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Pelas vielas de Havana
"Antes do Anoitecer", de Julian Schnabel, retrata a vida de opressões do escritor cubano Reinaldo Arenas, homossexual assumido e ativista político perseguido pelo regime de Fidel Castro
por Guillermo Cabrera Infante
Dizer que Reinaldo Arenas atravessou como um cometa a literatura cubana e não dizer que
foi um bólido saído do inferno é
contar só metade da missa. Reinaldo (como gostava que escrevessem seu nome e,
ao abreviá-lo, a amizade o convertia em
rei) começou como um revolucionário e
terminou como o que sempre foi, um rebelde com várias causas.
"Antes do Anoitecer": "Três paixões
regeram a vida e a morte de Reinaldo
Arenas -a literatura não como jogo,
mas como fogo que consome, o sexo
passivo e a política ativa".
Mas não era suficiente. Prossegui: "Das
três, a paixão dominante era, é evidente,
o sexo. Não somente na sua vida, mas em
sua obra". Sua vida sexual começou comendo terra, que Freud já assinalava como uma atividade substitutiva do sexo
pela coprofagia. Claro que Freud não podia saber que a pobreza, além do sexo,
condenava o menino-rei a comer terra.
Mas o adolescente subia às vezes do chão
de terra vermelha às verdes árvores, onde era um rei aéreo por umas horas em
seu trono vegetal.
Reinaldo Arenas (1943-1990) nascera
em Aguas Claras, não distante de Gibara,
onde eu nasci. Aguas Claras fora uma última estação do trem Gibara-Holguín
nos anos 30. Mas, quando nasceu Arenas, que pelo sobrenome podia ter comido areia, nas praias de Gibara, a parada
do trem que vinha da costa desaparecera, não levada pelo vento da pobreza,
mas pelo furacão da miséria. Suas futuras biografias logo disseram que nascera
em Holguín. Aguas Claras era uma aldeia graciosa que passava ligeiro pelas janelas do trem, mas Holguín era um povoado sem graça que queria ser uma cidade esplêndida. Porém mais esplêndido foi Reinaldo por um tempo.
Baixando das árvores, apenas aprendeu a escrever, tatuava poemas com uma
faca no tronco de cada árvore. Um bolero precoce parece descrever essa ação:
"No tronco de uma árvore a menina/
gravou seu nome cheia de prazer./ A árvore/ comovida lá em seu seio/ à menina
uma flor fez descer". Reinaldo já era visto
pelo seu avô como uma criança estranha,
que gravava no tronco das árvores seu
nome pela metade. O avô, possuído de
estranho furor, cortava os troncos com
um machado. Mas Reinaldo prosseguia
(perseguia a poesia dos nomes) sua tarefa de talhar "rei" nas árvores.
Tudo isso conta Arenas em seu primeiro livro, seu primeiro romance, "Celestino Antes da Aurora", que lhe valeu bem
cedo um segundo prêmio literário quando já era evidente que devia ser o primeiro da casta dos escritores Castrados. Arenas encontrou outras árvores, outros livros para esconder seus poemas em prosa e escreveu outro romance, "O Mundo
Alucinante" (publicado no Brasil pela ed.
Record). Se em "Celestino" o relato era
povoado de machados, em "O Mundo
Alucinante" proliferavam, alucinantes
ou não, as cadeias. Com esse segundo romance ganhou um primeiro prêmio no
estrangeiro, e num estrangeiro em sua
terra converteu-se seu autor.
Avô tirânico
Por haver enviado um
manuscrito ao exterior sem permissão
de seu tirânico avô, que trocara os machados por olhos ubíquos, foi condenado a padecer em sua terra -que já não
era a de Aguas Claras da qual comera, senão a de Havana- pena capital, em que
se distinguiu por duras condições humanas que o regime, dono das árvores e das
cadeias, escrevia a golpes de machado.
Mas Reinaldo se fez claro no escuro entre
os contos das vielas havanesas: foi um
homossexual evidente e um escritor vidente ali onde o autor via escuro por espelho claro. E Reinaldo se converteu na
louca epônima, como duas gerações antes fora Virgilio Piñera, mestre e mentor.
