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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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A gula terapêutica

Associated Press/Divulgação
O ator James Gandolfini, que interpreta o mafioso Tony Soprano na série "Os Sopranos"


RECÉM-PUBLICADO NO REINO UNIDO, "CULTURA DA TERAPIA" ATACA O "EMOCIONALISMO" E A "VITIMIZAÇÃO" QUE ESTARIAM CONTAMINANDO TODOS OS SETORES DA SOCIEDADE, COMO A RELIGIÃO, O ENSINO E A TV

por Jurandir Freire Costa

Frank Furedi é professor de sociologia na Universidade de Kent, no Reino Unido. Em seu mais recente livro, "Therapy Culture - Cultivating Vulnerability in an Uncertain Age" [Cultura da Terapia - Cultivando a Vulnerabilidade em uma Era de Incerteza, ed. Routledge, 256 págs., 14,99 libras], ele retoma as preocupações dos trabalhos anteriores, "Paranoid Parenting" [ed. Allen Lane] e "Culture of Fear" [ed. Continuum]. Nos três livros se trata de analisar o impacto das crenças culturais na formação da subjetividade. Em "Cultura da Terapia", no entanto, o foco é posto nos ataques à liberdade individual pela invasão da esfera pública por questões da esfera privada. O exemplo escolhido para ilustrar a tese é o fenômeno social do "emocionalismo". Furedi (1947) observa que os meios de comunicação de massa e a literatura especializada vêm apresentando a tendência crescente para descrever condutas da vida cotidiana no vocabulário médico-psicológico. Palavras e expressões como "stress", "auto-estima", "trauma", "transtornos de déficit de atenção e hiperatividade", "dependências compulsivas ("addictions')", "emoções negativas", "crises de meia-idade", "síndrome de pânico", "fobia social", "ansiedade livremente flutuante" etc. vêm sendo aplicadas com uma pressa e uma avidez impensáveis, desde 20 anos. Nem mesmo os chefões da Máfia, ironiza ele, escaparam da gula terapêutica. Tony soprano, o gângster televisivo favorito das famílias americanas, foi parar no divã.

Desvalorização da política
Quais as razões dessa explosão de epítetos psicológicos colados a comportamentos sociais corriqueiros? Furedi descarta, de imediato, os clichês explicativos correntes: o declínio da tradição e o capitalismo neoliberal. Os dois fatores, efetivamente, criaram obstáculos inéditos à constituição de identidades pessoais satisfatórias. No entanto nem a contestação da tradição religiosa e familiar nem o capitalismo, na feição "consumo de massa", são fatos recentes, por conseguinte não podem ser vistos como causas suficientes ou necessárias para o surgimento da cultura da terapia. A seu ver, o que melhor esclarece a natureza da medicalização psicologizante dos comportamentos sociais é a perda de sentido moral da esfera pública. A desvalorização da política ou dos simples compromissos comunais criou uma zona de irrelevância ética no modo de vida ocidental que foi progressivamente tomada por dois eventos, o emocionalismo e a vitimização. O emocionalismo é a prática cultural que incentiva a expressão de afetos privados em público. Os indivíduos, na ausência de paixões ideológicas, encontraram nas confissões emocionais a céu aberto um sucedâneo tosco e precário dos clássicos vínculos de cidadania. O espaço público foi, assim, parasitado pelas idiossincrasias emocionais das celebridades ou "pessoas comuns", e, os sujeitos, levados a se reconhecerem mutuamente, não como cidadãos, mas como membros da confraria dos heróis do coração.

"Alfabetização emocional"
Para os mentores intelectuais do movimento, o teatro da confissão é necessário à "alfabetização emocional", sem a qual não podemos suportar a coerção das demandas sociais. Acontece, diz Furedi, que a alfabetização significa, na prática, aceitar falar em público sobre as fragilidades psicológicas, em especial, sobre as "dependências" compulsivas. Ou seja, o ritual da conversão emocionalista visa a mostrar como se passa de cidadão a "cliente" com o devido concurso dos especialistas em emoções.
A naturalização da prática migrou para outros campos da vida social e deu origem a um novo padrão de ação coletiva, a "vitimização" auto-reivindicada. Confessar é, automaticamente, ser absolvido a título de vítima da sociedade. Mas, diz o autor, se perguntarmos "qual sociedade?", a resposta é uma só: a família! Donde o refrão emocionalista: família boa, família má, família tratada, família doente. E, posto que todos têm família ou são candidatos a tê-la, todos são vítimas potenciais de traumas conhecidos ou ignorados.
Desse modo, a cidade política foi sitiada pela legião dos suplicantes, em busca de "compensação" por injúrias sofridas. Em vez de se unirem em torno do que podem, os indivíduos se ligam pelo que não podem. Todos acusam todos, e em um só ponto parece haver acordo: na demonização moral da família.
Ora, diz Furedi, uma das piores sequelas do emocionalismo é justamente esse rebaixamento da dignidade individual. Hoje, o cidadão ou é consumidor ou vítima de alguma opressão. A ideologia emocionalista, de um só golpe, espremeu a sociedade em um sala-e-dois quartos, fez da cena pública um espetáculo para alcoviteiros e, da vida privada, um laboratório improvisado de obviedades do senso comum, enunciadas como descobertas científicas.
Para ele, essa intromissão na vida íntima é intolerável. O emocionalismo não apenas inibe a espontaneidade psicológica como torna qualquer padrão habitual de condutas um passaporte para a terra mal-assombrada das "compulsões" e "dependências". Se levarmos a sério o que dizem os especialistas, ninguém, por princípio, é suficientemente sadio para sair de casa, trabalhar, amar ou se divertir, até admitir as próprias falhas ou lacunas emocionais adquiridas no convívio com a "sociedade". Isto é, a vida cultural, depois de achatada e comprimida no exíguo décor familiar, é redesenhada como um pátio de hospício, um consultório ou uma sala de reunião para grupos de auto-ajuda.
O trabalho de Furedi se inscreve na linha da defesa da autonomia individual, típica da crítica liberal anglo-saxônica. "Cultura da Terapia" prolonga, de um lado, os pioneiros estudos sobre o tema de Philip Rieff, Richard Sennett e Christopher Lasch e, de outro, o que Foucault afirmou sobre a cultura da confissão moderna e o que Zygmunt Bauman, Ulrich Beck, Thomas Luckmann e Colin Campbell disseram sobre a "destradicionalização" da sociedade contemporânea.


