|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
A metrópole dos alquimistas
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Com cuidadas e longas poses de estúdio, com efeitos desfocados, a fotografia se espraia, hoje, em grandes formatos. Assim, julga-se mais
armada, mais "artística", para inserir-se
nos museus. O instantâneo, que fixa alguma ocorrência, vem sendo qualificado, cada vez mais, de "fotojornalismo". A palavra
é digna, mas contém alguma coisa de utilitário e de efêmero. Por vezes, certos fotógrafos conseguem sucesso de público por
meio de um embelezamento que, acreditam, transforma suas imagens em "arte".
Com freqüência, atingem apenas um preciosismo que degenera em sistema. Pode
haver também a sedução fácil do sentimentalismo social. A qualidade legítima da fotografia não se reduz à ilustração, por melhor que seja, de qualquer ocorrência. Nem
apela à beleza superficial que parasita o resultado. Ela se encontra no modo misterioso e raro de revelar, em modo intuitivo,
uma verdade daquilo que é visível.
Foi tal instinto de desvendamento que levou Cartier-Bresson ou Paul Strand para
além do fotojornalismo, com uma sinceridade sem enfeites. O fascínio que inspira
"Domingo", livro de Roberto Setton (ed.
Terra Virgem), brota das mesmas altas
qualidades. Reúne o conjunto de fotos expostas, há meses, na Pinacoteca do Estado.
Setton vagabundeou por São Paulo nos
domingos. Clicando, criou um conjunto
prodigioso: impossível imaginar a cidade
sentida de modo mais agudo, mais intenso.
Baudelaire diz, num verso, que o poeta e a
metrópole são como um alquimista e a matéria vil: "Tu me deste tua lama e eu a transformei em ouro". Setton demonstra que,
poeta, fotógrafo, alquimista, é tudo a mesma coisa.
Urbs
Vincent Katz, nova-iorquino, é latinista e
poeta. Publicou, em 2004, pela editora da
Universidade Princeton (EUA), as elegias
completas de Sextus Propertius, escritor
romano dos tempos do imperador Augusto. A tradução em inglês flui como água
límpida, recriando a riqueza e variedade de
achados, o brilho das imagens, os movimentos líricos do original.
Acaba de receber o prêmio de melhor tradução nos Estados Unidos, outorgado pela
American Literary Translators Association.
Propércio amou uma certa Cíntia: viviam
como cão e gato. Os poemas explodem com
as brigas violentas do casal ("Go ahead! Rip
my hair/ and scratch my face with your
beautiful nails!"), e o autor termina sempre
submisso à sua bela.
Vincent Katz publica agora, no Brasil,
"Partidas Rápidas" (Ateliê), um volume bilíngüe, lindo, com ilustrações de Mario Cafiero, tradução de Regina Alfarano. Katz
tem o amor das cidades: Nova York transparece, encantada, em "Boulevard Transportation", outro livro que ele publicou
com o grande fotógrafo Rudy Burckhardt.
"Partidas Rápidas" fala de São Paulo, sobretudo, um pouco do Rio, um pouco de
Nova York. Katz tem o tom coloquial, evocativo, do dândi que passeia, descuidado,
por metrópoles, incorporando-as como
suas. São poemas discretos, com o sorriso
da civilidade.
Ladrido
Início de um poema de Vincent Katz que
se intitula "Os Cães de São Paulo": "Os cães
de São Paulo são mais livres do que os cães
de Nova York./ Sofrem menos restrições./
Os cães de São Paulo sabem muito mais sobre / as mulheres de São Paulo do que você
ou eu./ Eles vêem, ouvem, cheiram, e talvez
até sintam o gosto de mais mulheres./ Os
cães de São Paulo não têm nome de seres
humanos".
Peregrino
Dois pequenos livros, dois diamantes,
ainda sobre São Paulo: "Trânsitos" e "Vidas", de Vincenzo Scarpellini (Ateliê). É
uma seleção dos desenhos e das frases que a
Folha publica nas quartas-feiras. Trata-se
de crônicas visuais e escritas; Marçal Aquino escreveu delas que são um antídoto contra a notícia escandalosa e sensacional.
Scarpellini é italiano, apaixonou-se pela cidade em que mora, acha seduções em recortes na paisagem que outros olhos, calejados pela familiaridade quotidiana, não
sabem mais ver. Em cores bem sustentadas, seus pastéis dão a impressão de acariciar as ruas, as praças, os seres modestos
que reconstituem.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os dez + Próximo Texto: Biblioteca básica - Isabel Lustosa: A Montanha Mágica Índice
|