São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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O dia posto em cena


Autor de "Galileu" não se opunha ao envolvimento emotivo, mas ao ilusionismo


SÉRGIO DE CARVALHO
especial para a Folha

Nesses tempos em que, na vida cultural, uma boa circulação é tudo, em que a liquidez é o grande bem da época -foram-se os dias em que o valor das coisas era proporcional ao trabalho socialmente necessário que nelas se aplicava-, Brecht tem sido muito aproveitado por seu valor de troca. É convertido em cenas festivas de um tropicalismo epigonal (que disfarça seu narcisismo com imagens impositivas de uma felicidade possível, antes confusionista e desnorteadora do que redentora). É elevado por suas conquistas técnicas e poéticas, de inegável vanguardismo, em detrimento de sua visão política, que dizem ultrapassada, como se essas coisas pudessem ser separadas. É ainda idolatrado pelos guardiões do brechtismo, que se tornaram ideológicos ao pregar verdades agora sem crédito diante da experiência da sociedade contemporânea no estágio atual do capitalismo.
O que mantém viva uma obra teatral como a de Brecht é o uso que dela se faz no diálogo com o público de hoje.
Brecht não se opunha ao envolvimento emotivo, mas ao ideal de captura ilusionista, que pede atmosferas dramáticas, anulação do espectador em meio ao ambiente escuro da sala, sacralização do ato teatral, apagamento do caráter coletivo e instável do público. A história mostrou que sua opção por um envolvimento cênico às claras, sem ilusões, por meio do jogo de desengano (que Brecht aprende dos encenadores russos, sobretudo Meyerhold), foi também uma afirmação da teatralidade num tempo em que o cinema se tornava melhor ilusionista do que o palco ao narrar de um indivíduo (a câmera) para outro indivíduo (o espectador). O teatro tem o grave problema de mostrar gente em cena. Nele é difícil preservar essa grande conquista burguesa, a individualidade. O maldito do ator tem olhos para nos enxergar também. Por isso Brecht pedia mais luz sobre o palco. Queria o próprio dia em cena.
Mas o que fazer quando o sentimento da época é noturno? Quando à noite, hora em que vamos ao teatro, estamos tão em desordem quanto a cidade em que vivemos? E a vontade de distração se tornou vontade de ganhar algum esquecimento e interesse pelo mundo?
A resposta é incerta, mas o "assombro dos entorpecidos" é pouco.
O teatro brechtiano transmite sobretudo o gosto pela inteligibilidade. Baseia-se ainda numa distinção clássica entre sujeito e objeto do conhecimento. O que deve ser iluminado é a contraposição entre um e outro. É um teatro de separação de elementos.
Como seu pressuposto é que o trabalho não é uma condenação pós-paradisíaca, mas sim a principal fonte de felicidade humana toda vez que se bem partilha dos seus frutos, a construção da cena exige também uma colaboração do público, de ordem crítica e imaginária. Os homens se sentem bem quando trabalham por uma obra sabendo de sua finalidade. A cena brechtiana não abandona a tradição do teatro como lugar de representação. Não se recusa às construções de brinquedo, às ninharias, à banalidade ou ao impulso mimético mais ordinário, nem à felicidade de um mundo copiado, e assim melhor compreendido, que sempre animou a arte quando ela prestou para alguma coisa.
Se a produção é fonte de felicidade (e isso não depende, em termos brechtianos, só da maneira como eu me comporto, mas também da maneira com que os outros se comportam, e por isso "interessa também a possibilidade de influir sobre os demais"), os sentidos não podem ficar inertes diante do fenômeno teatral. O olhar para o palco deve ser ativo, discriminador, comparativo. A beleza da cena não surge para provocar encantamento ou fascinação, mas sim para "dar aos sentidos a oportunidade de se mostrarem hábeis". É assim que o olho produz. A medida interessada do prazer artístico é dada pela instrumentalização da consciência e dos sentidos. Bonito é aquilo que ajuda a melhorar a vida humana coletiva. E o teatro pode ajudar a desenvolver a intuição para a história.
