São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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Notas de fuga

Notas de Berlim

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Daniel Barenboim ofereceu, num dos três teatros de ópera de Berlim (Staatsoper Unter den Linden), a série completa das sonatas de Beethoven. O último recital trazia duas composições de juventude. Primeiro, a opus 14, nš 9, dita "modesta", "fácil". Barenboim a incendiou em alta incandescência, demonstrando que, para grandes criadores e grandes intérpretes, todas as obras são maiores. Em seguida, a opus 7, nš 4, vasta, seus episódios tempestuosos conduzindo ao rondó, melodioso e lírico, extinguindo-se em lusco-fuscos de delicados pianíssimos. Depois, opus 54, nš 22, pequena, dois movimentos, que Beethoven fez brotar entre a "Waldstein" e a "Appassionata". Mas animada e nova, com suas síncopas surpreendentes, o moto perpétuo do segundo movimento debulhado em semicolcheias inquietas, a paleta harmônica rica de nuanças. Enfim, a derradeira, a op. 111, nš 32, abissal consumação sonora. Ela também em dois movimentos, nada modestos, no entanto.
Thomas Mann, por meio de um personagem, pergunta-se a respeito dessa sonata, em seu romance "Doutor Fausto" (Nova Fronteira), por que razão o compositor não concebera uma conclusão suplementar: "Um terceiro movimento? Um reinício depois desse adeus? Impossível! Acontecera que a sonata no segundo, no imenso segundo movimento, havia alcançado seu fim, um fim sem nenhum retorno. E, ao referir-se "à sonata", não pensava apenas nessa, em dó menor, e sim na própria sonata, na forma, no gênero artístico tradicional: ela mesma tinha sido conduzida ao seu término, cumprira seu destino, além do qual não existia caminho, anulara-se e dissolvera-se, despedira-se...".

Cavalheiro
É difícil encontrar na memória uma ovação equivalente. Daniel Barenboim, ao final de sua apresentação em Berlim, foi submerso em aplausos e flores. O público não se enganava. A explosão de palmas era um jeito de reagir a tantos sentimentos, intuições, comoções, que o recital provocara. Barenboim, discreto, elegante, sem afetações de transtornos românticos ao agradecer, atento a câmeras que o filmavam, movidas por extraordinárias gruas, sorria em meio àquela felicidade coletiva.

Latejante
Van Gogh chamava a existência comum de "a verdadeira vida", opondo-a à arte. Esta seria, por conseqüência, a "falsa vida", que o pintor não hesitou em sacrificar, decidindo se consagrar inteiramente a seus quadros e se matando quando sentiu a tarefa cumprida. A "verdadeira vida", é bem claro, não estava onde ele imaginou, mas em suas telas. Salvo equívoco, foi Alejo Carpentier quem situou com precisão o lugar no qual diz ter encontrado as emoções mais vivas, os contentamentos mais plenos: uma poltrona de teatro, ouvindo concerto ou ópera. Abrir os sentidos para as ficções artísticas permite mudar de mundo, o que significa, já de começo, um grande alívio.
"La Bohème", de Puccini, foi o último espetáculo lírico desta temporada em Berlim. Dan Ettinger, maestro muito jovem, assim como eram jovens os cantores e a diretora de cena Lindy Hume, australiana. Olga Guriakova, delicada, olhar frágil, voz esplêndida, morria de tuberculose no quarto ato. A concepção girou em torno de Rodolfo. Ele aparecia velho e amargo: a ópera o envolvia, vinha como a evocação de tempos antigos, guardados na memória. No segundo ato, uma estranha caixa, enorme, avançava de quina para o público. Sugeria certos edifícios geométricos e misteriosos que a bauhaus inventou; trazia um eme art-déco em relevo sobre a fachada. Depois se abria: dentro, o café Momus, em que Musetta, com o aspecto de uma Zsa Zsa Gabor nos anos 50, esparramava seduções.

Gogó
Olga Guriakova, russa, tem 34 anos, é cantora favorita de Rostropovich e de Gergiev. Afirmou-se pela música de Tchaikovski, que interpretou em Nova York, na ópera de Paris, no festival de Aix-en-Provence, no Scala de Milão. Neste último teatro, em janeiro de 2006, será Tatiana, de "Eugênio Oneguine". É celebrada também no repertório italiano: Elvira, Nedda, Elisabetta, Mimi e, sobretudo, a Desdêmona de Verdi. Gravou um CD com árias russas para o selo Delos.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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