São Paulo, domingo, 08 de abril de 2001 |
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A fuga para o real
Para Lacan a verdade tem a estrutura de uma ficção,
em que aquilo que aparece sob forma de sonho ou devaneio é por vezes a verdade oculta, sobre cuja repressão se funda a realidade social
A resposta de Freud é enganosamente simples: a função última do sonho é permitir que o sonhador prolongue seu sono. Em geral, aplica-se essa fórmula aos sonhos que temos logo antes do despertar, quando alguma perturbação externa (ruídos) ameaça nos acordar. Numa tal situação, o sujeito rapidamente imagina, sob a forma de sonho, uma situação que incorpora o estímulo externo e assim consegue prolongar o sono por mais algum tempo; quando o sinal externo se faz forte demais, ele finalmente desperta... Mas serão as coisas tão simples assim? Em outro sonho de "A Interpretação dos Sonhos", a propósito de um despertar, um pai cansado, que passara a noite ao lado do caixão de seu filhinho, cai no sono e sonha que seu filho se aproxima envolto em chamas, dirigindo-lhe a terrível reprimenda: "Pai, não vê que estou ardendo?". Logo depois, o pai desperta e descobre que uma vela caída incendiara o sudário do filho: a fumaça que ele detectara enquanto dormia fora incorporada ao sonho de modo a prolongar seu sono. Quer dizer então que o pai despertou quando o estímulo externo (fumaça) se tornou forte demais para caber no cenário onírico? Mas não terá ocorrido o contrário? O pai constrói o sonho de modo a prolongar seu sono, isto é, de modo a evitar o despertar desagradável; mas o que ele encontra no sonho é a questão literalmente candente. O espectro sinistro de seu filho que o repreende é muito mais insuportável que a realidade externa, de modo que o pai desperta, escapa para a realidade externa. Por quê? Para continuar a sonhar, para evitar o trauma insuportável de sua própria culpa pela morte do filho. Encontro traumático De modo a captar o peso do paradoxo, comparemos esse sonho ao da injeção de Irma. Em ambos há um encontro traumático (a visão da carne rubra de Irma, a visão do filho em chamas); mas no segundo sonho o sonhador desperta nesse ponto, ao passo que no primeiro o horror é substituído pelo espetáculo vazio das desculpas profissionais. Esse paralelo nos fornece a chave para a teoria freudiana dos sonhos: o despertar no segundo sonho (o pai desperta para a realidade de modo a escapar do horror de seu sonho) tem a mesma função que a virada cômica no primeiro, isto é, nossa realidade comezinha tem precisamente a estrutura desse diálogo vazio que nos permite evitar o encontro com o verdadeiro trauma. E é claro que isso nos conduz a mais uma distinção lacaniana, desta vez entre a realidade e o real traumático. Adorno já dizia que o conhecido mote nazista "Deutschland, erwache!" ("Desperta, Alemanha!") na verdade significava o exato oposto, a saber, a promessa de que aqueles que atenderem a esse chamado poderão continuar a dormir e a sonhar (evitando assim o encontro com o real, com o antagonismo social). O trauma que encontramos no sonho é, em certo sentido, mais real que a realidade social externa. Há um poema famoso de Primo Levi que relata o curso de uma lembrança traumática da vida no campo de concentração. Na primeira estrofe, ele está no campo, dormindo, sonhando intensamente que retorna ao lar, come, conta aos parentes suas experiências, quando subitamente é despertado pelo berro cruel do guarda polonês: "Wstawac!" ("Acorde!"). Na segunda estrofe, ele está em casa, depois da guerra e da libertação, sentado à mesa, bem alimentado, contando sua história à família, quando subitamente o berro assoma-lhe à mente: "Wstawac!". O crucial aqui é, claramente, a inversão da relação entre sonho e realidade nas duas estrofes: seu conteúdo é formalmente o mesmo, a interrupção da cena agradável pela intrusão da ordem de despertar; na primeira, contudo, o sonho é cruelmente interrompido pela realidade do berro, ao passo que no segundo a realidade social agradável é interrompida pelo berro alucinado (ou melhor, imaginado). Essa inversão nos conduz ao enigma da compulsão à repetição ("Wiederholungszwang"): por que o sujeito continua a ser atormentado pelo berro obsceno e brutal, por que essa ordem insiste em se repetir? Se, na primeira ocasião, tínhamos a intrusão da realidade externa que perturba o sono, no segundo caso temos a intrusão do real traumático que perturba o funcionamento suave da realidade social. No cenário ligeiramente diverso do segundo sonho de Freud, pode-se facilmente imaginar um sobrevivente do Holocausto sonhando que seu filho morto (que ele não pudera salvar do crematório) vem assombrá-lo com a reprimenda: "Pai, não vê que estou ardendo?". Em "É Isto um Homem?", Primo Levi dá um outro final a esse sonho e se lembra de como descobriu, para seu espanto, que a maioria dos prisioneiros de Auschwitz tinha um mesmo sonho: depois de sobreviver miraculosamente ao campo, estão em casa, contando suas experiências terríveis para amigos e familiares quando subitamente notam que os ouvintes estão completamente indiferentes e entediados, conversando entre si como se o sobrevivente não estivesse ali ou simplesmente houvesse abandonando a mesa. Essa cena repetida da "história-que-ninguém-escuta" não nos conduz ao fato de que "o grande Outro não existe", que não há testemunha ideal disposta a registrar nossa experiência? Assumir a inexistência do grande Outro é, para Lacan, a fórmula última do materialismo. Em nossa cultura secular, pós-tradicional, hedonística e oficialmente atéia, na qual ninguém está pronto a confessar publicamente suas crenças, a estrutura subjacente à crença é particularmente