São Paulo, domingo, 8 de junho de 1997.



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A idéia de plano de imanência

Mas, para que o paralelo entre as pseudoproposições de base e o plano de imanência possa mostrar todo seu alcance, é preciso sublinhar como Wittgenstein as articula ao "fazer" da filosofia. Porque é bem em relação a elas que Wittgenstein situa a filosofia -também na tensão que a opõe tanto ao senso comum como à ciência e à arte. Para bem compreendê-lo, é preciso distinguir entre "Weltbild" e "Weltanschauung", que, longe de funcionar como sinônimos, designam instâncias completamente diferentes.
Que é um "Weltbild"? Nós já o sabemos: ele é aquele amálgama de pseudoproposições cristalizado na base de um jogo de linguagem que, ao mesmo tempo, precede a alternativa entre o verdadeiro e o falso e abre o espaço para seu advento: numa palavra, o plano onde circulam e se entrechocam os conceitos. O senso comum nele se apóia espontaneamente e parece fazê-lo tomando-o como "verdade" (confundindo "Weltbild" e conhecimento dado) e não está completamente enganado, já que tal ilusão é necessária para o curso da vida quotidiana; a "filosofia do senso-comum" não pode contar com esse álibi e se prolonga em empresas infelizes, como a de Moore, que termina por transformar o "Weltbild" em uma "Weltanschauung" (ou fundar o senso comum numa certeza racional); na linguagem de Deleuze, Moore confunde plano de imanência e conceito.
De resto, "todos" os filósofos (Platão, Kant, Husserl) transformam o "Weltbild" (que é uma base sem fundamento, "grundlösige Grund" que não passa de uma parada provisória e arbitrária do fluxo infinito do caos) na mais sólida "Arquê", dando lugar a uma teoria universalista capaz de dominar pelo conhecimento a "Omnitudo Realitatis". No fundo, a filosofia e o senso comum partilham a mesma ilusão, mas só a ilusão filosófica tem efeitos desastrosos para o pensamento e, sobretudo, para a própria vida.
Um "Weltbild", repitamos, é uma rede lançada no caos, que detém seu fluxo infinito, escolhendo e fixando alguns pontos que definem um plano ou, ainda, um estilo de vida. Mas há tantos "Weltbilden" quantos jogos de linguagem ou formas de vida; portanto, mil maneiras de cortar o caos ou de "ralentir" os movimentos que o atravessam. Essas metáforas fluviais ou heracliteanas ocorrem em "Sobre a Certeza" -ver, por exemplo, o parágrafo 97.
Haverá um "Weltbild" melhor do que outros? poderíamos perguntar a Wittgenstein, como Deleuze pergunta a si mesmo, a propósito dos planos de imanência. Mas sua resposta seria negativa, levando muitos de seus comentadores a atribuir-lhe, equivocadamente, alguma forma de relativismo, isto é, levando-o na direção que Deleuze quer evitar a todo preço. Interpretações relativistas da pluralidade dos "Weltbilden" que provocaram, como reação inversa, uma interpretação "universalista" (por parte de autores como Apel/Habermas, na Alemanha e Giannotti, no Brasil), que parece também equivocada, como tentei mostrar em outro lugar (cf. Bento Prado Jr., "Erro, Ilusão, Loucura", em "A Crise da Razão", org. de A. Novaes, Cia. das Letras, 1996, págs. 111-133).
Por enquanto, limitemo-nos à comparação entre a descrição wittgensteiniana da proliferação das "Weltanschauungen" sobre o fundo dos "Weltbilden" e a descrição deleuziana da instauração filosófica sobre o fundo do plano de imanência. Num caso como no outro, o que se denuncia é algo como um pecado mortal e original, inscrito no próprio coração da tradição da filosofia, e o que se anuncia é uma nova via que permita redimi-lo, sem abandonar a filosofia.
Fazendo cruzar os dois diagnósticos, e recorrendo às linguagens diferentes dos dois filósofos (por detrás das mesmas metáforas, um mesmo diagnóstico?), podemos dizer que o pecado da filosofia (que a degrada em "Weltanschauung") é o de se compreender como Teoria ou Representação e de entender o "Weltbild", ou o plano de imanência, como um conjunto de proposições que se referem a objetos ou estados-de-coisa transcendentes, no regime da "Übereinstimmung" ou da "Adaequatio", e não como um "fazer", ou como uma prática construtiva, que introduz um mínimo de consistência no caos e que exprime a forma imanente de "uma vida".
