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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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+ brasil 504 d.C.

Um poeta sem concessões

Sebastião Uchoa Leite, que morreu no último dia 27, fez do despojamento uma opção estética e de vida; leia poema inédito na página 20

Luiz Costa Lima

Na manhã de 27 de novembro, é-me informada a morte de Sebastião. Em pouco mais de três meses, perdi dois de meus maiores amigos, Haroldo de Campos (1929-2003) e Sebastião Uchoa Leite (1935-2003). A eles me refiro antes como amigos do que como os grandes poetas que foram porque me repugna nosso hábito hipócrita: só depois de mortos, noticiam o que fizemos. Mas que então dizer além de morto, morte, deserto restante? No máximo, lembrar o espanhol medieval: "Murió.../ El dolor me fizo rudo trobador". Que a mão escreva ante o olho insone. Conheci Sebastião, por volta de 1957, nos corredores da Faculdade de Direito de Recife. Estranhava sua figura alta e magra, de luto fechado e poucas palavras. Aproximou-se de mim, uma vez, e, para meu espanto, queria saber quais os pontos da prova do dia seguinte. Reencontramo-nos depois em um vestibular para filosofia, em que uma caixinha de fósforos levava pequenos lembretes, datas, nomes de obras. E, depois, em um ambiente de mais larga duração e consequências impensáveis: no Serviço de Extensão Cultural da Universidade Federal de Recife, recém-fundado por um reitor que pretendera inovar e dirigido por Paulo Freire.

O tédio da nova ordem
Sebastião tornou-se frequentador assíduo das conversas e dos sonhos da revista e da rádio, partes do Serviço de Extensão, e da preparação do curso de alfabetização idealizado por Paulo, para horror d'"as grandes famílias espirituais da cidade", que nos acusavam de preparar eleitores para candidatos comunistas. Por seu intermédio, tive acesso a amigos seus mais maduros -Gastão de Holanda, José Laurênio de Melo, Orlando da Costa Ferreira- ou cresceram laços com amigos de nossa idade, Gadiel Perruci, João Alexandre Barbosa, Jorge Wanderley. Foi na tipografia artesanal do Gráfico Amador que se imprimiria, em 1960, seu livro de estréia, "Dez Sonetos sem Matéria". Poucos anos depois, o golpe de 1964 destruía a cidade que fora nossa. Passava a haver os que, depois de presos, se tornavam os grandes exilados, os que, depois da cadeia, haviam de sair de Recife e se agarrar como ostras a pequenos empregos ou os que, provisoriamente, vagavam pela cidade "restaurada". Sebastião não aguentaria o tédio da nova ordem. Em 1965, emigraria para o Rio. À sua incompetência em gestos de fingida cortesia, se acrescentava sua absoluta incompetência em cavar um lugar na vida. Seus amigos, de um modo ou de outro, sobreviviam. Sem a ajuda de Antônio Bulhões, como poderia permanecer na cidade estranha figura tão desaparelhada? Nunca havendo sido hábil em confidências, nunca soube como se ajeitara nos anos anteriores ao trabalho nas enciclopédias que Houaiss e Otto Maria Carpeaux dirigiriam. O fato de encontrá-lo vestido, alimentado e com residência certa já era uma boa nova. Importava-me sim, sabendo que continuava a escrever, descobrir um meio de reunir seus poemas. Pelo esforço sobretudo de uma amiga comum, Priscila Siqueira Kuperman, o conseguimos. É a "Antilogia" (1979). É dela que retiro o não declarado diálogo entre o verso celebrado "prefiro rosas, meu amor, à pátria" e a ducha fria da resposta de Sebastião: "Never more/ mas ainda se ouvem as gralhas/ deste solo pútrido".

Descarada irreverência
O que, naqueles anos de 1970, se multiplicava como gracinhas ressuscitadas do poema-piada modernista, assumia no "Antilogia" a mais descarada irreverência. Em vez de rosas de um hipotético jardim, paraíso artificial da honorável pátria, o retorno à sua explícita podridão. Não seria nem sequer preciso perguntar: tal deriva não agradava mesmo aos sorrisos irreverentes dos jovens "rebeldes". Pois, na linhagem do maldito Corbière -de quem citava em epígrafe "trop réussi comme raté"-, a ironia levada ao último grau, o lirismo desancado como perfumaria, a insolência contida, mas sem medida, não correspondiam à expectativa dos leitores no entanto insubmissos. Que empatia, simpatia, aprovação ou solidariedade despertariam o Drácula que ameaçava, em "he rides again" ("Isso Não É Aquilo", 1982)? "Ah enfim/ enfiaram a estaca/ bem no fundo hein?/ deixa estar/ volto em 2079/ mais afiado."
Não se tratava nem sequer de opção por algum agressivo minimalismo. Não, o afinco de Sebastião pelo absoluto despojamento, mais que uma decisão estética, era uma opção de vida -mais que ninguém o soube Guacira, sua companheira. Ele não procurava justificá-la. Irônica quanto ao próprio pensamento, essa figura, entretanto extremamente digna, não lançava mão de nenhuma justificativa ética e, extremamente culta, vindo da poesia para o cinema, para a pintura, para a história em quadrinhos, para a música experimental e o jazz, tampouco se legitimava por alguma corrente. Era alguém que, vivendo para a palavra, suspeitava do engodo das palavras.
Sistemas, elaborados pensamentos, não que não os lesse, senão que deles desconfiava. Nada disso, porém, em nome da desistência ou do mais fácil. Apegava-se ao pobre porque incisivo, e não porque testemunho da miséria. O veneno que louvava não era o da vingança, mas o que só respeitava a dureza da pedra e do osso. Dele não se esperaria nem uma participação declamante nem um alheamento nirvânico. A expressão despojada, a vida pobre para que à palavra e ao corpo não se agarrasse nenhuma retórica: "Digam ao verme/ Que eu guardei a forma/ E a essência felina/ Dos meus humores decompostos" ("Envoi").
O que tampouco se confundia com uma concha apenas atenta a si. Daí a qualidade de seus ensaios críticos. De um deles, "Jogos e Enganos" (1995), tenho dito que contém uma das reflexões mais inteligentes já escritas sobre o estatuto da ficção.
Será surpresa que nossas bibliografias acadêmicas o desconheçam? Não temos do que nos queixar: alheio a concessões, Sebastião não poderia ter reconhecimento público. Se o tivesse, ele mesmo desconfiaria de algum engano.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


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