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+ filosofia
A ensaísta comenta as palestras dadas pelo
pensador francês no Brasil no mês passado
por Leyla Perrone-Moisés
De 7 a 9 de junho, Jacques Derrida esteve no Rio, em companhia do psicanalista René Major, participando de um encontro organizado por Helena Besserman
Vianna, em homenagem póstuma a uma
amiga comum, Vilma Oakim. A imprensa local comentou fartamente os bastidores administrativos do evento, repercutindo rumores e polêmicas sobre seu gerenciamento por uma empresa privada e
a cobrança de ingressos considerados caros.
Pouco ou nada se falou, entretanto, da
importância intelectual do encontro, do
teor das falas do filósofo e dos debates
que aí se travaram. Como interlocutora
convidada, assisti a todas as sessões e tomei algumas notas, destinadas a meu
uso pessoal. Entretanto, lamentando a
falta de cobertura intelectual do evento
pela imprensa, sinto-me agora impelida
a dar a público estas notas.
Respondendo a perguntas relativas a
questões tratadas longamente em suas
obras, Derrida observou, em determinado momento, que "existe uma violência
feita contra os textos, que consiste em
simplificá-los", e que "é sempre uma
provação discutir rapidamente textos
complexos, que têm outro ritmo". Estou
ciente de que, ao anotar as falas de Derrida, cometi uma violência suplementar,
transformando-as em breves notas. Entretanto acredito que estas notas podem
dar ao menos uma idéia do que foi dito
nesses três dias de debates. E espero que
elas sejam recebidas como são: reflexos
faiscantes de um brilho maior e mais
contínuo.
Como ouvinte de Derrida há mais de
três décadas, posso testemunhar que
aqueles que o ouviram no Rio tiveram
um raro privilégio. Ele aí retomou muitos dos grandes temas de sua obra, com
uma disposição didática notável. E poucas vezes o vi tão vibrante e preciso, tão
generosamente exposto a perguntas dos
interlocutores e do público, que se mostrou, em muitos momentos, cativado
por seu carisma.
Nos instantes que precederam à sessão
de abertura, notei que Derrida estava
tenso e sombrio, como que atemorizado,
o que era surpreendente em se tratando
de alguém que tem falado nos mais variados foros internacionais. De fato, suas
primeiras palavras foram sobre o medo,
mais precisamente, o terror ("l'effroi").
À medida que ele foi falando, esse terror
declarado foi se transformando numa fala fluente. Como em seus seminários parisienses, o prazer e o proveito de ouvir o
filósofo decorre do fato de se tratar de
um pensamento exposto ao vivo, em
processo, sem a arrogância das asserções
definitivas. A desconstrução, tão falada e
tão mal conhecida, é justamente essa tarefa infinita de desmontar pressupostos
essencialistas e discursos dogmáticos.
Suas falas, nesse encontro, foram respostas a excelentes textos de introdutores, que abordavam temas tratados longamente por ele em seus livros. Assim,
por detrás desses fragmentos anotados,
há milhares de páginas escritas pelo filósofo, centenas de alusões a outros pensadores antigos e modernos, introduções e
intervenções dos ouvintes que sou obrigada, aqui, a omitir. Afinal, as falas do filósofo e as discussões decorrentes duraram ao todo 13 horas, e estão previstas a
transcrição e a publicação integral das
mesmas.
Derrida e a psicanálise (resposta à
introdução de René Major)
J.D.: Há
sempre um terror diante da imprevisibilidade do acontecimento. Reich usa a expressão "terror intelectual". A angústia
diante do indeterminado é diferente do
terror. Um intelectual, sobretudo um
psicanalista, não pode deixar de experimentar o terror. O terror é a condição do
exercício da psicanálise.
A filosofia é a minha profissão, a escritura é a minha paixão. O que me motiva,
em meu trabalho, à beira da filosofia, da
literatura e da psicanálise, é o fato de não
saber como tratar meu terror. De quem
tenho medo? Quem é o outro? Como fazer para ser fiel à alteridade do outro sem
me angustiar, fugir, resistir? Estou aqui
sem álibi. O luto está feito, da psicanálise,
da filosofia, da religião. E, no entanto,
Freud continuou acreditando na necessidade da civilização, da cultura, como
reparação, para que as forças destrutivas
não nos arrebatem. Como conciliar esses
dois movimentos: pulsão de destruição e
reparação? As pulsões criminosas são
inextirpáveis e, no entanto, Freud e
Reich aceitam a pena de morte em nome
da civilização. A crueldade do Estado deve fazer cessar o mal, o saber deve ser interrompido pelas leis.
