São Paulo, domingo, 08 de abril de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cinema

Pelas vielas de Havana

"Antes do Anoitecer", de Julian Schnabel, retrata a vida de opressões do escritor cubano Reinaldo Arenas, homossexual assumido e ativista político perseguido pelo regime de Fidel Castro

por Guillermo Cabrera Infante

Dizer que Reinaldo Arenas atravessou como um cometa a literatura cubana e não dizer que foi um bólido saído do inferno é contar só metade da missa. Reinaldo (como gostava que escrevessem seu nome e, ao abreviá-lo, a amizade o convertia em rei) começou como um revolucionário e terminou como o que sempre foi, um rebelde com várias causas. "Antes do Anoitecer": "Três paixões regeram a vida e a morte de Reinaldo Arenas -a literatura não como jogo, mas como fogo que consome, o sexo passivo e a política ativa". Mas não era suficiente. Prossegui: "Das três, a paixão dominante era, é evidente, o sexo. Não somente na sua vida, mas em sua obra". Sua vida sexual começou comendo terra, que Freud já assinalava como uma atividade substitutiva do sexo pela coprofagia. Claro que Freud não podia saber que a pobreza, além do sexo, condenava o menino-rei a comer terra. Mas o adolescente subia às vezes do chão de terra vermelha às verdes árvores, onde era um rei aéreo por umas horas em seu trono vegetal. Reinaldo Arenas (1943-1990) nascera em Aguas Claras, não distante de Gibara, onde eu nasci. Aguas Claras fora uma última estação do trem Gibara-Holguín nos anos 30. Mas, quando nasceu Arenas, que pelo sobrenome podia ter comido areia, nas praias de Gibara, a parada do trem que vinha da costa desaparecera, não levada pelo vento da pobreza, mas pelo furacão da miséria. Suas futuras biografias logo disseram que nascera em Holguín. Aguas Claras era uma aldeia graciosa que passava ligeiro pelas janelas do trem, mas Holguín era um povoado sem graça que queria ser uma cidade esplêndida. Porém mais esplêndido foi Reinaldo por um tempo. Baixando das árvores, apenas aprendeu a escrever, tatuava poemas com uma faca no tronco de cada árvore. Um bolero precoce parece descrever essa ação: "No tronco de uma árvore a menina/ gravou seu nome cheia de prazer./ A árvore/ comovida lá em seu seio/ à menina uma flor fez descer". Reinaldo já era visto pelo seu avô como uma criança estranha, que gravava no tronco das árvores seu nome pela metade. O avô, possuído de estranho furor, cortava os troncos com um machado. Mas Reinaldo prosseguia (perseguia a poesia dos nomes) sua tarefa de talhar "rei" nas árvores. Tudo isso conta Arenas em seu primeiro livro, seu primeiro romance, "Celestino Antes da Aurora", que lhe valeu bem cedo um segundo prêmio literário quando já era evidente que devia ser o primeiro da casta dos escritores Castrados. Arenas encontrou outras árvores, outros livros para esconder seus poemas em prosa e escreveu outro romance, "O Mundo Alucinante" (publicado no Brasil pela ed. Record). Se em "Celestino" o relato era povoado de machados, em "O Mundo Alucinante" proliferavam, alucinantes ou não, as cadeias. Com esse segundo romance ganhou um primeiro prêmio no estrangeiro, e num estrangeiro em sua terra converteu-se seu autor.