Mas, se Virgilio era contido e sóbrio (exceto quando fumava seu cigarro perene:
então Marlene Dietrich se apoderava de
seus gestos, de seu humor e de seu fumo), Reinaldo era expansivo e barroco
de maneiras, enquanto Virgilio nunca
padeceu do barroquismo lírico com que
Góngora contagiava Lezama.
Virgilio era a facilidade, enquanto Lezama opinava com Mallarmé que "só o
difícil valia a pena". A dificuldade de viver sob um regime totalitário valeu a Reinaldo uma pena de prisão: a Virgilio só
valeu a prisão por um dia e o desprezo
oficial pelo resto da vida.
Mas Virgilio nunca teve a franqueza
oral (em todos os sentidos) de seu discípulo indócil. As memórias de Arenas,
agora filmadas por Julian Schnabel
-pintor que se converteu em diretor de
cinema importante com seu "Basquiat",
biografia última/íntima do pintor haitiano de Nova York, artista do grafite
("graffito", em italiano, quer dizer rascunho) que abriu uma grande ferida nas
paredes e em sua vida- são de uma escritura lacerante na carne crua entre indecente/inocente. Tal como sua vida.
"Basquiat" (1996), por ser a vida de um
artista visual, encobre não a obscenidade
marcada nas paredes, mas sim a biografia quase divina de um artista adolescente que padece tão-só de uma vida mais
descrita que escrita: exatamente a vida de
Arenas. No livro de Arenas, não apenas o
relato é obsceno, mas a própria vida que
a obscenidade o obrigou a assumir: uma
velha sociedade apresentada como o
único futuro possível o condenava a ser
um homem novo. Não ao estilo de "muy
macho" que preconizava seu autor, o súcubo sinistro do totalitarismo, mas de
uma existência que só pode ser descrita
como uma prestidigitação, uma prestidigitação entre homens que se identificam
com as mulheres e outros homens que
consideram mais machos: tal como o pederasta ativo que possui o pederasta
passivo é um supermacho porque, raciocina, copula com outro homem.
Não creio que essa dualidade seja agora
duvidosa porque Arenas não era Virgilio
Piñera como tampouco foi Lezama. A
categoria aqui, para futuro horror de
Guevara (o outro Guevara, o heterossexual), era em verdade não um homem
novo, mas um maricas novo. Isso lhe
permitiu escapar de todas as ciladas, sobreviver na miséria e sair da prisão castrista, onde a pederastia era repulsiva,
sem haver tido um único percalço homossexual. Embora sua vida na prisão
fosse repleta de lances homossexuais,
Reinaldo paradoxalmente se casou, enquanto seu mentor Virgilio, tal como o
outro Virgílio, nunca teve mulher.
Mas as núpcias de Arenas foram um
ato de bondade, quase de caridade, feito
a uma mulher com problemas. Outro
paradoxo: o romance que é o único antecessor de "Antes do Anoitecer" (lançado
no Brasil pela ed. Record com o título
"Antes Que Anoiteça"), "Homens sem
Mulher", de Carlos Montenegro, só se
preocupa com a vida sexual na prisão,
quase como Jean Genet (1911-1986).
Mas Reinaldo vai além de Montenegro
porque fala do sexo na prisão (não precisamente o seu), em liberdade, na cidade,
no campo, em sua infância, em sua vida
adulta, e seu sexo se manifesta entre meninos, com rapazes, adolescentes, com
bestas de curral e de carga, com árvores,
com seus troncos e seus frutos, comestíveis ou não, com a água, com a chuva,
com os rios e com o próprio mar. Seu
pansexualismo é sempre homossexual e
ubíquo, mas, ao contrário de Genet,
transcende-o uma poesia verdadeira que
o torna uma versão cubana e camponesa
de um Walt Whitman da prosa.
