São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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O pensador do cinema


Diretor de "Outubro" fez a primeira grande obra teórica sobre a sétima arte


CARLOS ADRIANO
especial para a Folha

Pensar o cinema: Eisenstein não foi o primeiro intelectual (houve Canuto), nem o primeiro realizador (houve Epstein), nem mesmo o primeiro diretor soviético (houve Pudovkin) a fazê-lo. Mas foi o primeiro a produzir, num programa estético, um conjunto arrojado de reflexões capaz de acionar um vasto arsenal cultural-histórico-social, munido de erudição e inquietação.
A primeira incursão artística e militante de Eisenstein foi no teatro, com a agitação bolchevique do Proletkult e a lição de Meyerhold, mestre do novo teatro e criador da biomecânica.
Seu primeiro manifesto saiu em 1923 na revista "Lef": "Montagem de Atrações". Baseado em encenações heterogêneas ("agitprop", circo, "grand guignol", music-hall, boxe, cinema), o método descarregava choques de impacto imediato (sensorial e psicológico) na platéia, num "teatro de agit-atrações" ideológico.
Ao juntar a teoria das marionetes de Kleist e o sistema fisionômico de Lavater, criou a "tipagem", regra de interpretação para rosto e corpo do ator transfigurado, que usaria em todos seus filmes.
Na passagem do teatro para o cinema (1924), transformou as agressões programadas da montagem de atrações excêntricas em "método para a produção de um cinema proletário".
Contra a montagem do cinema clássico narrativo-ilusionista de Griffith e a montagem aristotélica de Kulechov e Pudovkin, a montagem dialética, que justapõe elementos opostos e intrusos na diegese, gerando idéias, sensações e descontinuidade.

Princípio do conflito
Eisenstein reconheceu em Griffith a revelação da montagem, mas criticou-o por ficar "num nível de representação e objetividade e nunca tentar, por meio da justaposição de planos, exprimir sentido e imagem". "A questão da montagem se baseia numa estrutura definida e num sistema de pensamento definido; deriva apenas da consciência coletiva, que é um reflexo de um novo (socialista) estágio da sociedade humana e um resultado da educação ideológica e filosófica do pensamento, inseparavelmente vinculada à estrutura social desta sociedade".
Ele elegeu o princípio do conflito (de direções, movimentos, tons, volumes, escalas, velocidades, luzes, formas), como se vê na montagem das cenas da escadaria e do porto de Odessa em "O Encouraçado Potenkim".
Eisenstein começou a produzir teorias copiosamente em 1929, talvez como vingança voluntária contra os entraves aos filmes, após "A Linha Geral" virar "O Velho e o Novo" (por caducar como pedagogia sobre o campo). Seus filmes de propaganda não se enquadravam na moldura doutrinária. Sempre em tensão com os rumos políticos (ora endeusado, ora expurgado), era obrigado a retratar-se (como na autocrítica "Traí o Sentido da Verdade Histórica", 1946). Preparou uma série de ensaios, reunidos e revistos em 1946-47 para o livro "A Forma do Filme" (no Brasil lançado por Jorge Zahar Editor), publicado em 1949. Seu outro livro famoso, o primeiro e único publicado durante sua vida, foi "O Sentido do Filme" (Jorge Zahar Editor), em 1942, graças ao empenho de Jay Leyda. Suas teorias nasciam da análise de seus filmes.
"O Princípio Cinematográfico e o Ideograma" (1929) demonstra que a cinematografia é montagem. Ao se combinarem dois hieróglifos (imagens pictográficas da escrita oriental) tem-se não uma soma, mas um produto (por exemplo, caractere de ouvido + caractere de porta = ouvir). É a essência do processo que articula dois planos (imagens cinematográficas) e monta uma relação entre eles. A idéia de montagem e plano como colisão e composição encontrou uma confirmação na escrita japonesa e chinesa. Daí surgiriam ainda noções para representação extraídas do teatro kabuki.
Do monumental afresco sobre a civilização mexicana (1930-32), Eisenstein derivou a teoria de "tótens animados", experiência sincrética de carnavalização, e a teoria do pensamento sensorial, indiferenciador (típico de rituais primitivos que rompem compartimentações e sincronizam estímulos totais), exemplificadas na procissão dos mortos em "Que Viva México!" e na batalha no gelo em "Alexandre Nevsky".
Sob a pecha de "desertor da pátria", Eisenstein voltou a Moscou em 1932, na companhia de Brecht. Refugiou-se, isolado, como professor no Instituto de Cinema em Moscou, destilando teorias, polêmicas e desenhos.
Em 1935-42, reviu o cinema conceitual e buscou "um método geral para o problema da forma, dentro de nosso estilo envolvente de realismo socialista, concepção abrangente do estilo único". Desenvolveu as teorias do "monólogo interior" e da "fluxo da consciência", extraídas da literatura e do contato com Joyce e Reich, e combinando a física de Sukhotsky (o limite da matéria), a psicologia de Vygotsy (a fala interior) e a antropologia de Lévy-Bruhl (o pensamento primitivo).
Segundo Viktor Shklovski, para Eisenstein o processo de pensamento humano é montagem. A montagem organiza e produz cultura e conhecimento.
Seus métodos de montagem são: a montagem métrica (fórmula de medida dos fotogramas), a montagem rítmica ou emotivo-primitiva (o conflito entre o comprimento do plano e o movimento dentro do plano), a montagem tonal ou emotivo-melódica (baseada na dominante, no tom geral do fragmento e nas combinações de vários graus de foco ou vibrações de luz).
A montagem atonal ("cálculo coletivo e colisão de todos os apelos e estímulos do fragmento", em "percepção fisiológica") privilegia "o complexo harmônico-visual do plano". Como exemplo, a cena da ceifa em "A Linha Geral".
A montagem intelectual ou atonalidade intelectual aciona "o processo fisiológico de uma atividade nervosa mais elevada" no "conflito-justaposição de sensações intelectuais associativas" e "a realização da revolução na história geral da cultura, numa síntese de ciência, arte e militância de classe". Como montou a sequência dos deuses em "Outubro".
A montagem vertical vaza a bidimensionalidade da tela e traz a montagem para o interior do plano, propondo uma "sincronização dos sentidos" inspirada na partitura atonal. Há "a sensação de combinação de todas as peças como um todo", ligada à "percepção da imagem", num "avanço simultâneo de correspondências audiovisuais". Num diagrama, "todo um complexo de uma partitura de muitas vozes", em "junções verticais". Nessa sincronização, a partitura polifônica rege complexos contrapontos: a "estrutura da imagem da obra". É o que se vê nas projeções de sons, sombras e cores que se descolam de seu referencial em "Ivan".
A fase final, comportada se comparada aos métodos anteriores, deve ser vista sob as demandas e mudanças histórias da época ainda pouco conhecida. Nos últimos textos, Eisenstein sublima a montagem violenta e radicaliza a precisão composicional e a saturação do quadro, sustentando o êxtase, a sincronização de sentidos e o pensamento primitivo. É "uma arte de síntese orgânica em sua própria essência", que combina o épico, o dramático e o lírico.