Não estou inventando nada aqui, nem produzindo um amálgama arbitrário. É o que se pode ver no belo parágrafo 559 de "Sobre a Certeza", onde Wittgenstein diz literalmente: "Você precisa ter em mente que o jogo de linguagem é, por assim dizer, algo de imprevisível. Quero dizer: não está fundado. Não é nem razoável, nem não razoável. -Está aí, como nossa vida". O que, lembrando, aliás, o título, e mais que o título do último escrito de Deleuze ("L'immanence: une Vie"), não é pouco dizer. Com efeito, é só no interior do jogo de linguagem (na sua facticidade bruta) que os conceitos em geral e a idéia de racionalidade em particular (que jamais é apagada) assumem sentido.
Ora, com a "Grundlösigekeit" do jogo de linguagem -dotada da mesma facticidade que afeta nossa vida comum e anônima- é a própria idéia de racionalidade que se encontra subordinada a uma espécie de "princípio de razão contingente", como já se falou a propósito da filosofia de Deleuze. Mais do que isso, o jogo de linguagem não é apenas contingente "como uma vida", ele é a expressão ou o desdobramento dessa vida ou dessa forma de vida. Poderíamos dizer que, na sua dimensão, ao mesmo tempo simbólica e prática, o jogo de linguagem é obra de uma vida que se redobra e se enrola sobre si mesma.
Mas ainda, resta a questão da multiplicidade dos jogos de linguagem. Existe, é claro, em Wittgenstein, uma idéia que quase se aproxima daquela de um solo único, subjacente aos múltiplos jogos, como o plano último de imanência que varia e se especifica em mil folhas -no caso de Wittgenstein, algo como a idéia de uma "humanitas minima", minuciosamente explorada, aliás, por Giannotti em seu livro "Apresentação do Mundo", ou de uma espécie de interface entre o homem e o animal (como Deleuze, Wittgenstein está pouco preocupado -digamo-lo pensando naqueles que falam no "culturalismo" deste último- com os predicados "puramente" antropológicos e, guardando embora o estilo transcendental que marcara o "Tractatus", não teme a pecha de "naturalismo").
Mas o que importa é a avaliação comparativa dos diferentes jogos de linguagem ou formas de vida. Reiteremos a questão de Deleuze: há um melhor plano de imanência? Quem é o Espinosa do filósofo austríaco? Frege ou... Kierkegaard, que também está presente no álbum de família de Deleuze (a Repetição etc.)? Mas esta pequena provocação não nos conduz muito longe, nem na boa direção. O que importa é, talvez, fixar duas linhas e considerar sua possível convergência: 1) o construtivismo da concepção wittgensteiniana da linguagem e do conhecimento, 2) a idéia do caos (ou de um "mundo" sem regras -um i-mundo?- que vem a ocupar o lugar antes reservado à esfera do "Místico"), e, finalmente, 3) o "perspectivismo" filosófico que parece esboçar-se no entrecruzamento entre 1 e 2. Digamos: "perspectivismo sem relativismo", na fórmula lapidar de Luís Henrique Lopes dos Santos, que não canso de repetir.
Que pode ser um perspectivismo sem relativismo? Não nos remete ele imediatamente a Nietzsche? Em todo caso, tal idéia parece transparecer na definição deleuziana do plano de imanência como um horizonte muito peculiar: "...mas o plano é o horizonte dos acontecimentos (...) não o horizonte relativo que funciona como um limite, muda com o observador e engloba estados-de-coisa observáveis, mas o horizonte absoluto, independente de todo observador, que libera o acontecimento como conceito independente de um estado-de-coisa visível onde ele se efetuaria" ("O Que É a Filosofia?", pág. 52).
No caso de Wittgenstein, o caráter não-relativista de seu perspectivismo deve ser conciliado com a proibição de qualquer forma de juízo de valor -o que não vai sem paradoxo: como descrever a forma de vida contemporânea ou a civilização tecno-científico-industrial como "decadente", já que impregnada por essa "lavagem imunda" ("grässlischen Übels, der ekelhaften, seifeinwässrigen Wissenschaft") que é a ciência, como faz, e dizer que não está fazendo juízo algum de valor? Talvez não fosse insensato resolver a questão, recorrendo ao que Wittgenstein diz da relação entre o "gênio" e o simples "homem honesto" (antecipando a comparação entre formas de vida de igual valor), nas "Vermischte Bemerkungem". Lá podemos ler: "O gênio se distingue do homem reto, não porque ele tem mais pensamento, mas porque ele concentra essa luz, graças a uma espécie de pequena lente, num ponto ardente".
