São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997.



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A idéia de plano de imanência

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Comecemos por um texto crucial onde podemos ler: "O plano de imanência é como um corte no caos e age como um crivo. O que caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e se apagam: não é o movimento de uma a outra, mas, ao contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas determinações, já que uma não aparece sem que a outra tenha já desaparecido, e que uma aparece como evanescente quando a outra desaparece como esboço. O caos não é um estado inerte ou estacionário, não é uma mistura ao acaso. O caos caotiza e desfaz no infinito toda consistência. O problema da filosofia é de adquirir uma consistência, sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha" ("O Que É a Filosofia?", pág. 59).
Em nosso exame anterior da idéia de plano de imanência, visado na sua correlação com a idéia de conceito, já havíamos esbarrado na idéia de caos. Vimos como conceito e plano são, por assim dizer, "contemporâneos", já que um não pode instaurar-se sem o outro. Enfim, que a definição do plano como reservatório ou continente não deve levar-nos a representá-lo como "anterior" aos conceitos que o percorrem ou como uma panela onde não se derramou ainda a sopa ou, ainda, como o espaço lógico do "Tractatus", que pode ser pensado sem os estados-de-coisa que o preenchem (ver a proposição 2.013: "Cada coisa está, por assim dizer, num espaço de estados-de-coisa possíveis. Posso pensar esse espaço como vazio, mas não posso pensar a coisa sem o espaço"; é, aliás, aqui que se situa o ponto de oposição entre a idéia deleuziana de "virtual" e a idéia clássica de "possível" tão bem descrita pela metáfora bergsoniana como aquele "canevas du rien" prévio sobre o qual viria a ser bordado posteriormente o próprio Ser). Sem os conceitos que nele inscrevem ossatura e coluna vertebral, ele se dissolveria em puro fluxo sem consistência -no limite, se dissolveria em puro caos.
O que cabe fazer, agora, é situar a conexão entre o plano de imanência e o caos. Sabemos que há vários planos de imanência, que eles se superpõem estratigraficamente e, eventualmente, podem cruzar-se e comunicar-se parcialmente. Em todo caso, fala-se no plural -embora Deleuze fale também, e, então, em maiúsculas, de uma espécie de plano último ("LE plan"), de que os demais seriam apenas variações ou especificações e, até mesmo, de um "melhor" plano de imanência (o mais livre de toda e qualquer remissão à transcendência), encarnado na história pela filosofia de Bento Espinosa, o príncipe ou o Cristo dos filósofos.
De qualquer maneira, reportado ao caos, o plano de imanência é sempre dito no plural. Pouco importa, por enquanto, o que entendemos por caos. Basta que retenhamos, já que todas essas metáforas são espaciais, que o plano de imanência não pode cobrir ou superpor-se ao caos (mesmo se se afirma que seu horizonte é infinito). Deleuze diz que o plano de imanência é um "corte" no caos (como um plano que corta um cone). "Cortar" só pode significar captar (definir, reter) uma "fatia", por assim dizer, de um caos que permanece livre (e infinitamente livre) em todas as outras direções ou dimensões. De outro modo, aliás, o pensamento não poderia ter esse "fora" que se afirma ser-lhe indissociável. Mas, além de "corte" no caos, o plano é também um "crivo" -cortar é selecionar e fixar, numa palavra, determinar, conter o rio de Heráclito ou o Oceanomundo, de que se pode dizer também que é "comme la mer toujours renouvelée".
Aqui já topamos com um problema. Ao descrever, assim, o plano de imanência, não estaríamos projetando, para fora ou para além do plano de imanência, um novo Universal transcendente, que não é certamente o Uno de Platão, o Deus dos cristãos, o Sujeito da reflexão ou da comunicação, mas que se assemelha perigosamente à mais que clássica "Omnitudo Realitatis"? Mundo Real ou Natureza-em-si, que são mais velhos que o pensamento, candidatos privilegiados para preencher o cargo de Transcendente por excelência, deixado vazio com as mortes sucessivas de Deus e da Alma (ou do Sujeito)?
Deixemos para mais tarde a questão e detenhamo-nos mais um pouco na relação esquematicamente esboçada. Ao fazê-lo, talvez possamos preparar uma resposta possível ao problema levantado. Para encaminhar a questão, Deleuze recorre à distinção entre filosofia e ciência -dois comportamentos diferentes em relação ao caos. Se o plano de imanência corta o caos ou se a filosofia nele mergulha, ela o faz, como sabemos, dando-lhe consistência, sem, todavia, "nada perder do infinito" ("O Que É a Filosofia?", pág. 59). Proeza da filosofia, que é ressaltada no seu contraste com a ciência ou com sua maneira peculiar de mergulhar (ela também o faz) no caos. Que faz a ciência? Ela "dá referência" ao caos, "sob a condição de renunciar aos movimentos e velocidades infinitos, e de operar, desde início, uma limitação de velocidade: o que é primeiro na ciência é a luz ou o horizonte relativo" ("O Que É a Filosofia?", pág. 59).
