São Paulo, domingo, 08 de abril de 2001

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Em nome do Pai

A construção do mito Lacan

O Mais! ouviu vários intelectuais para discutir a difusão no Brasil das idéias do psicanalista francês Jacques Lacan, um dos mais influentes pensadores da segunda metade do século 20 e que estaria completand o cem anos nesta semana

Reprodução
Jacques Lacan durante o Congresso da Escola Freudiana em Roma, em 1975; abaixo, foto tirada por Brassaï em 1944 reúne, da esq. para a dir., Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Michel Leiris e Jean Aubier (sentados) e Jacques Lacan, Cécile Eluard, Pierre Reverdy, Louise Leiris, Pablo Picasso, Zanie de Campan, Valentine Hugo, Simone de Beauvoir e o próprio Brassaï (em pé); embaixo, à esq., Lacan em sua casa de campo em Guitrancourt


Maurício Santana Dias
da Redação

Desde que Sigmund Freud fundou a psicanálise com a publicação de "A Interpretação dos Sonhos" (1900), em Viena, nenhum outro pensador transformou tanto a teoria e a prática psicanalíticas quanto Jacques Lacan, cujo centenário de nascimento acontece na próxima sexta-feira, 13 de abril. Famoso pelo estilo hermético e barroco, Lacan se tornara uma lenda da "intelligentsia" francesa já no início dos anos 60, antes mesmo de ter publicado um livro sequer -com a exceção de sua tese de doutorado em psiquiatria, "Da Psicose Paranóica em Suas Relações com a Personalidade", lançada em 32. Como acontece a toda lenda, Lacan se veria convertido rapidamente em objeto de adoração por uns, de repúdio por outros, tanto na França quanto no vasto território por onde as suas idéias se espalharam.
Em 1975, ano em que foram fundadas as primeiras escolas lacanianas no Brasil, a fama do psicanalista francês que havia pregado o "retorno a Freud" e postulado que "o inconsciente se estrutura como linguagem" (leia glossário com os principais conceitos do autor nas págs. 8 a 12) estava no auge. Lacan mantinha um seminário semanal desde 1953 e, em 1966, reuniu seus textos dispersos no livro "Écrits" (Ed. Seuil), o que contribuiu para ampliar o seu público. Multidões de jovens iam ouvi-lo falar no grande anfiteatro da Faculdade de Direito da Sorbonne, onde, todas as quartas-feiras, entre as 12h e as 14h, o "mestre" apresentava seus seminários cercado de microfones e de olhos vidrados.
Naquela altura, Lacan estava passando pela última reformulação de sua teoria. Seus estudos de lógica e de topologia matemática o conduziram à formulação dos "matemas" e dos "nós borromeanos", e sua antiga tópica do "real, simbólico e imaginário" fora recodificada sob a sigla RSI. Como observa Elisabeth Roudinesco na biografia dedicada a ele, "Jacques Lacan - Esboço de uma Vida, História de um Sistema de Pensamento" (Companhia das Letras), nos últimos anos de vida Lacan parecia embarcado numa "busca do absoluto" que tornara sua linguagem cada vez mais cifrada e impenetrável, enredada numa profusão de trocadilhos e neologismos. Esse foi o ponto de chegada de um pensamento que, tendo partido da leitura de Freud, buscara criar ou descobrir uma gramática para o inconsciente valendo-se de Platão, Hegel, Heidegger e sobretudo do estruturalismo de Saussure e de Lévi-Strauss.
A obscuridade da fala e dos textos de Lacan era apontada por todos, inclusive por amigos próximos como Merleau-Ponty e o próprio Lévi-Strauss. A mesma dificuldade é admitida por Newton da Costa, cuja teoria da lógica paraconsistente costuma ser citada por lacanianos: "Já tentei ler seus textos e seminários, mas confesso que não consegui entendê-lo. Quem sabe ele não estivesse escrevendo para daqui a 5.000 anos, quando toda aquela terminologia se tornaria lugar-comum?".
Em 1980, poucos meses antes de morrer e já doente, Lacan dissolveu a Escola Freudiana de Paris, que ele fundara em 64 após a ruptura definitiva com a maior e mais tradicional instituição de psicanálise do mundo, a IPA (Associação Internacional de Psicanálise). Os freudianos da IPA não admitiam as suas práticas heterodoxas, especialmente a "sessão curta", que oscilava entre 5 e 15 minutos e, com isso, possibilitava que os lacanianos pudessem acolher um número bem maior de analisandos do que os divãs freudianos.