E o que vale para os indivíduos, vale para as formas de vida: sem hierarquizar explicitamente as formas de vida (que têm a mesma "quantidade de força e de autenticidade", como o gênio e o homem honesto que têm a mesma "quantidade de pensamento"), Wittgenstein não pode impedir-se de compará-las e de assinalar sua preferência por aquela que lhe é mais congenial, aquela que não proíbe que nos lancemos insensatamente -sabendo-o- contra os limites da linguagem, abrindo o espaço da Ética, da Arte e da Religião (ver a nota sobre Heidegger em "Wittgenstein und der Wienerkreis"), que nos convidam "in's alte Chaos hinabsteigen, und sich dort wohlfülen", para de lá trazer algumas conchas, alguns sinais, na impossibilidade absoluta, isto é, lógico-gramatical, de trazer "proposições". Operação ética, estética e religiosa, mas que é também o "telos" da filosofia, quando renuncia à condição de Teoria ou de Representação e se torna visão de seu próprio limite e do limite do Mundo ou da Vida -a famosa "Übersichtlichkeit", ao mesmo tempo visão muda, perspícua e sinóptica- ou quando ela se aproxima, por assim dizer, da Música ou da Poesia. Schopenhauer? Ninguém ignora o lugar e a importância da obra do primeiro mestre de Nietzsche na gênese do pensamento de Wittgenstein, dos primeiros aos últimos escritos. O dispositivo Schopenhauer/Nietzsche talvez sirva de amparo para as aproximações pouco habituais que tentamos fazer entre as obras de Deleuze e Wittgenstein.
3
Para encerrar, apenas algumas observações complementares a respeito da relação entre filosofia e vida. Talvez os cruzamentos acima sugeridos recebam maior verossimilhança se pensarmos nos efeitos "práticos" de idéias como as de plano de imanência e de jogo de linguagem. Pois, como para Kant, não parece discutível que a atividade filosófica tenha, tanto para Deleuze como para Wittgenstein, sua justificação plena apenas nos seus efeitos ético-políticos. Mais ainda, parece que a "ilusão filosófica" só merece crítica, para um como para outro, por causa dos seus efeitos, que consideram devastadores, na vida imediata, individual ou coletiva.
No que concerne às relações entre filosofia e vida em Wittgenstein, convém registrar as seguintes observações de Von Wright: "Em razão do entrelaçamento entre a linguagem e as maneiras de viver, uma desordem na primeira reflete uma desordem nas últimas. Se os problemas filosóficos são o sintoma do fato de que a linguagem produz excrescências malignas que obscurecem nosso pensamento, então deve haver um câncer no 'Lebensweise', no próprio modo de vida" (G.H. Von Wright, "Wittgenstein", TER, págs. 228-229). Diagnóstico catastrofista do presente e concepção "sintomal" da filosofia, que se exprime igualmente nos escritos de Deleuze a partir do "Anti-Édipo": lá também não se entrelaçavam a crítica do modo de vida instaurado pelo capital e a das "teorias", como a psicanálise (numa crítica diferente daquela que Wittgenstein endereçará, também com respeito, a Freud), que o exprimem?
Na verdade, temos diante de nós duas filosofias de inspiração essencialmente "anarcôntica". Em primeiro lugar, porque combatem todas as formas de fundacionalismo na filosofia, toda tentativa de encontrar uma "arquê" transcendente, para além da imanência da vida: -não transcendamos jamais o plano de imanência!, não busquemos um além, "nihil absconditum"!, não esqueçamos os limites de nosso jogo, de nossa vida! Em segundo lugar, porque esse combate é também um combate contra as formas de sociabilidade que estão na base desses fundacionalismos, ou que estes exprimem de maneira sublimada.
Mas é claro, também, que essa similitude de estilo vai apenas até certo ponto, para logo dar lugar a uma dramática bifurcação, que leva um para a uma ética individualista, impregnada pelo espírito da fé, e, outro, para uma ética que se identifica finalmente à política. De um lado, um "narodnik" solitário, impregnado pela leitura de Tolstoi, olhando para o passado (para a Cultura que desapareceu), preocupado apenas com sua salvação no instante presente graças ao milagre da fé (a "imantação pelo alto" de que fala Wittgenstein, mesmo se não crê em Deus algum), completamente cortado de toda preocupação com o futuro.
