São Paulo, domingo, 08 de janeiro de 2006

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+ cultura

O filósofo midiático Bernard-Henri Lévy lembra seu primeiro contato com a obra do pensador lituano naturalizado francês Emmanuel Levinas, que completaria cem anos na próxima quinta-feira

O mundo enfeitiçado

BERNARD-HENRI LÉVY

Se eu tivesse que dizer em poucas palavras o que me subjugou, no final dos anos 70, quando encontrei pela primeira vez a obra de Emmanuel Levinas (1906-95), resumiria assim: Primeiro, a descoberta de uma forma de pensamento judeu que, sem se deixar reduzir, naturalmente, a esse moralismo vazio que fora a vulgata, durante um século, do franco-judaísmo, só concebia a relação com Deus na medida em que implicava imediatamente -no próprio processo de sua transcendência, e não em princípio ou no fim das contas- uma relação viva com o próximo.


Mais vale um surdo que nada ouve que um exalta-do que tudo escuta


Um judaísmo prático, se quisermos; um judaísmo poético, em que conhecer Deus, reverenciá-lo, era saber o que é preciso fazer e, justamente, como fazê-lo; um judaísmo que nos dizia que não há "óptica" (olho fixado no céu) que não deva se resolver em "ética" (intriga incansável dos humanos); um judaísmo do qual percebo, em retrospectiva, que já combinava muito bem com as nostalgias militantes que, como outros, eu alimentava.
Depois, a idéia de uma espiritualidade que não tinha nada a ver, de repente, com o que entendemos habitualmente por "religião": cuidado com o sagrado, dizia em substância Levinas; cuidado com o mistério, o entusiasmo, as fontes da verdadeira fé, o êxtase; cuidado com esse culto do numinoso, do supersticioso, do divino onipresente, do irracional, que é contra o que a Revelação judaica se insurgiu, desde o primeiro dia, em seu projeto histórico de desenfeitiçamento do mundo; o sagrado não é o santo, martelava o maravilhoso "Difícil Liberdade", que era e ainda é a mais segura introdução a essa obra tão complexa; o sagrado é a violência; o sagrado é a idolatria.
Não seria preciso forçar muito os textos para fazê-los dizer -uma sorte, também, para o agnóstico que eu era!- que mais valia, no fim das contas, um surdo que nada ouve (além do perturbador, desesperador, silêncio do divino) que um exaltado que tudo escuta, em toda parte (sendo o mundo, para ele, apenas o eco infindável dos deuses obscuros, perpetuamente renascidos, do paganismo...).
E depois uma ontologia cuja doutrina era: o ser é menos uno do que pensamos; ele não é essa totalidade fechada sobre si mesma, saturada, que é descrita de formas diversas, pelo menos desde Espinosa, pelo essencial da filosofia moderna; e se ele não é essa totalidade -se por exemplo o hegelianismo, afinal, não tem tanta razão quanto seus adversários (Bataille...) se resignaram a crer- é porque existe essa possibilidade de uma palavra que começa n"Aquele que a enuncia e depois naqueles -literalmente, os profetas- que a proferem depois d'Ele. O antitotalitarismo? A saída do círculo da servidão? Bem, aí está.
Não procurem mais. Antes da moral, antes da política, antes dos teoremas de Hannah Arendt, antes dos escólios de Raymond Aron ou Claude Lefort, essa proposta simples mas, na época, revolucionária: a Lei é mais santa que o fato; sempre, neste mundo, embora dominando e excedendo o que ele nos mostra, existe um ponto de onde parece que é o próprio mundo que é loucura, a história é contra-senso e a última palavra cabe à criatura confiável, responsável, livre.

Exultação libertadora
Acrescentar a grande beleza desses livros aos títulos de romances, atravessados por significantes dos quais não sabíamos bem se eram imagens, personagens, conceitos: o "vir de frente do Rosto", sua "Luminância", seu "Olhar", o "Dizer-Antes-do Dito", o "Hóspede" e o "Refém", a "Clareira".
Acrescentar o paradoxo de um pensamento que nos falava hebraico mas sem cessar, muito ao contrário, de nos traduzi-lo em grego ou mesmo em alemão: as duas línguas "metafísicas por excelência" do mestre Heidegger associadas, de repente, à da santidade assim como (mas não é a mesma coisa?) a essa ciência da salvação que era a leitura do Talmude.
Acrescentar a singular propriedade que tinha essa obra de compreender e, portanto, suspender algumas das oposições canônicas que pareciam irrevogavelmente cindir o continente do pensamento judeu: Levinas era um pensador laico ou religioso? Fiel à história santa ou à memória da Europa? Sionista ou ligado à memória dolorosa e esplêndida da diáspora? Justamente. Tudo isso ao mesmo tempo.
Pois é sempre a mesma história desse enigmático ponto do espírito a partir do qual, se nele nos colocarmos, essas contradições parecem não propriamente solúveis, mas constitutivas, conjuntas, de uma exultação libertadora.

Três à distância
Acrescentar tudo isso, sim, para compreender o prestígio de uma obra em que se encontraram muitos outros homens e mulheres de minha geração (penso em Benny Lévy, então secretário de Sartre) -e depois ainda, 20 anos mais tarde, a incrível aventura que fez com que três de nós (os mesmos, mais Alain Finkielkraut) fundassem, em Jerusalém, esse raro lugar de diálogo que foi, e continua sendo, o Instituto de Estudos Levinassianos.
Muitas coisas, então, nos mantinham à distância. Muitas querelas, mais que nunca, separam hoje os sobreviventes do trio.
Entre nós, porém, há as letras de fogo do texto de Levinas e seu convite, infinito, a falar.

Bernard-Henri Lévy é filósofo, autor de "Quem Matou Daniel Pearl" (Girafa), "O Século de Sartre" (Nova Fronteira) e outros.
Este texto foi publicado no "Le Monde".


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