São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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+ brasil 502 d.C.

Um voluntário na Guerra do Paraguai

José Murilo de Carvalho

Da Guerra do Paraguai (1864-1870), conhecemos razoavelmente a história militar, política e diplomática. A escola encarrega-se de informar sobre batalhas, exaltar generais e almirantes. Estátuas, quadros e nomes de rua reforçam a versão patriótica dos livros escolares. Sabemos também um pouco sobre consequências da guerra para as finanças públicas, para a política, para a abolição e para a formação de espírito de corpo entre os oficiais do Exército. Mas sabemos muito pouco sobre a história social da guerra e de suas consequências. Quem eram os combatentes, como foram recrutados, como era a vida nas trincheiras, como era o tratamento dos soldados, sua alimentação, as doenças, o serviço de saúde, a relação entre eles e os oficiais, a disciplina, a convivência entre soldados de várias partes do país, de libertos com filhos de senhores, de negros, brancos e pardos, como era o relacionamento com o inimigo nos momentos de trégua, a reação à propaganda antiescravista e racista dos paraguaios, a vida após o regresso, no Exército e na vida civil, sobretudo a relação do liberto ex-combatente com seus parentes ainda escravos, com os ex-senhores?

Experiência traumática
Quase nada também sabemos sobre as consequências da guerra para a cultura cívica nacional. Mais de 135 mil soldados lutaram durante cinco anos contra inimigo externo, em terras estranhas, mais de 30 mil morreram no campo de batalha, por ferimentos recebidos do inimigo ou por doenças.
A traumática experiência deve ter alterado profundamente a idéia de Brasil e de pátria dos sobreviventes, tanto daqueles que se apresentaram com entusiasmo no início como voluntários quanto dos muitos outros que mais tarde foram levados quase à força para o campo de batalha, tanto dos livres como dos libertos. Esse vasto campo foi apenas arranhado por alguns estudos, vários de natureza mais panfletária que acadêmica. Exemplo da precariedade dos conhecimentos é o fato de haver autores que ainda afirmem que escravos lutaram na guerra, quando apenas libertos o fizeram.
Fonte preciosa de informação sobre a história social de qualquer guerra são diários, memórias e correspondência escritos por combatentes, sobretudo por praças. São raros esses documentos para a Guerra do Paraguai, sem dúvida em razão do baixo nível de escolaridade da tropa. De oficiais superiores, existe alguma coisa: as cartas e recordações de Taunay, os diários de Rebouças, as cartas de Benjamin Constant à mulher, as reminiscências de Dionísio Cerqueira, as memórias de Von Hoonholtz, as recordações de Rodrigues da Silva. São sem dúvida úteis, sobretudo para esclarecer aspectos militares, políticos e diplomáticos. Mas pouco nos dizem sobre o lado social. Para esse, valem mais diários e memórias de praças e oficiais subalternos, de que existem raríssimos exemplos.
Um desses exemplos está agora disponível na internet (1). Trata-se do diário de campanha de Francisco Pereira da Silva Barbosa, colocado na internet por seus descendentes, juntamente com as memórias de sua vida civil. Francisco Barbosa (1843-1931) não era exatamente um homem do povo, era filho de fazendeiros de Barra Mansa no Vale do Paraíba. Ao se dirigir à corte com outros voluntários, pousou com eles na fazenda de José de Souza Breves, magnata do café e grande senhor de escravos. Mas alistou-se como praça e só foi promovido a alferes no final de 1868, terminando a guerra como tenente comissionado. Aliás, uma das curiosidades desse voluntário era a resistência a promoções. Pediu mais de uma vez que fosse rebaixado de posto.
Para alguns oficiais não deve ter sido um sacrifício atender a seu desejo, tantas foram as vezes que foi preso por indisciplina. Francisco Barbosa implicou sobretudo com um major fiscal do Corpo, de apelido Felix Gato, e com um tenente Abreu, o "Jararaca".
Os dois foram responsáveis pela maioria de suas prisões, mesmo depois de promovido a alferes. Como praça e oficial inferior comissionado experimentou na carne todas as misérias a que estavam submetidos os soldados.
Infelizmente há dois grandes silêncios no diário. Um deles é a razão pela qual se alistou. Não seriam as vantagens prometidas pelo decreto de 7 de janeiro de 1865 que convocou os voluntários (indenização de 300 mil réis e 22,5 mil braças quadradas de terra). Ele não precisava delas. Espírito aventureiro? Patriotismo? Não há resposta. De qualquer modo, Francisco Barbosa alistou-se na corte no 1º Corpo de Voluntários da Pátria em 17 de fevereiro de 1865 e regressou cinco anos mais tarde, em 20 de março de 1870. Em 5 de março de 1865, sem nenhum treinamento, o 1º Corpo embarcou para o Sul.
O embarque contou com a presença do imperador e mereceu charge de Henrique Fleiuss na "Semana Illustrada". Em 10 de junho, a tropa bisonha, malvestida e cansada de longa marcha enfrentou os profissionais do coronel Estigarribia, que invadira o Rio Grande do Sul por São Borja, deixando no campo de batalha os primeiros mortos pelas "jabuticabas" (balas de fuzil) e "melões" (balas de canhão) do inimigo.


