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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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"Embora o interesse público pela terapêutica coincida com a ascensão da modernidade, permaneceu confinado a áreas da vida claramente definidas. Apesar da crescente influência da psicologia no século 20, até os anos 60 era apenas uma das muitas correntes (e de modo algum a mais importante) de influência na cultura ocidental. Foi então que a terapêutica começou a influenciar e possivelmente dominar o sistema público de significado que, pode-se dizer, surgiu como uma força cultural séria. Hoje, com a ascensão do modo confessional, a indistinção da divisão entre privado e público e a poderosa afirmação do emocionalismo, há pouca dúvida de que se tornou uma formidável força cultural. Seu poder é demonstrado por sua influência na cultura popular. Que o código terapêutico pode superar outros códigos mais tradicionais de significado é ilustrado de modo notável em "Os Sopranos". O fato de Tony abandonar o código de silêncio tradicional da Máfia pelo meio confessional da terapia é mostrado como uma tentativa previsível de acompanhar os tempos. Explorar e envolver-se com o íntimo tornou-se um importante elemento constituinte da identidade contemporânea.
Em um estudo pioneiro sobre a ascensão da cultura terapêutica, Phillip Rieff observou que "cada cultura tem seu próprio tipo de terapia". O que distingue as circunstâncias atuais dos antigos regimes terapêuticos é que o sistema de terapia não se limita a um papel claro e funcionalmente específico. Ele se fundiu com instituições culturais mais amplas e tem um impacto sobre todas as instituições da sociedade.
Como veremos, o etos terapêutico tem um impacto significativo sobre a educação, o sistema de justiça, a oferta de serviços sociais, a vida política e a medicina. Parece ter colonizado todas as profissões e instituições sociais. A invasão do etos terapêutico em outras profissões e formas de autoridade é especialmente notável em relação a suas antigas concorrentes -as instituições religiosas. Recentemente, o arcebispo da Cantuária afirmou que a terapia está substituindo o cristianismo nos países ocidentais. Segundo o arcebispo Carey, "Cristo, o salvador" está se tornando "Cristo, o conselheiro". Os sacerdotes são cada vez mais encorajados a adotar técnicas de aconselhamento. Gradativamente, o teólogo assume o papel de terapeuta. Organizações que tentam utilizar a perícia terapêutica no trabalho da Igreja inevitavelmente assumem uma orientação secular."

"Algumas palavras sobre o significado da cultura terapêutica. A ascensão da cultura terapêutica não deve ser confundida com a crescente influência que a terapia exerce na vida das pessoas. Neste livro estamos interessados em terapia como fenômeno cultural, mais que como técnica clínica. Como disse o sociólogo Robert Bellah, é "uma maneira de pensar, mais que uma maneira de curar doenças psíquicas". Uma cultura torna-se terapêutica quando essa forma de pensamento se expande, passando de informar os relacionamentos entre o indivíduo e o terapeuta para moldar as percepções públicas sobre diversos temas. Nesse ponto, deixa de ser uma técnica clínica e torna-se um instrumento de gerenciamento da subjetividade."

"As normas culturais sancionam certas formas de comportamento e estigmatizam outras. Como veremos, a cultura terapêutica oferece um roteiro por meio do qual os indivíduos desenvolvem uma clara compreensão de si mesmos e de seu relacionamento com os outros. As pessoas também lêem outros roteiros, mas, quando se trata de compreender quem elas são, a terapêutica exerce um impacto formidável em suas vidas. Já que essa autopercepção tem efeitos significativos sobre o comportamento, a cultura terapêutica influencia a ação social e política. O capítulo sobre políticas terapêuticas indica por que essa cultura pode fornecer um enfoque para a mobilização."

"Como o self é definido por meio dos sentimentos, o estado da emoção é muitas vezes representado como o determinante-chave dos comportamentos individual e coletivo. Os problemas sociais são frequentemente recolocados como individuais, sem conexão direta com o reino social.
Uma das consequências desse declínio da imaginação sociológica é uma crescente tendência a redefinir questões públicas como problema privado do indivíduo. Essa disposição é vividamente captada por meio do idioma individualizado da terapia. Por meio da linguagem da psicologia, a cultura terapêutica emoldura a maneira como os problemas são percebidos."


Trechos extraídos de "Therapy Culture" (Routledge), de Frank Furedi. Tradução de Luiz Roberto Gonçalves.

Onde encomendar:
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/3170-4033) e, no RJ, na Leonardo da Vinci (tel. 0/ xx/21/ 2533-2237).


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