Impossível não reconhecer aí uma reminiscência bergsoniana: se a filosofia dá consistência ao caos sem nada perder do infinito ou do "Devir", a ciência sacrifica o Devir (ou a Duração) para dar lugar à referência, ou seja, à fixação de estados-de-coisa. Há reminiscência bergsoniana, mas devidamente atualizada: no lugar da antiga oposição entre intuição e inteligência, ou entre duração e espaço, instala-se a oposição entre uso não-referencial e uso referencial da linguagem, entre a autoposição do conceito e a função proposicional ligada essencialmente a seus valores de verdade; e, no nível do objeto, a oposição entre "acontecimentos", de um lado, e fatos ou estados-de-coisa, de outro. (Notemos que, aqui, "évènement" não traduz bem a expressão "Tatsache"; se esta é espontaneamente ligada à expressão "Sacheverhalt" e, indiretamente, a "Sache", para Deleuze, "évènement", tem pouco a ver com coisas ou estados-de-coisa. Talvez mais a ver com História, pelo menos como a pensava Péguy, particularmente o autor de "Clio", que também teve seu entusiasmo por Bergson).
E é aqui que podemos trazer à baila o anunciado contraponto com Wittgenstein. Que não é tão surpreendente como pode parecer (e como talvez parecesse, imagino, ao próprio Deleuze). Com efeito, já em 1969, J.C. Pariente fazia um paralelo iluminador entre Bergson e Wittgenstein -insistindo, é claro, na enorme diferença existente entre as duas concepções da linguagem e do espaço-, mas apontando para algo como um "dispositivo lógico" comum às duas filosofias, e que consistiria numa mesma "tripartition des énoncés en non-sens, énoncés signifiants et énoncés vides de sens" (2). Ora, é um pouco essa aproximação que pode ser prolongada, via bergsonismo, visando agora Wittgenstein e Deleuze, a propósito do "dispositivo metafísico" que, em ambos, parece ligar "filosofia" e "caos" (dispositivo que nos remete, desde já, ao dispositivo "histórico-metafísico" Schopenhauer/Nietzsche, ao qual voltaremos mais tarde).
É para melhor compreender o cruzamento deleuziano entre plano de imanência e caos que começamos por lembrar uma frase de Wittgenstein (datada de 1948) que podemos ler nas "Vermischte Bemerkungen": "Através da filosofia devemos mergulhar no caos arcaico e lá sentirmo-nos bem". A metáfora é a mesma, mas não se trata, creio eu, apenas de uma metáfora (ou, como dizia J.C. Pariente, aproximando as metáforas de Bergson e de Wittgenstein: "Responderão que se trata apenas de uma metáfora; mas então por que 'esta' metáfora?"). Que pode significar a expressão "caos" na linguagem de Wittgenstein? Nada mais do que uma espécie de "experiência" não amparada por um sistema de regras (no limite, mergulhar na loucura, definida na sua oposição tanto ao erro como à ilusão, como numa "cegueira para as regras").
Aqui também cumplicidade entre pensamento e loucura? De um lado, Deleuze diz, definindo os meios do pensamento: "...ele (o plano de imanência) implica numa espécie de experimentação tateante, e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, dos processos patológicos, das experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso" ("O Que É a Filosofia?", pág. 58). Ao que parece ecoar outra frase de Wittgenstein: "Assim como na vida estamos cercados de morte por todos os lados, talvez nosso sadio entendimento esteja cercado pela loucura".
Não sublinho tais textos por entusiasmo por algum "pathos" romântico ou para-romântico. O que me interessa é saber se a idéia wittgensteiniana de regra ou de sistema de regras pode ou não, por alguma forma de isomorfismo, lançar luz sobre a relação que Deleuze estabelece entre as idéias de caos e de plano de imanência.
A idéia de regra, como se sabe, só pode ser compreendida sobre o fundo das idéias de "jogo de linguagem" e de "forma de vida". A idéia de "jogo de linguagem" tem todas as características dos famosos "mistos empírico-transcendentais" de "Les Mots et les Choses". Aí se juntam "fatos muito gerais da natureza" e condições lógicas ou gramaticais de significação ou de uso da linguagem: aí se cruzam, portanto, vida, linguagem, ação ou trabalho. Junção, é preciso acrescentar, onde a inegável "facticidade", explicitamente afirmada, não implica em forma alguma de empirismo, mas em algo como um "empirismo transcendental".
Como bem observa Bouveresse: "A posição de Wittgenstein sobre este ponto é (...) que alguns fatos poderiam tornar nossos jogos de linguagem impossíveis ou sem interesse, mas que nenhum dos fatos que podemos constatar e mencionar tornou-os necessários" (J. Bouveresse, "Le Mythe de l'Intériorité", Ed. de Minuit, pág. 593). Cada um dos jogos de linguagem (aqui também devemos falar no plural, como no caso dos planos de imanência) é um conjunto (melhor seria dizer um "aglomerado") simbólico-prático, que, na sua dimensão simbólica, se distribui entre proposições e pseudoproposições, entre proposições bipolares e polares. Estas últimas, que não são nem verdadeiras nem falsas, servem de base ou abrem o espaço que será povoado por certas tribos de proposições propriamente ditas e proibirão a entrada de quaisquer outras tribos.
Numa palavra, as pseudoproposições de base (isto é, aquele alicerce que ignora a partilha entre o verdadeiro e o falso) estão, para as proposições autênticas, como cada plano de imanência está para os conceitos que nele circulam. E podemos acrescentar que cada jogo de linguagem, na medida em que cria o espaço onde as proposições podem tornar-se significativas (ou simplesmente proposições), corta segundo seu próprio plano o caos (neste caso, história natural ou o Sublime?, ou ambas as coisas?) e funciona como um crivo, transformando eventos em estados-de-coisa. Mais uma vez, as pseudo-proposições de base armam uma rede que, lançada ao caos, pode dar-lhe consistência.


Continua



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