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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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+ cinema

Os EUA de "América, América" e "Movidos pelo Ódio", de Elia Kazan, ainda podem sobrepujar o país retratado em "Elefante" e "Sobre Meninos e Lobos"

O predomínio da violência

Luiz Carlos Bresser-Pereira
especial para a Folha

Enquanto os cientistas sociais e os filósofos tentam compreender racionalmente a vida social, os artistas projetam em suas obras sua visão do mundo. De um mundo complexo, multifacetado e ambíguo, do qual eles não podem senão identificar aspectos, que, no entanto, podem ganhar uma grandeza inesperada quando o artista é verdadeiro. Os cineastas, em particular, têm uma possibilidade ímpar de revelar o mundo e a vida através do meio poderoso que é o das imagens e o das palavras, conjugadas em um espaço e em um tempo que eles próprios manipulam. Os cineastas americanos têm usado essas potencialidades com grande força. Seja para fazer a ideologia da sociedade americana, seja para fazer sua crítica. Nos últimos tempos, a ideologia ficou reservada a filmes menores, enquanto a crítica aparece com força cada vez maior. Um aspecto particular do grande cinema americano é o fato de que os filmes são obras de arte coletivas. O cinema de autor, que caracteriza, por exemplo, o cinema brasileiro ou o francês ou o iraniano, é mais raro nos Estados Unidos. Também existe, especialmente nas obras marginais, que disputam reconhecimento no Festival de Sundance, e em alguns momentos atinge um nível maior, como é o caso de "Elefante", mas seu autor, Gus van Sant, é também um homem do grande cinema comercial de Hollywood.

Coletividade
Muitas vezes temos a tendência a supor que o verdadeiro cinema, que produz obras-primas, é sempre o cinema de autor. É o cinema de Bergman, de Fellini, de Glauber. Mas, desde os grandes filmes de D.W. Griffith, nos albores da história do cinema, isso não é verdade. E quem, por exemplo, é o autor de "Cantando na Chuva"? Mesmo os grandes diretores americanos, como John Ford ou Hitchcock, não fizeram um cinema propriamente de autor, já que não são os autores da história e do roteiro. À medida, porém, que são obras coletivas, os filmes talvez tenham mais capacidade de expressar a sociedade da qual são produtos. O último grande filme que o cinema americano produziu é "Sobre Meninos e Lobos" ["Mystic River", que estreou anteontem em SP]. É assinado por Clint Eastwood, que merece o título de grande diretor com essa segunda obra-prima que dirige, mas sua extraordinária força é o resultado de um trabalho coletivo no qual não apenas os atores, mas os demais participantes, particularmente os roteiristas, têm um papel fundamental. Entre "Elefante" e "Sobre Meninos e Lobos", revi "América, América" [1963] e "Movidos pelo Ódio" ["The Arrangement", 1969], de Elia Kazan [1909-2003]. Este fez tanto cinema de autor quanto filmes coletivos. Os dois filmes, dos anos 60, são um poderoso retrato da esperança e da realidade representadas pelos Estados Unidos. A esperança aparece com todo vigor em "América, América". Embora a esperança se refira aos Estados Unidos do início do século 20, quando o imigrante grego parte da Turquia, onde os gregos eram minoria importante e perseguida, e, depois de uma odisséia, chega à América, se trata também de uma esperança do momento em que o filme foi concebido e produzido. Já nos Estados Unidos de "Movidos pelo Ódio", a esperança ainda existe, mas o essencial é a realidade material, voltada para o dinheiro, único veículo de realização em uma sociedade individualista, na qual a idéia de solidariedade parece esquecida. A esperança sobrevive, ainda que a salvação seja exclusivamente individual e não haja espaço para a comunidade ou a solidariedade. Quase quatro décadas depois, os Estados Unidos de "Sobre Meninos e Lobos", como os de "Elefante", assim como de "O Amor Custa Caro" [em cartaz em SP], dos irmãos Cohen, são muito diferentes. Já não há mais nenhuma esperança, e o individualismo se transformou em "nonsense" violento puro ("Elefante"), em cinismo ("O Amor Custa Caro") ou então em puro ódio dos adultos e violência dos meninos ("Sobre Meninos e Lobos"). Ou ainda, nos termos de Jacques Rancière, no mal em si, no mal "que não tem conserto senão ao preço de um outro mal que permanece irredutível" (Mais! de 23/11/2003). Em qualquer dos casos, é a violência que predomina, não a violência dos filmes de ação com efeitos especiais, que afinal é pequena quando comparada com aquela que aparece nos filmes de Van Sant e Eastwood. Ao vermos esses filmes, compreendemos que os EUA de George W. Bush e de seus falcões fundamentalistas não são mero acidente. É impressionante como a grande nação se divide e mergulha em sua própria crise. Como ela, que era a esperança do mundo no início do século 20, e parecia ser sua concretização imediatamente após a vitória na Segunda Guerra, se transformou em ameaça para esse mesmo mundo. Como o país mais poderoso se transformou também no mais dominado por medos irracionais. Como um ataque violento, como foi o de 11 de setembro de 2001, afinal serviu para que uma direita fundamentalista manifestasse sua própria violência, em vez de servir para que os EUA revissem sua política no Oriente Médio e reorganizassem a luta contra o terrorismo.

Progressos
Estou convencido de que os problemas que os Estados Unidos hoje enfrentam estão relacionados com seu atraso no plano político-institucional. O progresso econômico e tecnológico vem sendo muito maior do que o político, à medida que as instituições políticas americanas se revelavam incrivelmente rígidas, só reformáveis por meio de decisões sim-ou-não da Corte Suprema. Mas esse é apenas um tema para análise na discussão de um problema muito maior e muito mais complexo.
As obras de arte não apontam caminhos, muito menos sugerem soluções. Estas terão que ser encontradas por meio da ação política, do debate democrático. Por meio de uma perspectiva que conserve o melhor da tradição liberal e individualista de democracia, mas seja também solidária e republicana. A América de Griffith e de Kazan não está morta. Críticos como Michael Moore e Noam Chomsky mostram que a esperança está viva e que existe uma alternativa moral e democrática contra a violência sem limites que mata a esperança -o grande inimigo que "Elefante" e "Sobre Meninos e Lobos" identificam.


Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e pesquisador associado da Maison des Sciences de l'Homme. Foi ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração Federal e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (governo FHC).


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