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Notas de fuga
Notas de Berlim
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Daniel Barenboim ofereceu, num
dos três teatros de ópera de Berlim (Staatsoper Unter den Linden), a série completa das sonatas
de Beethoven. O último recital trazia duas
composições de juventude. Primeiro, a
opus 14, nš 9, dita "modesta", "fácil". Barenboim a incendiou em alta incandescência, demonstrando que, para grandes criadores e grandes intérpretes, todas as obras
são maiores. Em seguida, a opus 7, nš 4,
vasta, seus episódios tempestuosos conduzindo ao rondó, melodioso e lírico, extinguindo-se em lusco-fuscos de delicados
pianíssimos. Depois, opus 54, nš 22, pequena, dois movimentos, que Beethoven fez
brotar entre a "Waldstein" e a "Appassionata". Mas animada e nova, com suas síncopas surpreendentes, o moto perpétuo do
segundo movimento debulhado em semicolcheias inquietas, a paleta harmônica rica
de nuanças. Enfim, a derradeira, a op. 111,
nš 32, abissal consumação sonora. Ela também em dois movimentos, nada modestos,
no entanto.
Thomas Mann, por meio de um personagem, pergunta-se a respeito dessa sonata,
em seu romance "Doutor Fausto" (Nova
Fronteira), por que razão o compositor não
concebera uma conclusão suplementar:
"Um terceiro movimento? Um reinício depois desse adeus? Impossível! Acontecera
que a sonata no segundo, no imenso segundo movimento, havia alcançado seu fim,
um fim sem nenhum retorno. E, ao referir-se "à sonata", não pensava apenas nessa, em
dó menor, e sim na própria sonata, na forma, no gênero artístico tradicional: ela
mesma tinha sido conduzida ao seu término, cumprira seu destino, além do qual não
existia caminho, anulara-se e dissolvera-se,
despedira-se...".
Cavalheiro
É difícil encontrar na memória uma ovação equivalente. Daniel Barenboim, ao final
de sua apresentação em Berlim, foi submerso em aplausos e flores. O público não
se enganava. A explosão de palmas era um
jeito de reagir a tantos sentimentos, intuições, comoções, que o recital provocara.
Barenboim, discreto, elegante, sem afetações de transtornos românticos ao agradecer, atento a câmeras que o filmavam, movidas por extraordinárias gruas, sorria em
meio àquela felicidade coletiva.
Latejante
Van Gogh chamava a existência comum
de "a verdadeira vida", opondo-a à arte. Esta seria, por conseqüência, a "falsa vida",
que o pintor não hesitou em sacrificar, decidindo se consagrar inteiramente a seus
quadros e se matando quando sentiu a tarefa cumprida. A "verdadeira vida", é bem
claro, não estava onde ele imaginou, mas
em suas telas. Salvo equívoco, foi Alejo Carpentier quem situou com precisão o lugar
no qual diz ter encontrado as emoções mais
vivas, os contentamentos mais plenos: uma
poltrona de teatro, ouvindo concerto ou
ópera. Abrir os sentidos para as ficções artísticas permite mudar de mundo, o que
significa, já de começo, um grande alívio.
"La Bohème", de Puccini, foi o último espetáculo lírico desta temporada em Berlim.
Dan Ettinger, maestro muito jovem, assim
como eram jovens os cantores e a diretora
de cena Lindy Hume, australiana. Olga Guriakova, delicada, olhar frágil, voz esplêndida, morria de tuberculose no quarto ato. A
concepção girou em torno de Rodolfo. Ele
aparecia velho e amargo: a ópera o envolvia, vinha como a evocação de tempos antigos, guardados na memória. No segundo
ato, uma estranha caixa, enorme, avançava
de quina para o público. Sugeria certos edifícios geométricos e misteriosos que a bauhaus inventou; trazia um eme art-déco em
relevo sobre a fachada. Depois se abria:
dentro, o café Momus, em que Musetta,
com o aspecto de uma Zsa Zsa Gabor nos
anos 50, esparramava seduções.
Gogó
Olga Guriakova, russa, tem 34 anos, é
cantora favorita de Rostropovich e de Gergiev. Afirmou-se pela música de Tchaikovski, que interpretou em Nova York, na
ópera de Paris, no festival de Aix-en-Provence, no Scala de Milão. Neste último teatro, em janeiro de 2006, será Tatiana, de
"Eugênio Oneguine". É celebrada também
no repertório italiano: Elvira, Nedda, Elisabetta, Mimi e, sobretudo, a Desdêmona de Verdi. Gravou um CD com árias russas para o selo Delos.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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