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A nova querela do Holocausto
Jacques Rancière
É evidentemente sintomático que os ataques presentes contra a "indústria do Holocausto" venham de um judeu marxista americano, que se apresenta como uma espécie de último dos moicanos, alguém que permaneceu fiel à tradição progressista que foi, nos Estados Unidos, a dos imigrantes judeus
A nova querela do Holocausto
Uma atmosfera de escândalo
paira sobre as recentes obras de
Peter Novick ("The Holocaust
in American Life", O Holocausto na Vida Americana, ed. Houghton
Mifflin Co., EUA) e de Norman Finkelstein ("A Indústria do Holocausto", ed.
Record). A segunda, em particular, já desencadeou nos Estados Unidos e na Inglaterra, e depois na Alemanha e na
França, uma violenta polêmica. Eis aqui
um judeu, filho de sobreviventes de
Auschwitz, que denuncia, com a mais
extrema violência, a exploração política,
ideológica e financeira do Holocausto
pelas grandes organizações judaicas. A
essa virulência respondeu uma reação
veemente de rejeição, e o autor foi acusado de negacionismo. Acusação caluniosa, retruca ele: um negacionista é alguém
que nega a existência do Holocausto.
Ora, de sua parte, ele afirma resolutamente a existência do holocausto, com h
minúsculo, como fato histórico. Denuncia, em compensação, o Holocausto com
h maiúsculo, seja a elaboração ideológica
do Holocausto como acontecimento
único, incomparável a nenhuma outra
forma histórica de massacre ou de genocídio, especificamente ligado ao ódio ancestral dos gentios contra os judeus, seja
como justificativa de um apoio incondicional ao Estado de Israel e à sua política
-isto é, também ao Estado federal norte-americano, purificado, com esse
apoio, de toda mácula em relação a índios ou negros da América, tal como a
crianças vietnamitas queimadas com napalm ou crianças iraquianas esfaimadas.
Se essa resposta pouco satisfez aos contraditores, é porque precisamente a
questão negacionista pôs a descoberto o
que há de problemático na simples distinção entre os fatos e as interpretações
dos fatos.
Um fato histórico é constituído como
tal pela interpretação que liga de uns aos
outros uma multiplicidade de fatos materiais. Um dos pioneiros do negacionismo, o francês Paul Rassinier, ele próprio
sobrevivente do campo de Buchenwald,
fornecera, nos anos 50, a primeira demonstração disso. Ele não negava as seleções regulares nos campos nem a presença das câmaras de gás. Apenas punha
em dúvida o nexo entre esses dois fatos.
Estava mesmo disposto a aceitar a idéia
de que houve, efetivamente, mortes por
asfixia. Apenas punha em dúvida a dependência delas a uma vontade planificadora global.
Podemos dizer que os documentos
reunidos desde então fizeram jus a essas
argúcias. Mas, se o negacionismo ainda
perdura e se podemos hoje acusar de negacionismo mesmo alguém que reconhece a realidade do extermínio nazista
dos judeus da Europa, é porque o traçado da fronteira entre os "fatos" e as "interpretações" é infinitamente mais sinuoso do que parece à primeira vista.
A causa primeira
Onde situar a
fronteira que permite declarar o fato
constituído como tal, em sua auto-suficiência, e considerar todo nexo suplementar como uma interpretação extrínseca? Se a polêmica sobre a excepcionalidade do Holocausto judeu parece interminável, é porque duas exigências contraditórias se defrontam aqui. Para que o
Holocausto seja reconhecido como um
fato indiscutível, é preciso que seja isolado em sua brutalidade factual, fora de todo o debate interpretativo sobre as razões que o puseram na ordem do dia nazista. Mas, para que seja reconhecido como realidade de Holocausto antijudeu, é
preciso inversamente que a interpretação remonte a uma causa primeira, a
uma razão necessária e suficiente, que
assegure que foi de fato uma vontade original de extermínio dos judeus que foi
posta em aplicação nos campos da morte. Mas onde fixar essa causa primeira?
O delírio único de um chefe de Estado
ou de um grupo fanático não constitui
uma razão necessária. Esta é identificada
então pelos teóricos da singularidade radical do Holocausto ao velho ódio dos
gentios contra os judeus. A realidade do
Holocausto é posta assim como indissociável de uma determinada interpretação. Mas aqui retorna o argumento: por
que esse ódio antigo e universal assumiu
somente nesse país e nesse momento essa forma específica sobre a qual sabemos, aliás, que também foi aplicada a outras categorias de "degenerados": doentes mentais e ciganos?
A dialética do fato e da "intenção"
ameaça então desdobrar-se ao infinito,
pondo em xeque a intenção própria daquele que se detém em tal ou qual ponto
da cadeia de nexos. O livro de Finkelstein
denuncia assim, na tese do ódio imemorável, uma submissão dos fatos a uma interpretação interessada. Vincular o Holocausto a uma vontade exterminadora
impossível de erradicar é para ele justificar, em todos os aspectos, a política de
autoconservação do Estado israelense e a
política de apoio americano.
