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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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Ponto de fuga

De quem é a fita?

Anne-Christine Poujoulat -19.mai.2002/France Presse
O diretor francês Nicolas Philibert (no centro, à direita) com o professor Georges Lopez (no centro, à esquerda) e seus alunos em Cannes


Um documentário fez furor, na França, em 2002. Chama-se "Ser e Ter". Mostra uma escola rural perdida na província francesa, durante um ano. Tudo calmo, poético, de beleza arcaica. A serenidade da sala de aula é nostálgica. Vem de outros tempos, idealizados, quando a vida era tranquila, ritmada pelo retorno das estações. Poucos alunos, um professor devotado, cinquentão, terminando sua carreira, às vésperas de se aposentar.
Não há correspondência com as "verdadeiras" escolas públicas de hoje, difíceis, repletas de problemas e conflitos, mesmo na Europa. Essa sobrevivência residual, posta em valor pela direção paciente e sensível de Nicolas Philibert, encantou o público. Dois milhões de entradas no cinema, 200 mil vídeos e DVDs vendidos em pouco tempo: números fenomenais para o gênero.
Foi distribuído no exterior, e a sedução do filme persiste. Já está anunciado em salas brasileiras. Nos EUA, foi um sucesso de público e de crítica. Teve comentários elogiosos em publicações de prestígio, "The New Yorker", "The New York Times", entre outros. Esta última diz que "Ser e Ter" não é um testemunho sociológico, "é antes o retrato de um artista, um homem cujo trabalho conjuga disciplina e inspiração e brota misteriosa e imperceptivelmente".
Ao assimilar o professor ao artista, sem querer, o crítico tocou em ponto nevrálgico. O sucesso revolveu águas turvas no mar de rosas. Porque, diante dos lucros, o professor, Georges Lopez, decidiu abrir um processo, considerando-se o pivô, a estrela do filme. Quer levar a sua parte. Como um ator, como um artista contratado e pago para representar numa obra de ficção.

Baliza - "É preciso que as pessoas compreendam que a realidade não existe. Ninguém é, inteiramente, o que é num filme. O documentário é sempre uma construção, não é a realidade bruta, mas uma idéia da realidade, a de um autor que a mostra." São declarações da documentarista Claire Simon à revista "Télérama" sobre o caso "Ser e Ter".
O processo intentado por Georges Lopez, exigindo pagamento, suscita, a partir do campo jurídico, algumas questões teóricas inextricáveis. Qual é a natureza do documentário? Como distingui-lo da ficção? Em que medida a "realidade" transposta para a tela transforma-se em "ficção"? A resposta de Claire Simon confirma o diretor como criador: é ele o responsável, o dono do filme. Mas anula a própria idéia de realidade no cinema. Isso faz com que a fronteira entre documentário e ficção se torne invisível.

Apócrifo - A ficção imagina, o documentário mostra um real objetivo. Ambos, porém, se reduzem a uma imagem projetada na tela. Há, sobretudo, um jogo de convicções: no documentário, o espectador está convencido de que a imagem é "real", mesmo que ela seja fabricada por artifícios.
Ter e Ser - O pedido do professor primário não parece absurdo e a soma que deseja não é enorme. Mas, se ele for pago, as crianças da escola (em particular o garotinho Jojo, que rouba a cena) também não o deveriam ser? Argumenta-se que pagar alguém, num documentário, é modificar, na base, o princípio de verdade. Talvez uma participação, a posteriori, em possíveis lucros futuros, eliminasse ou diminuísse a profissionalização das pessoas filmadas.
Porém seria isso viável em todos os casos? Via de regra, numa ficção, os figurantes são remunerados. Mas, os transeuntes numa rua, como pagá-los?
Charlton Heston é um ponto de atração de "Tiros em Columbine", e muita gente foi ver o filme de João Moreira Salles por causa de Nelson Freire. Está claro, o Nelson Freire, ali, é o de João Moreira Salles, não o de um outro. Mas a Cameron Diaz de "Gangues de Nova York" não é, também, a Cameron Diaz de Scorsese? Sem Heston, Freire, Cameron Dias, sem Georges Lopez, os filmes dos quais participaram também não seriam o que são.
Na alquimia densa entre quem filma e quem é filmado, talvez o melhor seja assumir a impossibilidade das definições que separam real e imaginário. Um impasse no qual o diretor é o mestre em fabricar as convicções do público, apagando emendas e costuras.

Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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