Brecht pretendeu construir um teatro que fosse uma imagem praticável do mundo. Um modelo de compreensão das relações humanas em sociedade. Interessava-se por muitas formas de ação, especialmente as negativas: como as pessoas se enganam, se exploram, se mutilam, se odeiam. A certa altura da vida, comparou sua dramaturgia a um planetário, por meio do qual o público poderia compreender, com a tranquilidade de quem está parado, observando, o movimento das personagens. Para minimizar a aversão à sua abordagem científica, despertada especialmente nos cultores da arte absoluta, ele escolheu essa imagem de serenidade celestial. Só que o céu estrelado do planetário está ali para ensinar que os movimentos dos astros obedecem a leis. Complexas, variáveis, mas compreensíveis. Para quem diz que no caso das pessoas em sociedade é diferente, Brecht responderia: "Do ponto de vista de uma bola, no meio de um jogo qualquer, as leis do movimento também são praticamente inconcebíveis". Por isso ele gostava de relatos históricos e sentimentais de desastres, de grandes atos confusos, ocorridos não por má influência do destino, mas por falhas evitáveis de gente desastrada ou mal intencionada. Os acontecimentos humanos têm antecedentes históricos, contexto de classe, circunstâncias de tempo e espaço. Desenvolvem-se segundo trajetórias descontínuas e inconstantes, que podem ser acompanhadas. O céu de Galileu não é menos ou mais poético do que qualquer outro. A arte não se opõe ao mistério, mas pode combater a mistificação.
O mais discutido dos conceitos brechtianos -o de distanciamento- é o que pede maior revisão. Muita gente que trabalha com o "efeito de distanciamento" se esquece de sua ligação íntima com a tradição cômica. Considerado apenas como técnica, é coisa muita antiga, presente em qualquer triangulação de comediante popular. Aparece, por exemplo, quando uma mulher de camisola observa todo o esforço do seu marido ao entrar de madrugada em casa sem fazer barulho, na volta culpada da farra. E essa suspensão inusitada de um objeto do olhar pode ser feita por muitos elementos do espetáculo, além dos atores: iluminação, música, legenda.
O distanciamento pretende recuperar a curiosidade por intermédio do espanto, etapa fundamental do senso crítico. Se considerarmos correta a hipótese de Bergson sobre a origem do riso, pela qual a comicidade se gera quando notamos um comportamento mecânico de um ponto de vista mais vivo, o distanciamento também pode ser definido como uma reorganização do olhar para que ele desvende automatismos. O que só é possível de um ponto de vista mais flexível, próximo da experiência comum da vida. Brecht dizia a seus atores durante a leitura das peças para sempre se perguntarem como uma pessoa simples compreenderia aquela cena. Entendia o humor como um sentimento de distância, como uma conquista da objetividade.
O distanciamento brechtiano não é, contudo, apenas uma técnica cômica, tal como é hoje utilizado pela publicidade. Assim como grande parte do riso pede uma visão moral (os tipos cômicos têm graça porque reprovamos suas obsessões, que eles juram ser inexistentes), o efeito de distanciamento é uma técnica de prazer em bases morais. Retira-nos de nossa posição individual e nos lança na moral de um grupo, de uma classe social. Em Brecht a mecanicidade e os automatismos criticados ainda são os da sociedade burguesa tradicional, hoje quase extinta. O problema atual do distanciamento não é de ordem técnica, mas moral.
Mais do que um grande autor a ser encenado, Brecht é um modelo para a produção dramatúrgica brasileira. Sua agradabilidade na apresentação dos conflitos, sua manutenção das "conquistas do classicismo do espírito dialético", sua ironia elegante e violenta, sua proximidade dos artistas do palco são parâmetros para que se dê uma síntese entre nossas tradições mais fortes: de um lado o realismo psicológico que, apesar da boa vontade social, nunca se desapegou da dependência à dramática rigorosa que o circunscreve a problemas emparedados; de outro lado, a cena das alegorias, mais próximas das formas teatrais populares, porém dispersas em resíduos retóricos barrocos que não fazem muito mais do que repisar a "idéia fixa latino-americana da imagem".
A obra de Brecht aponta para uma síntese. Entre o fragmento e a história, entre o olhar estrangeiro e o olhar conhecido, entre os inesperados diálogos e os grandes interesses, suas peças são a principal referência do século quanto a uma unidade possível entre o realismo e a poesia.


Sérgio de Carvalho é diretor teatral da Companhia do Latão e prepara a encenação de "Santa Joana dos Matadouros", de Brecht, em São Paulo.



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