São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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LIVROS
Napoleão na berlinda


Biografia lançada nos EUA desmistifica o imperador francês


CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
de Washington

O número de livros escritos sobre Napoleão Bonaparte varia, conforme a fonte, de 200 mil a meio milhão. Não importa. Com certeza, depois de Jesus Cristo, poucos outros personagens mereceram tanto atenção pública quanto Napoleão.
Mas o historiador franco-americano Alan Schom, que já havia escrito sobre Emile Zola, descobriu em 1987 que nenhum desses títulos, ao menos em língua inglesa, era uma biografia completa de Napoleão Bonaparte (todas se limitavam a pedaços, maiores ou menores de sua vida) e pôs-se a trabalhar nela.
O resultado acaba de ser publicado ("Napoleon Bonaparte", Harper Collins, 888 págs., US$ 40) e, como não poderia deixar de ser com um trabalho sobre figura tão controvertida, vem recebendo aplausos e vaias em enormes proporções.
Alguns reclamam que ele não é suficientemente extensivo em inúmeros aspectos. De fato, como o autor é fascinado por estratégia militar, ele gasta muito espaço na discussão de campanhas e reserva parcas páginas para os aspectos políticos das vitórias e fracassos de Napoleão. Outros, é claro, se queixam do detalhismo desnecessário (por exemplo, os minuciosos relatos de médicos aborrecidos com a falta de condições para tratar de milhares de soldados feridos).
Com centenas de milhares de livros escritos sobre assuntos de dois séculos atrás, seria difícil para qualquer um encontrar novidades que revolucionassem a imagem que o mundo tem de Napoleão.
Schom, com certeza, não consegue tal façanha, embora a publicidade do livro diga que sim. Uma das pretensas novidades é apenas a reafirmação de uma conhecida tese de que um dos colegas de exílio de Napoleão na ilha de Santa Helena o envenenou aos poucos e que esta foi a razão de sua morte.
O que talvez o livro tenha de novo é o fato de ele ser apaixonadamente crítico sobre um personagem que, com muita frequência, é admirado por seus biógrafos.
Às vésperas de uma série de comemorações de bicentenários da ascensão de Napoleão ao poder, essa atitude de Schom é, pelo menos, corajosa, ainda mais que existe na França uma tendência recente de parte da "esquerda" de tentar transformá-lo em herói democrático. A "direita" sempre o honrou e ele agora pode se tornar uma perigosa unanimidade.
Schom não se limita a enfatizar os problemas morais de Napoleão, embora os exponha com muita crueza. Ele chega ao ponto de atacar Napoleão em assuntos nos quais é consensualmente admirado, como o de estratégia militar.
A campanha do Egito foi "um fiasco", a da Itália, "uma orgia de saques". Napoleão era insensível em relação aos seus soldados, engajou-se em guerras desnecessárias sob qualquer ponto de vista, deixou a Europa devastada, provocou a morte de pelo menos três milhões de soldados, diz Schom.
O biógrafo levanta a hipótese de que Napoleão era ou se tornou insano. Por exemplo, quando trata dos planos que o imperador tinha para conquistar a Inglaterra, Schom afirma: "Ele certamente não tinha qualquer senso de realidade, apesar de seu grandes conhecimentos de matemática". Ao descrever os dez dias que Napoleão passou trancado no Kremlin, em Moscou, pensando no futuro, ele pergunta: "Ele estava enlouquecendo, como se dizia entre seus oficiais e mesmo entre soldados?".
Schom usa um estilo muito cinematográfico para narrar a vida de Napoleão. Como "flashbacks", boas epígrafes, frases cheias de vida, embora às vezes exagere um pouco na contemporaneidade de suas comparações (a campanha contra a Rússia provocou "o maior congestionamento de trânsito da história da Europa").
Também como quase todas as obras desse porte, "Napoleon Bonaparte" tem seus erros factuais. Alguns são bastante sérios, como a afirmação de que Napoleão reintroduziu a escravidão em seus "cem dias", em 1815, quando, de fato, ele a aboliu. Outras, apontadas como graves por alguns críticos, são, na verdade, detalhes de menor importância (em especial por se referirem a outros personagens do drama, como Talleyrand).
No final, o leitor que não tinha preconceito favorável ou contrário a Napoleão, sai dessa biografia com a impressão de que o imperador usava as pessoas e os exércitos apenas para satisfazer suas próprias necessidades, não tinha apego a princípios ideológicos ou morais, era cheio de limitações.
Um retrato bem diferente do que grandes nomes das artes, de Goethe a Beethoven, de Victor Hugo a Stendhal, fizeram dele. Mas, provavelmente, um retrato muito mais próximo da realidade.
Numa época em que a historiografia parece mais disposta do que nunca a praticar o revisionismo, os vilões e os heróis estão sendo humanizados e isso é inegavelmente positivo. Assim como a mais recente grande biografia de Hitler ressalta que ele tinha lá as suas qualidades, esta de Napoleão realça seus defeitos.
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Onde encomendar:
O livro "Napoleon Bonaparte" pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-5994). Pela Internet, o livro pode ser adquirido na Amazon Books (http://www.amazon.com).



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