De outro lado, um "narodnik" solidário (sempre, em todo caso, como Sartre, um traidor da burguesia), que se volta contra a barbárie do presente com seus olhos voltados para o futuro: aquele mesmo que, depois de fazer o diagnóstico da "sociedade de controle", se entendi bem, aposta ainda na emergência de "forças futuras", nova forma de sociabilidade, retorno de uma cultura viva: tudo se passa como se Deleuze, depois do sinistro diagnóstico, se reportasse, com algum otimismo, às "novas forças que se anunciam". Um novo avatar dos filosófos do futuro a que se referia Nietzsche e, com outro espírito, o próprio Marx (aquele mesmo que prognosticava o fim da "filosofia separada" ou aspirava à reabsorção da pura especulação pela vida social dos homens)?
Ao contrário de Wittgenstein, que, separado do passado, não hesitava em matar, na raiz, qualquer espírito utópico, dizendo, nas "Vermischte Bemerkungem": "Quando pensamos no futuro do mundo, visamos sempre o ponto onde ele estará, se continuar a seguir o curso que vemos seguir hoje: não prestamos atenção no fato de que ele não segue em linha reta, mas segue uma curva, e que sua direção muda constantemente". Curiosamente, a idéia de imprevisibilidade radical da vida e da história pode tanto abrir como fechar a porta da esperança política.
Desencantamento e esperança combinam-se de modos diferentes em um e outro autor, mas ambos são pouco conformistas e usam a filosofia (ou instrumentos como as idéias de plano de imanência, jogos de linguagem etc...) para criticar o mundo em que vivemos.

Notas:
1. Em entrevista concedida à Folha ("Mais!", 2/6/96), eu dizia: "A crítica deleuziana à subjetividade como fundamento é menos uma originalidade de sua filosofia do que um ponto pacífico de toda reflexão contemporânea de vocação antifenomenológica, da filosofia analítica aos famosos 'desconstrucionismos', passando por todos os neopragmatismos (o naturalista, norte-americano, e o transcendental, alemão) e por todos os estruturalismos. O que a distingue, talvez, é ver no sujeito fundante (cartesiano, kantiano, husserliano e mesmo hegeliano -cf. Gérard Lebrun, 'O Avesso da Dialética', Cia. das Letras, págs. 254-257) um sujeito essencialmente representativo e submetido ao regime da identidade, 'arquê' unificadora e síntese prévia da experiência, capaz de exorcizar toda forma de diferença rebelde. Trata-se de inverter a linha do pensamento, para levá-la para algo como um campo prévio, pré-subjetivo e pré-objetivo, donde constituir tanto sujeito como objeto.
Contra a Filosofia do Sujeito, retomar o movimento da reflexão de Hume e de Bergson (a imaginação de Hume, entendida como coleção anônima -não como sistema- de dados ou idéias, como conjunto sem estrutura ou centro, 'coleção sem álbum, peça sem teatro, ou fluxo de percepções'- ou o campo das imagens do primeiro capítulo de 'Matière et Mémoire', de Bergson, neutro epistemologicamente, onde ainda não se separaram o para-si e o em-si), de Sartre (o Sartre de 'La Trascendance de l'Ego', que projeta o ego para fora da consciência, definindo-o como tão transcendente quanto uma cadeira ou um pedregulho), de William James (o do 'stream of thought' dos 'Principles', que lamentava não poder dizer, como seria necessário, em inglês, 'it thinks', como se diz 'it rains', já que a gramática do enunciado 'I think' cria a ilusão da substancialidade do cogito). Não era já Nietzsche que via na identidade do cogito ou do sujeito fundador um efeito, apenas, de uma ilusão gramatical?".
Antecipando um pouco o paralelo que prometemos entre Deleuze e Wittgenstein, lembremos que, este último, leitor de William James e de Nietzsche, voltou à origem desse filosofema no século 18 alemão, para retomá-lo nos seus próprios termos. Assim, nas notas dos alunos que ouviram suas aulas no início da década de 30, podemos encontrar o seguinte registro: "Ele dizia que 'assim como nenhum olho (físico) está implicado no fato de ver, nenhum Ego está implicado no fato de pensar ou de ter dor de dentes; e ele citava, parece que com aprovação, a frase de Lichtenberg, segundo a qual 'Em lugar de
Eu penso, devemos dizer Ele pensa' " (texto citado e comentado por J. Bouveresse, "Le Mythe de l'Intériorité", ed. de Minuit, cap. 1).
2. Cf. J.C. Pariente, "Bergson et Wittgenstein", in "Wittgenstein et le Problème d'une Philosophie de la Science", Ed. CNRS, 1971.


Bento Prado Jr. é professor de filosofia da Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros, de "Alguns Ensaios - Filosofia, Literatura e Psicanálise" (Max Limonad).




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