Avô tirânico
Por haver enviado um manuscrito ao exterior sem permissão de seu tirânico avô, que trocara os machados por olhos ubíquos, foi condenado a padecer em sua terra -que já não era a de Aguas Claras da qual comera, senão a de Havana- pena capital, em que se distinguiu por duras condições humanas que o regime, dono das árvores e das cadeias, escrevia a golpes de machado. Mas Reinaldo se fez claro no escuro entre os contos das vielas havanesas: foi um homossexual evidente e um escritor vidente ali onde o autor via escuro por espelho claro. E Reinaldo se converteu na louca epônima, como duas gerações antes fora Virgilio Piñera, mestre e mentor. Mas, se Virgilio era contido e sóbrio (exceto quando fumava seu cigarro perene: então Marlene Dietrich se apoderava de seus gestos, de seu humor e de seu fumo), Reinaldo era expansivo e barroco de maneiras, enquanto Virgilio nunca padeceu do barroquismo lírico com que Góngora contagiava Lezama.
Virgilio era a facilidade, enquanto Lezama opinava com Mallarmé que "só o difícil valia a pena". A dificuldade de viver sob um regime totalitário valeu a Reinaldo uma pena de prisão: a Virgilio só valeu a prisão por um dia e o desprezo oficial pelo resto da vida.
Mas Virgilio nunca teve a franqueza oral (em todos os sentidos) de seu discípulo indócil. As memórias de Arenas, agora filmadas por Julian Schnabel -pintor que se converteu em diretor de cinema importante com seu "Basquiat", biografia última/íntima do pintor haitiano de Nova York, artista do grafite ("graffito", em italiano, quer dizer rascunho) que abriu uma grande ferida nas paredes e em sua vida- são de uma escritura lacerante na carne crua entre indecente/inocente. Tal como sua vida.
"Basquiat" (1996), por ser a vida de um artista visual, encobre não a obscenidade marcada nas paredes, mas sim a biografia quase divina de um artista adolescente que padece tão-só de uma vida mais descrita que escrita: exatamente a vida de Arenas. No livro de Arenas, não apenas o relato é obsceno, mas a própria vida que a obscenidade o obrigou a assumir: uma velha sociedade apresentada como o único futuro possível o condenava a ser um homem novo. Não ao estilo de "muy macho" que preconizava seu autor, o súcubo sinistro do totalitarismo, mas de uma existência que só pode ser descrita como uma prestidigitação, uma prestidigitação entre homens que se identificam com as mulheres e outros homens que consideram mais machos: tal como o pederasta ativo que possui o pederasta passivo é um supermacho porque, raciocina, copula com outro homem. Não creio que essa dualidade seja agora duvidosa porque Arenas não era Virgilio Piñera como tampouco foi Lezama. A categoria aqui, para futuro horror de Guevara (o outro Guevara, o heterossexual), era em verdade não um homem novo, mas um maricas novo. Isso lhe permitiu escapar de todas as ciladas, sobreviver na miséria e sair da prisão castrista, onde a pederastia era repulsiva, sem haver tido um único percalço homossexual. Embora sua vida na prisão fosse repleta de lances homossexuais, Reinaldo paradoxalmente se casou, enquanto seu mentor Virgilio, tal como o outro Virgílio, nunca teve mulher. Mas as núpcias de Arenas foram um ato de bondade, quase de caridade, feito a uma mulher com problemas. Outro paradoxo: o romance que é o único antecessor de "Antes do Anoitecer" (lançado no Brasil pela ed. Record com o título "Antes Que Anoiteça"), "Homens sem Mulher", de Carlos Montenegro, só se preocupa com a vida sexual na prisão, quase como Jean Genet (1911-1986). Mas Reinaldo vai além de Montenegro porque fala do sexo na prisão (não precisamente o seu), em liberdade, na cidade, no campo, em sua infância, em sua vida adulta, e seu sexo se manifesta entre meninos, com rapazes, adolescentes, com bestas de curral e de carga, com árvores, com seus troncos e seus frutos, comestíveis ou não, com a água, com a chuva, com os rios e com o próprio mar. Seu pansexualismo é sempre homossexual e ubíquo, mas, ao contrário de Genet, transcende-o uma poesia verdadeira que o torna uma versão cubana e camponesa de um Walt Whitman da prosa.

