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+ brasil 502 d.C.
Um voluntário na Guerra do Paraguai
José Murilo de Carvalho
Da Guerra do Paraguai (1864-1870), conhecemos razoavelmente a história militar, política e diplomática. A escola encarrega-se de informar sobre batalhas,
exaltar generais e almirantes. Estátuas,
quadros e nomes de rua reforçam a versão patriótica dos livros escolares. Sabemos também um pouco sobre consequências da guerra para as finanças públicas, para a política, para a abolição e
para a formação de espírito de corpo entre os oficiais do Exército. Mas sabemos
muito pouco sobre a história social da
guerra e de suas consequências. Quem
eram os combatentes, como foram recrutados, como era a vida nas trincheiras, como era o tratamento dos soldados,
sua alimentação, as doenças, o serviço de
saúde, a relação entre eles e os oficiais, a
disciplina, a convivência entre soldados
de várias partes do país, de libertos com
filhos de senhores, de negros, brancos e
pardos, como era o relacionamento com
o inimigo nos momentos de trégua, a
reação à propaganda antiescravista e racista dos paraguaios, a vida após o regresso, no Exército e na vida civil, sobretudo a relação do liberto ex-combatente
com seus parentes ainda escravos, com
os ex-senhores?
Experiência traumática
Quase
nada também sabemos sobre as consequências da guerra para a cultura cívica
nacional. Mais de 135 mil soldados lutaram durante cinco anos contra inimigo
externo, em terras estranhas, mais de 30
mil morreram no campo de batalha, por
ferimentos recebidos do inimigo ou por
doenças.
A traumática experiência deve ter alterado profundamente a idéia de Brasil e
de pátria dos sobreviventes, tanto daqueles que se apresentaram com entusiasmo
no início como voluntários quanto dos
muitos outros que mais tarde foram levados quase à força para o campo de batalha, tanto dos livres como dos libertos.
Esse vasto campo foi apenas arranhado
por alguns estudos, vários de natureza
mais panfletária que acadêmica. Exemplo da precariedade dos conhecimentos
é o fato de haver autores que ainda afirmem que escravos lutaram na guerra,
quando apenas libertos o fizeram.
Fonte preciosa de informação sobre a
história social de qualquer guerra são
diários, memórias e correspondência escritos por combatentes, sobretudo por
praças. São raros esses documentos para
a Guerra do Paraguai, sem dúvida em razão do baixo nível de escolaridade da tropa. De oficiais superiores, existe alguma
coisa: as cartas e recordações de Taunay,
os diários de Rebouças, as cartas de Benjamin Constant à mulher, as reminiscências de Dionísio Cerqueira, as memórias
de Von Hoonholtz, as recordações de
Rodrigues da Silva. São sem dúvida úteis,
sobretudo para esclarecer aspectos militares, políticos e diplomáticos. Mas pouco nos dizem sobre o lado social. Para esse, valem mais diários e memórias de
praças e oficiais subalternos, de que existem raríssimos exemplos.
Um desses exemplos está agora disponível na internet (1). Trata-se do diário
de campanha de Francisco Pereira da Silva Barbosa, colocado na internet por
seus descendentes, juntamente com as
memórias de sua vida civil. Francisco
Barbosa (1843-1931) não era exatamente
um homem do povo, era filho de fazendeiros de Barra Mansa no Vale do Paraíba. Ao se dirigir à corte com outros voluntários, pousou com eles na fazenda de
José de Souza Breves, magnata do café e
grande senhor de escravos. Mas alistou-se como praça e só foi promovido a alferes no final de 1868, terminando a guerra
como tenente comissionado. Aliás, uma
das curiosidades desse voluntário era a
resistência a promoções. Pediu mais de
uma vez que fosse rebaixado de posto.
Para alguns oficiais não deve ter sido
um sacrifício atender a seu desejo, tantas
foram as vezes que foi preso por indisciplina. Francisco Barbosa implicou sobretudo com um major fiscal do Corpo,
de apelido Felix Gato, e com um tenente
Abreu, o "Jararaca".
Os dois foram responsáveis pela maioria de suas prisões, mesmo depois de
promovido a alferes. Como praça e oficial inferior comissionado experimentou
na carne todas as misérias a que estavam
submetidos os soldados.
Infelizmente há dois grandes silêncios
no diário. Um deles é a razão pela qual se
alistou. Não seriam as vantagens prometidas pelo decreto de 7 de janeiro de 1865
que convocou os voluntários (indenização de 300 mil réis e 22,5 mil braças quadradas de terra). Ele não precisava delas.
