São Paulo, domingo, 08 de abril de 2001

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A nova querela do Holocausto

Jacques Rancière

É evidentemente sintomático que os ataques presentes contra a "indústria do Holocausto" venham de um judeu marxista americano, que se apresenta como uma espécie de último dos moicanos, alguém que permaneceu fiel à tradição progressista que foi, nos Estados Unidos, a dos imigrantes judeus

A nova querela do Holocausto

Uma atmosfera de escândalo paira sobre as recentes obras de Peter Novick ("The Holocaust in American Life", O Holocausto na Vida Americana, ed. Houghton Mifflin Co., EUA) e de Norman Finkelstein ("A Indústria do Holocausto", ed. Record). A segunda, em particular, já desencadeou nos Estados Unidos e na Inglaterra, e depois na Alemanha e na França, uma violenta polêmica. Eis aqui um judeu, filho de sobreviventes de Auschwitz, que denuncia, com a mais extrema violência, a exploração política, ideológica e financeira do Holocausto pelas grandes organizações judaicas. A essa virulência respondeu uma reação veemente de rejeição, e o autor foi acusado de negacionismo. Acusação caluniosa, retruca ele: um negacionista é alguém que nega a existência do Holocausto. Ora, de sua parte, ele afirma resolutamente a existência do holocausto, com h minúsculo, como fato histórico. Denuncia, em compensação, o Holocausto com h maiúsculo, seja a elaboração ideológica do Holocausto como acontecimento único, incomparável a nenhuma outra forma histórica de massacre ou de genocídio, especificamente ligado ao ódio ancestral dos gentios contra os judeus, seja como justificativa de um apoio incondicional ao Estado de Israel e à sua política -isto é, também ao Estado federal norte-americano, purificado, com esse apoio, de toda mácula em relação a índios ou negros da América, tal como a crianças vietnamitas queimadas com napalm ou crianças iraquianas esfaimadas. Se essa resposta pouco satisfez aos contraditores, é porque precisamente a questão negacionista pôs a descoberto o que há de problemático na simples distinção entre os fatos e as interpretações dos fatos. Um fato histórico é constituído como tal pela interpretação que liga de uns aos outros uma multiplicidade de fatos materiais. Um dos pioneiros do negacionismo, o francês Paul Rassinier, ele próprio sobrevivente do campo de Buchenwald, fornecera, nos anos 50, a primeira demonstração disso. Ele não negava as seleções regulares nos campos nem a presença das câmaras de gás. Apenas punha em dúvida o nexo entre esses dois fatos. Estava mesmo disposto a aceitar a idéia de que houve, efetivamente, mortes por asfixia. Apenas punha em dúvida a dependência delas a uma vontade planificadora global. Podemos dizer que os documentos reunidos desde então fizeram jus a essas argúcias. Mas, se o negacionismo ainda perdura e se podemos hoje acusar de negacionismo mesmo alguém que reconhece a realidade do extermínio nazista dos judeus da Europa, é porque o traçado da fronteira entre os "fatos" e as "interpretações" é infinitamente mais sinuoso do que parece à primeira vista.

A causa primeira
Onde situar a fronteira que permite declarar o fato constituído como tal, em sua auto-suficiência, e considerar todo nexo suplementar como uma interpretação extrínseca? Se a polêmica sobre a excepcionalidade do Holocausto judeu parece interminável, é porque duas exigências contraditórias se defrontam aqui. Para que o Holocausto seja reconhecido como um fato indiscutível, é preciso que seja isolado em sua brutalidade factual, fora de todo o debate interpretativo sobre as razões que o puseram na ordem do dia nazista. Mas, para que seja reconhecido como realidade de Holocausto antijudeu, é preciso inversamente que a interpretação remonte a uma causa primeira, a uma razão necessária e suficiente, que assegure que foi de fato uma vontade original de extermínio dos judeus que foi posta em aplicação nos campos da morte. Mas onde fixar essa causa primeira? O delírio único de um chefe de Estado ou de um grupo fanático não constitui uma razão necessária. Esta é identificada então pelos teóricos da singularidade radical do Holocausto ao velho ódio dos gentios contra os judeus. A realidade do Holocausto é posta assim como indissociável de uma determinada interpretação. Mas aqui retorna o argumento: por que esse ódio antigo e universal assumiu somente nesse país e nesse momento essa forma específica sobre a qual sabemos, aliás, que também foi aplicada a outras categorias de "degenerados": doentes mentais e ciganos? A dialética do fato e da "intenção" ameaça então desdobrar-se ao infinito, pondo em xeque a intenção própria daquele que se detém em tal ou qual ponto da cadeia de nexos. O livro de Finkelstein denuncia assim, na tese do ódio imemorável, uma submissão dos fatos a uma interpretação interessada. Vincular o Holocausto a uma vontade exterminadora impossível de erradicar é para ele justificar, em todos os aspectos, a política de autoconservação do Estado israelense e a política de apoio americano. Mas o que ele opõe ao cenário do Holocausto que denuncia não é a simples nudez dos fatos; é um outro cenário interpretativo, o cenário clássico da suspeita, que se indaga a razão oculta pela qual se fala tanto de tal fato e de tal sofrimento e que conclui invariavelmente que é para ocultar outros fatos. O "Holocausto" vira assim, em seu discurso, a cobertura ao abrigo da qual Israel perpetua a espoliação dos palestinos, enquanto os EUA podem esquecer os massacres e as injustiças que marcaram sua história. Mas a suspeita sobre a "intenção" logo se volta contra ele: pôr em relação os mortos do Holocausto não mais com as causas do massacre, mas com os índios americanos exterminados ou os vietnamitas bombardeados é submeter os fatos a um cenário de comparação que os dissolve na longa história das atrocidades humanas, na qual tudo se equilibra e se equivale. E, no coração desse cenário, o que se manifesta é a intenção de enfraquecer a posição moral de Israel diante dos palestinos.