Mudança de identidade
Essa pansexualidade permeia suas memórias e o filme de suas memórias, mas Schnabel não está interessado unicamente na sexualidade de Arenas, por vezes lastimosa, mas também na sua vida de cão perseguido, espancado e enjaulado e de novo obrigado a viver na fuga que não cessa. Nem sequer mingua esta quando logra escapar de Cuba mediante um subterfúgio que seria incrível (converter seu sobrenome em Arina em sua carteira de identidade) não fosse verdade. E assim também todo o filme, que é uma visualização do romance da vida de um miserável, como um obscuro Papillon (que quer dizer borboleta em francês) em "Papillon", porque Reinaldo foi uma borboleta noturna, embora também tenha escapado de uma versão da Ilha do Diabo. Schnabel usa toda a literatura do livro em diversos "tableaux vivants" (sem, é claro, as conotações sexuais) e por vezes utiliza outras fontes não-literárias (como a entrevista que Jana Boková concedeu a Arenas para a BBC de Londres) para filmá-las de novo. Essa entrevista é um dos momentos emocionantes do filme; graças ao enquadramento e à fotografia -no que é quase uma cópia não da vida real, mas da versão de Boková e, sobretudo, do contexto que é o texto da vida de Arenas. Sente-se por fim uma pena que não vem de Arenas, que nunca teve pena, senão do espectador de uma vida irreal. O conteúdo de todo o filme é Havana (e umas poucas sequências nova-iorquinas), uma Havana não reconstruída, mas construída com os elementos díspares que conformam as diversas locações mexicanas, que formam a vida de Reinaldo numa prisão dentro da prisão. Oferece-a, paradoxalmente, a cidade que foi um domínio encantado, cantado antes por seus dois mentores, essa dupla duvidosa, Lezama e Virgilio. Para eles, por eles, essa versão é uma espécie de reivindicação de Arenas: ele é o personagem central e o protagonista com um único, formidável antagonista: o Estado totalitário que lhe conduziu a vida por um labirinto existencial. Para lográ-lo, Schnabel escolheu um ator espanhol, Javier Bardem. Um erro? Pelo contrário: Bardem é o esteio de todo o filme, desde que o personagem embarca numa absurda aventura guerrilheira na qual Reinaldo, como uma prefiguração, foge de casa, de sua mãe e do homem para encontrar-se pela primeira vez com seu destino. No qual haverá mais fugas, mais realizações de projetos absurdos e mais fome e, o que é mais decisivo, assim tem início a perseguição de Arenas por toda a geografia cubana e pelo mapa geral de Havana.

Inverno e inferno
Cabe abrir um parágrafo à parte para a atuação de Bardem, que é um prodígio tanto de mimetismo quanto de criação. Bardem, um evidente heterossexual na vida, recria Reinaldo com todos os maneirismos de Arenas e tudo faz ver com seu olhar lânguido e desmaiado e seus gestos que evocam um Piñera mais jovem, mais aventureiro e finalmente mais valente e definem a passividade do personagem ao mesmo tempo em que, com seus braços, cinge o limite de seu heroísmo ao cair ("facilis decensus Averni") e ao recobrar-se desse averno, para reviver no inverno de Nova York com a alegria de quem vê cair a neve pela primeira vez, até que se afunde no inferno da Aids.
Há outros momentos de atuação que são a revelação de um ator desconhecido ou somente conhecido até agora não como ator. Refiro-me a Manuel González, que faz uma criação a uma vez cômica e altruísta de Lezama Lima, aqui com todos os seus charutos e trejeitos.
É pena que Hector Babenco tente ser um Piñera que nunca é Virgilio. Mas com Bardem nos basta.


Guillermo Cabrera Infante é escritor cubano e vive em Londres. É autor de "Havana para um Infante Defunto" e "Mea Cuba" (Companhia das Letras). Este texto foi publicado originalmente no jornal "El País".
Tradução de José Marcos Macedo.


Texto Anterior: + literatura: O caso do cavaleiro romancista
Próximo Texto: + autores: A nova querela do Holocausto
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.