Mudança de identidade
Essa
pansexualidade permeia suas memórias
e o filme de suas memórias, mas Schnabel não está interessado unicamente na
sexualidade de Arenas, por vezes lastimosa, mas também na sua vida de cão
perseguido, espancado e enjaulado e de
novo obrigado a viver na fuga que não
cessa. Nem sequer mingua esta quando
logra escapar de Cuba mediante um subterfúgio que seria incrível (converter seu
sobrenome em Arina em sua carteira de
identidade) não fosse verdade.
E assim também todo o filme, que é
uma visualização do romance da vida de
um miserável, como um obscuro Papillon (que quer dizer borboleta em francês) em "Papillon", porque Reinaldo foi
uma borboleta noturna, embora também tenha escapado de uma versão da
Ilha do Diabo.
Schnabel usa toda a literatura do livro
em diversos "tableaux vivants" (sem, é
claro, as conotações sexuais) e por vezes
utiliza outras fontes não-literárias (como
a entrevista que Jana Boková concedeu a
Arenas para a BBC de Londres) para filmá-las de novo. Essa entrevista é um dos
momentos emocionantes do filme; graças ao enquadramento e à fotografia
-no que é quase uma cópia não da vida
real, mas da versão de Boková e, sobretudo, do contexto que é o texto da vida de
Arenas. Sente-se por fim uma pena que
não vem de Arenas, que nunca teve pena,
senão do espectador de uma vida irreal.
O conteúdo de todo o filme é Havana
(e umas poucas sequências nova-iorquinas), uma Havana não reconstruída,
mas construída com os elementos díspares que conformam as diversas locações
mexicanas, que formam a vida de Reinaldo numa prisão dentro da prisão.
Oferece-a, paradoxalmente, a cidade que
foi um domínio encantado, cantado antes por seus dois mentores, essa dupla
duvidosa, Lezama e Virgilio.
Para eles, por eles, essa versão é uma
espécie de reivindicação de Arenas: ele é
o personagem central e o protagonista
com um único, formidável antagonista:
o Estado totalitário que lhe conduziu a
vida por um labirinto existencial.
Para lográ-lo, Schnabel escolheu um
ator espanhol, Javier Bardem. Um erro?
Pelo contrário: Bardem é o esteio de todo
o filme, desde que o personagem embarca numa absurda aventura guerrilheira
na qual Reinaldo, como uma prefiguração, foge de casa, de sua mãe e do homem para encontrar-se pela primeira
vez com seu destino. No qual haverá
mais fugas, mais realizações de projetos
absurdos e mais fome e, o que é mais decisivo, assim tem início a perseguição de
Arenas por toda a geografia cubana e pelo mapa geral de Havana.
Inverno e inferno
Cabe abrir um
parágrafo à parte para a atuação de Bardem, que é um prodígio tanto de mimetismo quanto de criação. Bardem, um
evidente heterossexual na vida, recria
Reinaldo com todos os maneirismos de
Arenas e tudo faz ver com seu olhar lânguido e desmaiado e seus gestos que evocam um Piñera mais jovem, mais aventureiro e finalmente mais valente e definem a passividade do personagem ao
mesmo tempo em que, com seus braços,
cinge o limite de seu heroísmo ao cair
("facilis decensus Averni") e ao recobrar-se desse averno, para reviver no inverno de Nova York com a alegria de
quem vê cair a neve pela primeira vez, até
que se afunde no inferno da Aids.
Há outros momentos de atuação que
são a revelação de um ator desconhecido
ou somente conhecido até agora não como ator. Refiro-me a Manuel González,
que faz uma criação a uma vez cômica e
altruísta de Lezama Lima, aqui com todos os seus charutos e trejeitos.
É pena que Hector Babenco tente ser
um Piñera que nunca é Virgilio. Mas
com Bardem nos basta.
Guillermo Cabrera Infante é escritor cubano e
vive em Londres. É autor de "Havana para um Infante Defunto" e "Mea Cuba" (Companhia das Letras). Este texto foi publicado originalmente no
jornal "El País".
Tradução de José Marcos Macedo.
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