A estrutura da emoção
O último trabalho teórico foi o fértil e investigativo "A Natureza Não-Indiferente" (1945-47): "Uma obra artificial é construída com base nas mesmas leis pelas quais os fenômenos não-artísticos -os fenômenos "orgânicos" da natureza- são construídos". O "centro não é mais o elemento entre os planos, mas o acento dentro da peça", "imagem audiovisual unificada". A base é "a estrutura da emoção humana", analisando "o orgânico e o patético (patos)" em seus filmes ("o efeito de uma obra patética consiste naquilo que leve o espectador ao êxtase").
Os fotogramas de Eisenstein são "momentos pregnantes" que a "História torna inteligível e desejável", segundo Roland Barthes ("Image-Musique-Texte"), que os relaciona ao "gesto social" de Brecht.
Naum Kleiman, curador da obra de Eisenstein, conta que no fim de "A Formiga e o Gafanhoto", capítulo do inacabado "Povo de um Filme", ao descrever a equipe de "Ivan" há uma passagem sobre a montadora Esfir Tobak e uma afirmação curiosa. Ao relembrar suas célebres teorias, diz que nunca ocorreu a ninguém checar se o autor das mesmas realmente as seguiu. Escreveu Kleiman: "Infelizmente, nós tentamos ilustrar suas teorias muito diretamente com exemplos de seus filmes ou entender os filmes como uma realização direta das teorias. Mas, como agora começo a compreender, sua prática é, por um lado, mais rica que sua teoria, enquanto sua teoria é, por outro lado, muito mais rica que sua obra. Elas não se correspondem meramente: de fato, elas conflitam".
As teorias de Eisenstein formam um legado ainda não digerido, por sua complexidade, seu descontexto histórico e a massa imensa de tesouros ainda não revelados. É o próprio diretor quem diz: "É extremamente curioso o fato de determinadas teorias, numa determinada época histórica, representarem uma expressão de conhecimento científico e, na época seguinte, declinarem como ciência, mas continuarem a existir como possíveis e admissíveis não na linha da ciência, mas na linha da arte e do imaginário".
Foi um teórico até o fim da vida. Em 11 de fevereiro de 1948, aos 50 anos, Eisenstein morreu de um ataque do coração, enquanto trabalhava num ensaio sobre a cor no cinema.


Carlos Adriano é diretor e crítico de cinema, autor do filme "Remanescências", entre outros.



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