Mas o que ele opõe ao cenário do Holocausto que denuncia não é a simples nudez dos fatos; é um outro cenário interpretativo, o cenário clássico da suspeita,
que se indaga a razão oculta pela qual se
fala tanto de tal fato e de tal sofrimento e
que conclui invariavelmente que é para
ocultar outros fatos. O "Holocausto" vira
assim, em seu discurso, a cobertura ao
abrigo da qual Israel perpetua a espoliação dos palestinos, enquanto os EUA podem esquecer os massacres e as injustiças que marcaram sua história.
Mas a suspeita sobre a "intenção" logo
se volta contra ele: pôr em relação os
mortos do Holocausto não mais com as
causas do massacre, mas com os índios
americanos exterminados ou os vietnamitas bombardeados é submeter os fatos
a um cenário de comparação que os dissolve na longa história das atrocidades
humanas, na qual tudo se equilibra e se
equivale. E, no coração desse cenário, o
que se manifesta é a intenção de enfraquecer a posição moral de Israel diante
dos palestinos.
Tradição interpretativa
Mas tão
logo o problema é posto, tem início uma
troca de argumentos inverificáveis entre
partidários de Israel ou da Palestina. Essa
interiorização da querela do negacionismo remete a dois fenômenos intelectuais
mais profundos. Trata-se primeiro do
desdobramento de nossa idéia de realidade. A prova do real se faz duplamente:
pela inserção dos fenômenos num encadeamento de causas e efeitos e, ao contrário, pelo seu caráter bruto, sem razão.
Se essa dualidade está no coração do
conflito teórico sobre o Holocausto, é,
claro, porque o processo mesmo de extermínio e o apagar programado dos
vestígios reclamaram o longo desvio da
reconstrução argumentativa para impor
a realidade dos fatos. E é também porque
a impossibilidade de atribuir uma relação necessária e suficiente põe em questão a racionalidade dos fenômenos políticos e sociais.
É evidentemente sintomático que os
ataques presentes contra a "indústria do
Holocausto" venham de um judeu marxista norte-americano. Este se apresenta
como uma espécie de último dos moicanos, alguém que permaneceu fiel à tradição progressista que foi, nos Estados
Unidos, a dos imigrantes judeus. Mas
não é somente uma tradição política que
ele reivindica. É antes uma tradição de
interpretação: aquela que liga os fenômenos políticos e ideológicos a suas causas sociais e os fatos locais, qualquer que
seja a singularidade ou enormidade, ao
emaranhado global de causas e interesses. A querela sobre o Holocausto põe
em xeque a validade das explicações globalistas de tipo econômico-social, às
quais se vê oposto um irracional irredutível: seja aquele dos fatos brutos, seja
aquele do ódio primordial que lhe dá
causa. O que há no pano de fundo do furor de um marxista judeu norte-americano contra seus pares é essa situação
ideológica singular, na qual as novas formas radicais da dominação mundial são
acompanhadas de um interdito pronunciado sobre as formas de explicação globais que com elas se pretendem medir.
A partir disso, é possível compreender
a temporalidade singular do fato consumado, segundo a qual o fato do Holocausto se impôs como ruptura histórica.
Novick e Finkelstein lembram como o
Holocausto estava pouco presente na
consciência ocidental depois de 1945 e
atribuem à guerra árabe-israelense e à vitória israelense de 1967 a reviravolta do
espíritos. Porém foi ainda mais nos anos
90 que se impôs a visão do Holocausto
como divisor de águas da história do
mundo. Claramente essa ruptura retrospectiva marcava o luto de uma outra
ruptura da história do mundo, esta chamada revolução, e cujos últimos avatares
ruíram na queda do império soviético e
na esperança frustrada de ver nascer de
suas ruínas uma democracia regenerada.
É nesse contexto que a irredutibilidade
do Holocausto se tornou a recusa emblemática do pensamento marxista da história: da história como racionalidade
global dos fatos históricos e como temporalidade orientada por uma promessa
de emancipação. A invocação do "imemorável" ódio dos gentios contra os judeus e da impossibilidade, depois de
Auschwitz, de pensar e viver como antes,
é coisa totalmente diversa do argumento
interessado denunciado por Finkelstein.
Ela opera uma reviravolta emblemática
da direção do tempo, opondo às promessas do futuro que guiava os pensamentos da emancipação a hipótese de
um passado imemorial, que não acaba
de passar.
Se a explicação entre os partidários da
excepcionalidade do Holocausto judeu e
aqueles que querem integrá-lo no grande
entrelaçamento histórico e mundial de
causas é tão violenta, é porque ela põe
frente a frente dois avatares de certezas
militantes e da expectativa histórica de
ontem. Ela opõe aqueles que devolveram
a grande promessa na forma de um passado imemorial e aqueles que querem
mantê-la em vigor mesmo que ela seja de
simples furor argumentativo. A querela
sobre o Holocausto é também um luto
do pensamento revolucionário. Eis por
que o simples conhecimento dos fatos
sem dúvida está longe de liquidar a querela das intenções.
Jacques Rancière é professor da Universidade de
Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.
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