moderno, não porque se tenha inserido em qualquer debate
sobre a forma, mas porque captou, durante décadas, as
transformações reais que ocorreram na sociedade americana. Nesse aspecto, inclui-se na tradição do admirável realismo que perpassa a pintura dos EUA: o de Homer, de Bellows, de Marsh, de Hopper.
Vesgo - A crítica de arte, no final do século 19, enganou-se redondamente ao combater os impressionistas,
Cézanne, Van Gogh. Nos tempos seguintes, ao assumir
as qualidades das vanguardas modernas, essa mesma
crítica, muitas vezes bizantina e esnobe, mudou a bandeira. Passou a condenar, com intransigência, tudo o
que não se caracterizava como "moderno". Robert Rosenblum, historiador da arte, aguçado, inconformista e
provocador, pergunta, no catálogo da exposição, como
o mais intolerante dos modernistas podia resistir à magia mimética de Rockwell. É consolador perceber, no
passar do tempo, que as obras terminam por se vingar
dos críticos.
No caso de Rockwell, que sofria por ser ignorado pela
modernidade intelectualizada, a reviravolta ocorreu
tarde, mais de uma década depois de sua morte.
Tangível - Outro americano, outro realista, mas desta
vez em Paris. O museu d'Orsay recebeu a retrospectiva
de Thomas Eakins, que irá, a partir de maio, para o Metropolitan Museum de NY. Eakins é um formidável artista, que afinou sua técnica e sua concepção elevada de
arte para retomar temas americanos de seu tempo.
Apaixonado por esportes, é como se dissesse: "Não
precisamos de estátuas gregas porque temos atletas
modernos". Suas telas impõem um classicismo feito de
composições exatas e sutis, pela geometria e pelas cores,
tudo imerso numa atmosfera tranquila. Essas nuanças,
que se perdem muito nas reproduções, não excluem, no
entanto, vigor e firmeza.
Uma lição de anatomia de 1889, intitulada "A Clínica
do Dr. Agnew", onde o corpo dissecado é o de uma jovem, organiza-se com força para destilar uma estranha
perversidade. Isso foi sentido pelos irmãos Hughes, que
se inspiraram nessa imagem no recente filme "Do Inferno", de admirável sentido pictórico. Há também um
tom perverso em muitas fotografias deixadas pelo pintor, que captam o instante, ou que refletem composições estudadas. Elas exibem vários nus, em estúdio ou
ao ar livre. Todas oferecem uma impressão de silêncio,
todas parecem se fechar num mundo misterioso, que o
espectador observa de fora.
Páginas - O catálogo "Thomas Eakins, un Réaliste
Américain" (ed. RMN) faz um balanço rigoroso do conhecimento atual sobre o artista e aprofunda análises
sobre sua obra. O catálogo "Norman Rockwell, Pictures
for the American People" (Abrams) é militante, no sentido de trazer o pintor para as alturas da mais exigente
história da arte.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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