PROPOR O RETORNO À INTIMIDADE SENTIMENTAL COMO FORMA DE RESTABELECER A GRANDEZA DO POLÍTICO É REENCONTRAR O EMOCIONALISMO EM SEU NASCIMENTO


Entretanto, não obstante as notáveis qualidades, o livro passa ao largo de alguns problemas que merecem ser mais bem elaborados. O primeiro concerne à relação entre a moralidade social e o princípio das éticas compassivas. Entre o frenesi da vitimização e a justiça reclamada pelos oprimidos, a fronteira pode ser tênue, mas existe. Edificar a esfera pública sobre pleitos e direitos de vítimas de traumas ou exclusões é, certamente, uma maneira tortuosa de restaurar a dignidade da política. Rechaçar, porém, "in toto" e in limine, o valor simbólico da identificação com a dor física ou moral do outro pode resultar em um passadismo idealizado, insensível à realidade concreta dos indivíduos.

Conivente ou indiferente
Furedi mantém uma distância parcial em relação à história. Em certas passagens, tende a magnificar a pretensa grandeza política de uma era que, se não causou, foi conivente ou indiferente para com a exploração econômica e moral de milhões de seres humanos, submetidos à discriminação racial, étnica, sexual, religiosa ou de classe social; em outras, parece minimizar os ganhos em liberdade obtidos no combate aos preconceitos, inclusive com o auxílio dos saberes médico-psicológicos por ele investigados.
A história, contudo, nunca diz estou de volta! Agir politicamente, nos dias de hoje, não é querer repetir heróis gregos ou "pais fundadores" e ainda menos desconsiderar as verdadeiras devastações morais produzidas pela intolerância da civilização burguesa oitocentista e novecentista. As éticas compassivas podem, de fato, descambar para o conformismo aviltante e despolitizador, mas, sempre que as descartamos, caímos no terror e na monstruosidade.
O segundo problema aponta para os limites internos à crítica liberal da cultura. Segundo Arendt, um dos mais tenazes equívocos do pensamento político-filosófico liberal consiste em empregar o termo liberdade como sinônimo de soberania. Liberdade, diz ela, não é um predicado da existência humana solitária, um estado mental autárquico que se possa gozar dando as costas ao mundo. Ser livre é a maneira que o indivíduo tem de se distinguir e exprimir sua distinção diante da sociedade dos iguais. Sem a visão plural dos outros, o recuo para o reino da intimidade pode redundar em quimeras, delírios, grandes idéias ou idéias insignificantes, mas nada disso importa ao exercício da liberdade.
Furedi, como grande parte dos críticos liberais, caminha em outra direção. Em sua opinião, basta devolver o indivíduo à teia das "relações informais íntimas" para liberá-lo da armadilha emocionalista. A privacidade sentimental e íntima, entretanto, é a irmã mais velha do emocionalismo. Ambos são filhos da tática individualista de evitar as incertezas e agruras do mundo de todos, buscando refúgio no mundo de cada um. Propor o retorno à intimidade sentimental como forma de restabelecer a grandeza do político, portanto, é reencontrar o emocionalismo em seu nascimento.
Privacidade não é, obrigatoriamente, culto ao intimismo. Podemos ter uma privacidade rica, sem os ingredientes sentimentais de outrora. O privado pode, sem dúvida, ser enquadrado no sentimentalismo, mas é, principalmente, a área da vida na qual avaliamos o que dizemos e fazemos, longe da imediatez da ação pública. Nesse tempo do encontro consigo, a história individual ganha profundidade e densidade, a fim de retomar o fôlego e voltar à órbita daquilo que é relevante para todos.
Furedi mostra, de forma convincente, como a exibição grotesca e despudorada da intimidade não indica coragem ou vontade de verdade, mas auto-indulgência e servilismo consentido. Ninguém se engrandece moralmente ao se apresentar em público como um manual de mazelas psicológicas, exploradas pela ganância de uns, pela idiotia cívica de outros ou pela estupidez política de muitos.
Revitalizar, porém, os costumes políticos não é se apegar a um sentimentalismo à beira da extinção. Desse aspecto, sobrou liberalismo e faltou freudismo. Um pouco mais de Freud talvez convencesse o autor de que poucos de nós desejariam reviver o que Peter Gay chamou de "guerras do prazer" e "cultivos do ódio", marcas registradas da idade áurea do intimismo cultural.
Por fim, em brevíssimas palavras, um livro para ser lido e relido. Um aceno para o horizonte da "hetero-ajuda" em meio à poluição tóxica de tanta "auto-ajuda".

Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ed. Rocco). Escreve esporadicamente na seção "Brasil 504 d.C.".


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