Em testamento, Lacan deixava a seu genro, Jacques-Alain Miller, a tarefa de editar a sua obra -boa parte dos seminários, que começaram a ser publicados em 1973, permanecia e permanece inédita- e dar continuidade ao movimento que ele iniciara.
Entre os muitos brasileiros que estavam na França naqueles anos, exilados ou não do regime militar, dois deles iriam fundar ali mesmo, num bistrô de Paris, o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, uma das primeiras instituições lacanianas nacionais: os psicanalistas Betty Milan e M.D. Magno (Magno Machado Dias), ambos analisandos de Lacan.
A partir daquela data, várias outras sociedades lacanianas se multiplicariam em cidades brasileiras. Porto Alegre, Salvador, Recife, Belo Horizonte, Rio e São Paulo reúnem atualmente uma enorme quantidade desses centros, sinal de que a psicanálise continua forte no Brasil, embora hoje a psiquiatria e a indústria farmacêutica, com os seus Prozacs e Zolofts, estejam ganhando terreno às práticas analíticas na maior parte do mundo.
Antes de se organizar em um campo de instituições, o pensamento de Lacan começou a circular no país entre pequenos grupos de estudos que, em fins dos anos 60, se reuniam para discutir os "Escritos" ou as cópias piratas (mimeografadas) dos seminários -à semelhança dos muitos círculos de leitura que se criaram em torno de "O Capital", de Marx. Em ambos os casos, e por diferentes meios, lutava-se contra modalidades distintas de repressão.
Em São Paulo, um dos primeiros grupos desse tipo passou a se encontrar na casa da psicanalista Regina Schnaiderman. "A gente se reunia em Higienópolis, na casa da Regina, para ler os "Escritos", o texto sobre "A Carta Roubada" etc. Marilena Chaui nos auxiliava a traduzir e a decifrar o texto. Lacan era contrário à sociedade de psicanálise filiada à IPA, cujos critérios de seleção de psicanalistas eram aberrantes e cujo autoritarismo nós assimilávamos ao do governo militar. Sem saber exatamente por quê, nós sabíamos que Lacan havia dito não à IPA, e isso foi certamente decisivo", lembra Betty Milan.
A crítica literária Leyla Perrone-Moisés, que também frequentava o grupo, o descreveu nos seguintes termos: "Éramos só mulheres ou majoritariamente mulheres. Eu já estava lendo Lacan sozinha, mas com muita dificuldade. Cada qual acrescentava seus conhecimentos específicos: as psicanalistas, como Regina e Betty, esclareciam questões de teoria; Marilena Chaui dava verdadeiras aulas sobre a presença de Hegel e de outros filósofos nos textos; eu falava das várias alusões à literatura, que na maior parte das vezes apareciam cifradas".
Enquanto prosseguiam aqueles encontros informais, um grupo de três psicanalistas fundava em São Paulo o Centro de Estudos Freudianos. "Junto com Jacques Laberge (Recife) e Durval Checchinato (Campinas), fundamos o CEF em outubro de 1975, que foi o primeiro grupo institucional lacaniano do Brasil", recorda Luiz Carlos Nogueira. "Eu já lecionava no Instituto de Psicologia da USP e, a partir de 1973, entrei em contato com Durval e com psicanalistas da EFP (Escola Freudiana de Paris); aqui no Brasil, procurei Marilena Chaui, Betty Milan e o grupo que elas haviam formado. Pouco depois, a Betty e o Magno fundaram o Colégio Freudiano. Foram essas duas instituições que começaram a difundir o pensamento de Lacan por aqui."
Novas associações começavam a se formar simultaneamente em outros locais do país. Em Salvador, hoje um importante centro de escolas lacanianas, esse processo foi reforçado pela chegada de um psicanalista argentino. "Em 1973 Emílio Rodrigué esteve em Salvador pela primeira vez. Ele estava saindo da APA, que era a sociedade argentina vinculada à Internacional, e procurava ampliar seu campo de trabalho incluindo várias técnicas terapêuticas. É curioso mencionar que, embora o grupo já tivesse alguns anos de estudo teórico de Freud e Melanie Klein, houve então uma virada para a psicanálise francesa e o pensamento de Lacan em nosso grupo", diz a psicanalista Urania Tourinho Peres, fundadora do Colégio de Psicanálise da Bahia. Segundo ela, "no início da década de 70, nossa geração encontrou um território absolutamente livre para um crescimento fora de instituições estabelecidas -ao contrário do que ocorria em São Paulo e no Rio, onde, de alguma maneira, a IPA dominou o espaço psicanalítico".