Tradição interpretativa
Mas tão logo o problema é posto, tem início uma troca de argumentos inverificáveis entre partidários de Israel ou da Palestina. Essa interiorização da querela do negacionismo remete a dois fenômenos intelectuais mais profundos. Trata-se primeiro do desdobramento de nossa idéia de realidade. A prova do real se faz duplamente: pela inserção dos fenômenos num encadeamento de causas e efeitos e, ao contrário, pelo seu caráter bruto, sem razão.
Se essa dualidade está no coração do conflito teórico sobre o Holocausto, é, claro, porque o processo mesmo de extermínio e o apagar programado dos vestígios reclamaram o longo desvio da reconstrução argumentativa para impor a realidade dos fatos. E é também porque a impossibilidade de atribuir uma relação necessária e suficiente põe em questão a racionalidade dos fenômenos políticos e sociais.
É evidentemente sintomático que os ataques presentes contra a "indústria do Holocausto" venham de um judeu marxista norte-americano. Este se apresenta como uma espécie de último dos moicanos, alguém que permaneceu fiel à tradição progressista que foi, nos Estados Unidos, a dos imigrantes judeus. Mas não é somente uma tradição política que ele reivindica. É antes uma tradição de interpretação: aquela que liga os fenômenos políticos e ideológicos a suas causas sociais e os fatos locais, qualquer que seja a singularidade ou enormidade, ao emaranhado global de causas e interesses. A querela sobre o Holocausto põe em xeque a validade das explicações globalistas de tipo econômico-social, às quais se vê oposto um irracional irredutível: seja aquele dos fatos brutos, seja aquele do ódio primordial que lhe dá causa. O que há no pano de fundo do furor de um marxista judeu norte-americano contra seus pares é essa situação ideológica singular, na qual as novas formas radicais da dominação mundial são acompanhadas de um interdito pronunciado sobre as formas de explicação globais que com elas se pretendem medir.
A partir disso, é possível compreender a temporalidade singular do fato consumado, segundo a qual o fato do Holocausto se impôs como ruptura histórica. Novick e Finkelstein lembram como o Holocausto estava pouco presente na consciência ocidental depois de 1945 e atribuem à guerra árabe-israelense e à vitória israelense de 1967 a reviravolta do espíritos. Porém foi ainda mais nos anos 90 que se impôs a visão do Holocausto como divisor de águas da história do mundo. Claramente essa ruptura retrospectiva marcava o luto de uma outra ruptura da história do mundo, esta chamada revolução, e cujos últimos avatares ruíram na queda do império soviético e na esperança frustrada de ver nascer de suas ruínas uma democracia regenerada.
É nesse contexto que a irredutibilidade do Holocausto se tornou a recusa emblemática do pensamento marxista da história: da história como racionalidade global dos fatos históricos e como temporalidade orientada por uma promessa de emancipação. A invocação do "imemorável" ódio dos gentios contra os judeus e da impossibilidade, depois de Auschwitz, de pensar e viver como antes, é coisa totalmente diversa do argumento interessado denunciado por Finkelstein. Ela opera uma reviravolta emblemática da direção do tempo, opondo às promessas do futuro que guiava os pensamentos da emancipação a hipótese de um passado imemorial, que não acaba de passar.
Se a explicação entre os partidários da excepcionalidade do Holocausto judeu e aqueles que querem integrá-lo no grande entrelaçamento histórico e mundial de causas é tão violenta, é porque ela põe frente a frente dois avatares de certezas militantes e da expectativa histórica de ontem. Ela opõe aqueles que devolveram a grande promessa na forma de um passado imemorial e aqueles que querem mantê-la em vigor mesmo que ela seja de simples furor argumentativo. A querela sobre o Holocausto é também um luto do pensamento revolucionário. Eis por que o simples conhecimento dos fatos sem dúvida está longe de liquidar a querela das intenções.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.

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