ubíqua: todos nós acreditamos, secretamente. A posição de Lacan é clara e inequívoca: "Deus é inconsciente", ou seja, é natural que as criaturas humanas sucumbam à tentação da crença. A predominância da crença, o fato de que a necessidade de acreditar é consubstancial à subjetividade humana, é o que torna problemático o argumento padrão invocado pelos crentes de modo a desarmar seus oponentes: só quem acredita é capaz de entender o que isso significa, o que a priori desqualifica os ateus que argumentam contra a crença... Mas a premissa é falsa: o ateísmo não é o grau zero que qualquer um poderia entender, uma vez que ele significa apenas a ausência de (crença em) Deus -e talvez não haja nada mais difícil do que sustentar essa posição, do que ser um verdadeiro materialista. Na medida em que a estrutura da crença é a mesma da cisão e da rejeição fetichistas ("Sei que não há nenhum grande Outro, mas mesmo assim... acredito secretamente nele"), só o psicanalista que endossa a inexistência do grande Outro é um verdadeiro ateu. Até mesmo os stalinistas eram crentes, na medida em que sempre invocavam o Juízo Final da história, que determinaria o "sentido objetivo" de nossos atos. Até mesmo um transgressor radical como Sade não era um ateu consequente: a lógica secreta de sua transgressão é um ato de desafio a Deus, isto é, a inversão da lógica padrão da cisão fetichista: "Muito embora saiba que Deus existe, estou pronto a desafiá-lo, a violar suas proibições, a agir como se ele não existisse!". Fora da psicanálise (a freudiana, em contraste com o desvio junguiano), Heidegger foi provavelmente o único que, em "Ser e Tempo", desdobrou a noção atéia de existência humana em um horizonte finito e contingente, com a morte como possibilidade última. Em seu vigésimo seminário, Lacan propõe uma visão da economia libidinal de nossas sociedades capitalistas tardias ao falar da proliferação de sintomas, dos tiques particulares e contingentes que dão corpo ao gozo e que estão mais bem exemplificados pelos inumeráveis aparelhos com os quais a tecnologia nos bombardeia todos os dias. Na perversão generalizada do capitalismo tardio, a própria transgressão é solicitada, somos bombardeados com aparelhos e formas sociais que não apenas nos permitem viver com nossas perversões mas também conjuram diretamente novas perversões. Viés perverso Basta lembrar, no domínio estritamente sexual, os acessórios inventados para dar diversidade e excitação à nossa vida sexual, das loções afrodisíacas aos diversos trajes e instrumentos (anéis, vestidos provocativos, chicotes e correntes, vibradores e demais próteses, para não falar na pornografia e nos vários estímulos mentais diretos): eles não se contentam com incitar o desejo sexual "natural", mas antes procuram criar um suplemento, no sentido de Derrida, emprestando-lhe um viés "perverso", excessivo e extraviado. Essa proliferação de acessórios, muitas vezes tediosa e repetitiva, dá a melhor mostra do que Lacan chamava de "objets petit a". Nos Estados Unidos, um dos brinquedos de maior vendagem no verão de 2000 foi "Mary no Corredor da Morte", no qual um homem amarrado à cadeira elétrica insulta seu carrasco (o consumidor), quase pedindo para ser incinerado com choques elétricos acionados pelo botão apropriado. E o que dizer do "Jogo da Cadeira Elétrica" em vários parques de diversão, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, no qual o jogador se senta na cadeira e administra a si mesmo doses controladas de eletricidade? "Ganha" quem ficar na cadeira até que a máquina o declare morto, ao passo que os perdedores se soltam dos eletrodos antes disso. Até mesmo o ato máximo de exercício do poder estatal pode ser transformado em instrumento de prazer obsceno. Reside aí a economia libidinal do "consumo" capitalista: na produção de objetos que não se contentam com satisfazer ou consumar desejos dados, mas que criam os desejos que dizem satisfazer (ou, como diz a publicidade, "você se dará conta de desejos que nem suspeitava possuir"), levando ao extremo a velha idéia marxista de que a produção cria a necessidade de consumo dos objetos que ela produz. No jogos cibernéticos interativos que algumas pessoas jogam compulsivamente, um neurótico fragilizado pode adotar a "persona" de um machão agressivo, espancando outros homens e violentando mulheres. Seria fácil dizer que o neurótico se refugia no espaço cibernético como forma de devaneio, a fim de escapar à sua vida real, morna e impotente. Mas pode ser que esses jogos sejam mais sérios do que aparentam. E se, por meio deles, eu articular o núcleo perverso e agressivo de minha personalidade, coisa que, devido a constrições ético-sociais, não poderia fazer em meu convívio cotidiano com os outros? Nesse caso, aquilo que eu enceno em meu devaneio cibernético seria, de certa maneira, mais real que a realidade, mais próximo ao verdadeiro cerne da minha personalidade do que o papel que assumo cotidianamente com meus parceiros na vida real. É justamente porque sei que tudo no espaço cibernético é "apenas um jogo" que posso vivenciar nele tudo aquilo que não poderia admitir em meus contatos intersubjetivos "reais". Nesse sentido preciso, Lacan diria que a verdade tem a estrutura de uma ficção: o que aparece sob forma de sonho ou devaneio é por vezes a verdade oculta, sobre cuja repressão se funda a realidade social. E talvez seja essa a lição maior de Lacan: a realidade é para aqueles que não podem suportar o sonho. Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!. Tradução de Samuel Titan Jr.. Texto Anterior: Em nome do Pai Próximo Texto: + glossário de lacanês Índice |
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