Argentinos brasileiros
Entre os psicanalistas argentinos que vieram para o Brasil entre os anos 70 e início dos 80, período que coincide com a ditadura na Argentina (1976-83), estavam Oscar Cesarotto e Susana Palácios, ambos discípulos de Oscar Masotta. "Cheguei ao Brasil em 1977 e me uni ao CEF, mas atualmente não faço parte de nenhuma organização de analistas. Vi que tudo aquilo não passava de igrejinhas", diz Cesarotto. De acordo com ele, "o fenômeno lacaniano na Argentina vem de uma forte tradição psicanalítica e também de uma grande quantidade de neuróticos no país. Os portenhos, com seu pendor intelectualizante, logo gostaram dos textos de Lacan, que eram difíceis e sofisticados. Já no Brasil o fenômeno se explicaria por outros motivos. O lacanismo seria um prosseguimento do modernismo, ligado à transição "lenta e gradual" da cultura brasileira. A divulgação de Lacan coincidiu com a luta pela abertura, com um intenso debate nas universidades, com um questionamento das instituições (sobretudo a IPA)". Também para Susana Palácios, que chegou ao Brasil em 1980 e hoje dirige a Escola da Causa Analítica, a psicanálise teria uma função política: "Aquela era uma época efervescente, fazíamos congressos, jornadas, grupos de estudo... Mas hoje estamos avançando para uma sociedade do puro individualismo, da subjetividade cada vez menos responsável. Veja o que se passa agora na Argentina, com Cavallo (ministro da Economia) reivindicando plenos poderes. Nosso discurso precisa ter impacto na coletividade". Quanto às divergências no campo lacaniano, a psicanalista considera que elas "não derivam de problemas teóricos, são questões muitas vezes privadas, que fazem mal a todos".

Do francês ao português
Na segunda metade dos anos 70 começaram a aparecer as edições brasileiras da obra de Lacan. A primeira delas foi uma antologia de dez textos dos "Escritos" (ed. Perspectiva), lançada em 1976 e traduzida por Inês Oseki-Depré. "A Inês foi aluna do Jakobson, e Jakobson disse a Lacan que ela seria uma excelente tradutora de sua obra para o português. Mas Inês se negava a fazer o trabalho, porque era linguista, e não psicanalista. Lacan adorou isso e a convidou para um jantar suntuoso. A partir daí ela aceitou traduzir apenas dez textos, que foram publicados em 1976", relata o psicanalista Antonio Quinet, que recentemente coordenou a edição integral dos "Escritos" (ed. Jorge Zahar). "Quando saiu a tradução da Inês, publiquei um artigo ponderando que havia alguns problemas no texto", lembra Leyla Perrone-Moisés. "Uma única pessoa, de um único campo do saber, encontrava necessariamente muitas dificuldades naquela tarefa. Na Alemanha, por exemplo, foi formada uma equipe de tradução para os "Escritos"." Nos anos seguintes, Betty Milan e M.D. Magno começaram a "passar" os "Seminários" para o português. "Tive a sorte", comentou Milan, "de poder apresentar a Lacan os problemas que surgiam, à medida que eu avançava. Hoje, quando considero a tradução, me digo que ela tem as qualidades e os defeitos de um trabalho pioneiro."