Os médicos deixavam-se ficar nos hospitais e no quartel-general, relegando os batalhões às mãos de estudantes de medicina


O diário, que tem antes a forma de um relato continuado, segue comentando as batalhas, as marchas, os conflitos com oficiais, as doenças, a fome, a situação das mulheres e crianças paraguaias e o regresso à "bela Guanabara, a mais linda baía do mundo". Chama a atenção sobretudo a baixa qualidade do serviço médico e da alimentação. No combate de Estero Belaco, o autor perdeu um pedaço da orelha esquerda e levou uma "jabuticaba" no tornozelo. Ficou três dias no hospital sem conseguir ser atendido. Encheu-se de sarnas e os médicos registraram que baixara ao hospital devido a febres intermitentes, febres que mais tarde realmente teve. Os médicos deixavam-se ficar nos hospitais e no quartel-general, relegando os batalhões às mãos de estudantes de medicina. Doentes julgados aptos para a luta amanheciam mortos nas barracas. Além de sarnas e febres, soldados descalços eram constantemente atormentados por frieiras. O próprio autor chegou ao Rio sem poder calçar botinas graças a uma frieira arruinada.
A alimentação dependia muitas vezes da captura de animais pertencentes ao inimigo. A pior situação verificou-se em outubro de 1869, já quase ao final da guerra, quando o Exército de Lopes já fora completamente derrotado. Depois de matarem cavalos e cachorros, os soldados comiam ervas, palmitos, o couro das cangalhas, farinha, milho seco. Salvara o autor o faxineiro Albino, um gênio para farejar alimento. Morreram soldados de fome e oficiais desertaram para se apresentarem em outras unidades mais bem abastecidas. Ao mesmo tempo, em outras circunstâncias, reses e cavalos eram imolados às centenas e jogados rio abaixo para não alimentar o inimigo.
As informações sobre a população paraguaia ao final da guerra são dramáticas. Não se encontravam homens válidos. Milhares de mulheres e crianças escondiam-se nas matas para não serem forçadas a seguir o fugitivo Lopes. Seminuas, recebiam os soldados com festas, ganhavam roupas e marchavam fardadas com as tropas. Em São Joaquim, os voluntários encontraram 60 casebres em que Lopes trancafiara inimigos políticos, proibindo que fossem alimentados. Morreram todos de fome.
O 1º Corpo de Voluntários partiu com 728 homens e voltou, sob o nome de 23º, com 126 sobreviventes. No campo de batalha ficaram 602 voluntários, 83% do contingente original. Francisco Barbosa, filho de fazendeiros, foi feito tenente honorário do Exército e recebeu o hábito de Cavaleiro da Ordem da Rosa. Sobre os outros 125 voluntários não há notícia. O segundo grande silêncio do diário, mais desapontador que o primeiro, tem a ver com a ausência de qualquer comentário sobre a tropa, sobre a convivência entre livres e libertos, entre negros, pardos e brancos. Silêncio proposital do autor ou problema que se coloca apenas para o leitor de hoje?

Nota:
1. www.geocities.com/cvidalb2000/diariob.html e www.geocities.com/cvidalb2000/vidacivil.html


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de "Pontos e Bordados" (Ed. da UFMG), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.", do Mais!.



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