Espírito aventureiro? Patriotismo? Não
há resposta. De qualquer modo, Francisco Barbosa alistou-se na corte no 1º Corpo de Voluntários da Pátria em 17 de fevereiro de 1865 e regressou cinco anos
mais tarde, em 20 de março de 1870. Em
5 de março de 1865, sem nenhum treinamento, o 1º Corpo embarcou para o Sul.
O embarque contou com a presença do
imperador e mereceu charge de Henrique Fleiuss na "Semana Illustrada". Em
10 de junho, a tropa bisonha, malvestida
e cansada de longa marcha enfrentou os
profissionais do coronel Estigarribia,
que invadira o Rio Grande do Sul por São
Borja, deixando no campo de batalha os
primeiros mortos pelas "jabuticabas"
(balas de fuzil) e "melões" (balas de canhão) do inimigo.
Os médicos deixavam-se ficar nos hospitais
e no quartel-general, relegando os batalhões
às mãos de estudantes de medicina
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O diário, que tem antes a forma de um
relato continuado, segue comentando as
batalhas, as marchas, os conflitos com
oficiais, as doenças, a fome, a situação
das mulheres e crianças paraguaias e o
regresso à "bela Guanabara, a mais linda
baía do mundo". Chama a atenção sobretudo a baixa qualidade do serviço
médico e da alimentação. No combate de
Estero Belaco, o autor perdeu um pedaço
da orelha esquerda e levou uma "jabuticaba" no tornozelo. Ficou três dias no
hospital sem conseguir ser atendido. Encheu-se de sarnas e os médicos registraram que baixara ao hospital devido a febres intermitentes, febres que mais tarde
realmente teve. Os médicos deixavam-se
ficar nos hospitais e no quartel-general,
relegando os batalhões às mãos de estudantes de medicina. Doentes julgados
aptos para a luta amanheciam mortos
nas barracas. Além de sarnas e febres,
soldados descalços eram constantemente atormentados por frieiras. O próprio
autor chegou ao Rio sem poder calçar
botinas graças a uma frieira arruinada.
A alimentação dependia muitas vezes
da captura de animais pertencentes ao
inimigo. A pior situação verificou-se em
outubro de 1869, já quase ao final da
guerra, quando o Exército de Lopes já fora completamente derrotado. Depois de
matarem cavalos e cachorros, os soldados comiam ervas, palmitos, o couro das
cangalhas, farinha, milho seco. Salvara o
autor o faxineiro Albino, um gênio para
farejar alimento. Morreram soldados de
fome e oficiais desertaram para se apresentarem em outras unidades mais bem
abastecidas. Ao mesmo tempo, em outras circunstâncias, reses e cavalos eram
imolados às centenas e jogados rio abaixo para não alimentar o inimigo.
As informações sobre a população paraguaia ao final da guerra são dramáticas. Não se encontravam homens válidos. Milhares de mulheres e crianças escondiam-se nas matas para não serem
forçadas a seguir o fugitivo Lopes. Seminuas, recebiam os soldados com festas,
ganhavam roupas e marchavam fardadas com as tropas. Em São Joaquim, os
voluntários encontraram 60 casebres em
que Lopes trancafiara inimigos políticos,
proibindo que fossem alimentados.
Morreram todos de fome.
O 1º Corpo de Voluntários partiu com
728 homens e voltou, sob o nome de 23º,
com 126 sobreviventes. No campo de batalha ficaram 602 voluntários, 83% do
contingente original. Francisco Barbosa,
filho de fazendeiros, foi feito tenente honorário do Exército e recebeu o hábito de
Cavaleiro da Ordem da Rosa. Sobre os
outros 125 voluntários não há notícia. O
segundo grande silêncio do diário, mais
desapontador que o primeiro, tem a ver
com a ausência de qualquer comentário
sobre a tropa, sobre a convivência entre
livres e libertos, entre negros, pardos e
brancos. Silêncio proposital do autor ou
problema que se coloca apenas para o
leitor de hoje?
Nota:
1. www.geocities.com/cvidalb2000/diariob.html e www.geocities.com/cvidalb2000/vidacivil.html
José Murilo de Carvalho é professor titular do
departamento de história da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, autor de "Pontos e Bordados"
(Ed. da UFMG), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.", do Mais!.
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