Expansões e cisões
A atmosfera quase idílica das primeiras escolas e instituições iria, num segundo momento, se tornar tensa e conflituosa. As sociedades que se formaram a partir de 1975, cada qual postulando uma certa leitura do "mestre", acabariam entrando em atrito e se dispersando em novas formações. Nos últimos 20 anos, o campo lacaniano no Brasil não parou de crescer. Sua história, porém, se caracterizou desde as origens por um duplo movimento: de expansão, com o aumento quantitativo de associações, e de cisão, que fez com que os grupos se isolassem ou se alinhassem a uma das grandes instituições sediadas na França, como a Associação Mundial de Psicanálise (criada em 1992 por Miller) ou o Fórum do Campo Lacaniano (uma dissidência da AMP fundada por Colette Soler em 1998). "Fui analista membro da EFP a partir de 1974-75, mas na verdade não me interesso mais por essas coisas. O lacanismo foi uma questão pela qual me apaixonei muito e hoje acho que tudo aquilo foi uma grande perda de tempo", diz Contardo Calligaris, um dos fundadores da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Calligaris é um dos poucos que associam as crises institucionais à própria teoria de Lacan. "Os atritos e divergências que surgiram não foram simples tijolos que caíram nas cabeças dos psicanalistas, eles estão ligados a problemas sérios da formação da escola lacaniana. Tudo o que aconteceu de infeliz na transmissão lacaniana, que degenerou em grandes multinacionais ou em grupelhos grotescos, tem de ser analisado como consequência da teoria da formação do analista. Acho absurdo que, no contexto brasileiro, existam associações sucursais de instituições francesas." A crítica das instituições é compartilhada por M.D. Magno: "O hoje dito campo lacaniano, infelizmente, no Brasil como no mundo, se reduziu a várias igrejas, maiores ou menores, todas mais ou menos voltadas a uma catequese tanto mais beata quanto menos presente e influente, microempresas formadas ao redor de chefetes mais ou menos alfabetizados e retardatários". Já para Jacques Laberge, que nasceu no Canadá e se tornou um dos primeiros divulgadores de Lacan no Brasil, fixando-se em Recife nos anos 60 ao integrar uma missão de jesuítas, "o deslize para a oposição igreja-seitas e uma fragmentação em grupos que não dialogavam entre si provocou uma reação saudável: a criação em Paris do "Interassociativo" e, em Buenos Aires, da "Reunião Lacano-Americana de Psicanálise'".

Psicanálise e sociedade
Ao avaliar o crescimento da psicanálise lacaniana no Brasil, Joel Birman lembra que "a entrada de Lacan no país se dá num contexto ligado a um crescimento da sociedade urbana brasileira e a uma crise nos sistemas de formação do psicanalista. As associações ligadas à IPA, com a exceção da Sociedade Psicanalítica de São Paulo, só admitiam médicos como candidatos. Uma grande massa de psicólogos, formados pelas universidades nos anos 50, 60 e 70, ficava de fora. Havia portanto uma forte demanda por parte desses psicólogos". Birman também atribui o sucesso de Lacan no Brasil à "aura de rebeldia que cercava os analistas expulsos da IPA".
A par do desgaste causado pela disputa entre as várias instituições, o estudioso da psicanálise Luiz Alfredo Garcia-Roza considera que "hoje há um certo cansaço, certo exagero, certo código de escola que é um fechamento -o que é uma pena, porque o pensamento de Lacan sempre foi aberto". "Apesar dos muitos problemas", acrescenta Garcia-Roza, "Lacan foi um dos importantes pensadores do século 20. Até a entrada dele no Brasil, Freud era pouquíssimo estudado, visto como coisa do passado. Além disso, a percurso filosófico de Lacan (por Hegel, Freud, Kant, Heidegger) chamou o psicanalista à cultura".
"É impressionante", conclui Garcia-Roza, "como ele se tornou popular. Hoje, no Brasil como na França, se fala de Lacan como se fala de Romário".


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