São Paulo, domingo, 08 de janeiro de 2006

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Ponto de fuga

A metrópole dos alquimistas

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Com cuidadas e longas poses de estúdio, com efeitos desfocados, a fotografia se espraia, hoje, em grandes formatos. Assim, julga-se mais armada, mais "artística", para inserir-se nos museus. O instantâneo, que fixa alguma ocorrência, vem sendo qualificado, cada vez mais, de "fotojornalismo". A palavra é digna, mas contém alguma coisa de utilitário e de efêmero. Por vezes, certos fotógrafos conseguem sucesso de público por meio de um embelezamento que, acreditam, transforma suas imagens em "arte".
Com freqüência, atingem apenas um preciosismo que degenera em sistema. Pode haver também a sedução fácil do sentimentalismo social. A qualidade legítima da fotografia não se reduz à ilustração, por melhor que seja, de qualquer ocorrência. Nem apela à beleza superficial que parasita o resultado. Ela se encontra no modo misterioso e raro de revelar, em modo intuitivo, uma verdade daquilo que é visível.
Foi tal instinto de desvendamento que levou Cartier-Bresson ou Paul Strand para além do fotojornalismo, com uma sinceridade sem enfeites. O fascínio que inspira "Domingo", livro de Roberto Setton (ed. Terra Virgem), brota das mesmas altas qualidades. Reúne o conjunto de fotos expostas, há meses, na Pinacoteca do Estado.
Setton vagabundeou por São Paulo nos domingos. Clicando, criou um conjunto prodigioso: impossível imaginar a cidade sentida de modo mais agudo, mais intenso. Baudelaire diz, num verso, que o poeta e a metrópole são como um alquimista e a matéria vil: "Tu me deste tua lama e eu a transformei em ouro". Setton demonstra que, poeta, fotógrafo, alquimista, é tudo a mesma coisa.

Urbs
Vincent Katz, nova-iorquino, é latinista e poeta. Publicou, em 2004, pela editora da Universidade Princeton (EUA), as elegias completas de Sextus Propertius, escritor romano dos tempos do imperador Augusto. A tradução em inglês flui como água límpida, recriando a riqueza e variedade de achados, o brilho das imagens, os movimentos líricos do original.
Acaba de receber o prêmio de melhor tradução nos Estados Unidos, outorgado pela American Literary Translators Association. Propércio amou uma certa Cíntia: viviam como cão e gato. Os poemas explodem com as brigas violentas do casal ("Go ahead! Rip my hair/ and scratch my face with your beautiful nails!"), e o autor termina sempre submisso à sua bela.
Vincent Katz publica agora, no Brasil, "Partidas Rápidas" (Ateliê), um volume bilíngüe, lindo, com ilustrações de Mario Cafiero, tradução de Regina Alfarano. Katz tem o amor das cidades: Nova York transparece, encantada, em "Boulevard Transportation", outro livro que ele publicou com o grande fotógrafo Rudy Burckhardt. "Partidas Rápidas" fala de São Paulo, sobretudo, um pouco do Rio, um pouco de Nova York. Katz tem o tom coloquial, evocativo, do dândi que passeia, descuidado, por metrópoles, incorporando-as como suas. São poemas discretos, com o sorriso da civilidade.

Ladrido
Início de um poema de Vincent Katz que se intitula "Os Cães de São Paulo": "Os cães de São Paulo são mais livres do que os cães de Nova York./ Sofrem menos restrições./ Os cães de São Paulo sabem muito mais sobre / as mulheres de São Paulo do que você ou eu./ Eles vêem, ouvem, cheiram, e talvez até sintam o gosto de mais mulheres./ Os cães de São Paulo não têm nome de seres humanos".

Peregrino
Dois pequenos livros, dois diamantes, ainda sobre São Paulo: "Trânsitos" e "Vidas", de Vincenzo Scarpellini (Ateliê). É uma seleção dos desenhos e das frases que a Folha publica nas quartas-feiras. Trata-se de crônicas visuais e escritas; Marçal Aquino escreveu delas que são um antídoto contra a notícia escandalosa e sensacional. Scarpellini é italiano, apaixonou-se pela cidade em que mora, acha seduções em recortes na paisagem que outros olhos, calejados pela familiaridade quotidiana, não sabem mais ver. Em cores bem sustentadas, seus pastéis dão a impressão de acariciar as ruas, as praças, os seres modestos que reconstituem.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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