São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006 |
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+ autores A história dos moçambiques é a menos conhecida dentre os negros que vieram escravizados ao Brasil, em parte por serem mais suscetíveis a doenças locais e também pelo predomínio de indivíduos masculinos Identidade à deriva
MANOLO FLORENTINO
Os caminhos pelos quais o tráfico índico se consolidou remetem à drumoniana constatação de que todo ato instaura uma situação. Logo, se a história dos afro-orientais é, hoje, a menos conhecida dentre todos os africanos no Brasil, isto se deve em grande parte às opções implícitas ao seu traslado. A invisibilidade derivava da morte que os dizimava ainda nos primeiros tempos de Brasil, em proporções bem superiores às detectadas para outros grupos de africanos. Feneciam mais rápido e de modo qualitativamente distinto, conforme sugerem os inventários post-mortem do século 19: os afro-orientais padeciam sobretudo de infecções, e os oriundos dos portos atlânticos em especial de traumas. Menor resistência Protagonistas recentes da migração forçada, os moçambiques resistiam menos à esfera microbiana brasileira, tornando-se presas mais fáceis da disenteria e da varíola do que angolas, congos, benguelas, gêges ou nagôs, por exemplo. Por isso dispunham, em escala, de menor tempo do que estes para estreitar laços, cultivar hábitos e socializar símbolos. Para fincar raízes, enfim. Sua invisibilidade se nutria também do esgarçado excedente masculino vigente entre eles, do qual redundavam exíguas freqüências de arranjos familiares -pouco mais de 10% dos moçambiques viviam com seus cônjuges e/ou filhos, contra um quinto dos congo-angolanos e afro-ocidentais. Se a isso se acrescenta a fragilidade microbiana, veremos o quão difícil era para um afro-oriental se aculturar e gerar descendentes, os pilares de todo processo de ressignificação cultural sólido e duradouro. Não surpreende que tão poucos entre eles conseguissem obter cartas de alforria. Pulverização cultural Por fim, embora vários estudos demonstrem que a escolha dos cônjuges escravizados era presidida por um critério altamente seletivo, com a endogamia por origem se impondo, também nesse aspecto os moçambiques divergiam. Os registros de casamentos depositados em arquivos do Rio de Janeiro são enfáticos a esse respeito. Apenas um entre cada dez moçambiques se unia a um cônjuge originário da África Oriental. Em contrapartida, de metade a três quartos dos embarcados na região congo-angolana contraíam matrimônio entre si. Presas tenras de um destino injusto, os poucos moçambiques que casavam faziam-no por meio de uma enorme pulverização cultural, igualmente derivada do exorbitante predomínio masculino. Em um plano mais geral, esses fragmentos da trajetória afro-oriental reiteram a idéia de que a tragédia humana não tem porto de partida nem de chegada. No varejo demográfico, eles sugerem terem sido inúmeros os caminhos pelos quais a chamada crioulização (o outro nome da aculturação) vicejava -ou não- entre os africanos no Brasil. Tantos e qualitativamente tão díspares entre si a ponto de tornar ocioso postular a existência de uma identidade "africana" entre nós, sobretudo quando o cativeiro já não passa de tecido morto. Nada que desespere, entretanto. Afinal, parafraseando Jorge Luis Borges, coisa nenhuma no universo sabe que sua forma é única. Manolo Florentino é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve na seção "Autores", do Mais!. Texto Anterior: Biblioteca básica - Silviano Santiago: Os Moedeiros Falsos Próximo Texto: + literatura: A felicidade feroz Índice |
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