Hegel se espantava diante da tragédia
de Antígona, diante do amor assexuado
entre irmã e irmão. Antígona é a mulher,
a escritura. Que nos diz Freud da orfandade? Numa nota, ele diz que sabemos
quem é a mãe, e que o pai é apenas uma
dedução intelectual. Conclui-se acerca
da paternidade por um raciocínio, e não
por uma dedução sensível. O patriarcado
corresponderia à razão, e o matriarcado
à sensibilidade. Mas não é tão simples. A
maternidade também resulta de um raciocínio, sobretudo hoje, quando a mãe
biológica não é necessariamente aquela
que dá à luz. A filiação é sempre uma hipótese. Somos todos órfãos. Orfandade,
escritura, rastro. Começamos todos como órfãos, e é aí que o medo começa.
A história da psicanálise se inscreve na
história da razão, das Luzes, e, ao mesmo
tempo, ela marca uma ruptura apavorante com a razão. Com a psicanálise,
ocorre um traumatismo, que consiste
em aterrorizar a razão, não em nome do
irracional, mas em nome da própria razão. Uma razão sem cogito.
Podemos pensar a psicanálise como
relação da razão com ela mesma e como
aposta no progresso da razão. Mas há algo que devemos opor a Freud: a ligação
do patriarcado com a razão deve ser desconstruída. Ora, pôr em causa o patriarcado é aterrador, para os filhos como para as filhas.
O que separa a psicanálise do jurídico é
que ela é sem álibi. O saber é sem álibi.
Mas o saber pode se tornar um álibi. Devemos continuar esperando que o saber
da psicanálise não se torne um álibi. Jamais um saber, seja ele qual for, nos ajudará a tomar uma posição política ou jurídica. A decisão ética é um salto sobre o
abismo. Para que haja responsabilidade,
é preciso que, no escuro, se tome uma
decisão heterogênea com relação ao saber. Isso é apavorante, mas é preciso responder, mesmo sem saber a quem.
Amizade e hospitalidade (resposta à introdução de Joel Birman)
J.D.: Os direitos do homem são um movimento interminável. No ponto de partida, a Revolução Francesa, os direitos do
homem eram os direitos do cidadão. Há um paradoxo nesse movimento: ele é estatal, mas não é estático. Ele dá a si mesmo as garantias de uma revolução permanente. Hospitalidade. Existe uma
hospitalidade convencional, ou de educação, uma hospitalidade segundo as regras. E há uma hospitalidade de visitação, uma hospitalidade pura. O visitante
é alguém que não foi convidado, que
chega de modo inesperado, e que deve
ser recebido sem nenhuma condição. Essa é a verdadeira hospitalidade, que não
tem política. É necessário transformar a
política, para que a hospitalidade não seja mais regulamentada pelo Estado, para
que ela seja concedida a qualquer um,
sem que ele seja um cidadão.
É preciso inventar regras, leis, a cada
vez, sem critério prévio. Essa é uma invenção violenta, um acontecimento.
Quanto aos imigrantes: não deve haver
um "limiar de tolerância", nem uma "assimilação". Devo dar ao estrangeiro o direito de fazer o que ele quiser em minha
casa, de fazer a revolução em minha casa.
O acontecimento é imprevisível, e o outro é sempre traumatizante.
Falei de uma "hospitalidade pura".
Ora, tenho passado a minha vida desconstruindo toda origem, toda "pureza".
Contradição? Não. O princípio de hospitalidade só pode ser pensado a partir de
uma hospitalidade absoluta, mesmo que
ela não exista. Nem que fosse apenas para medir sua condicionalidade. É preciso
ter um conceito de hospitalidade absoluta para saber se dele nos aproximamos
ou nos afastamos.
Amizade. Em nossa representação ocidental da amizade, de origem grega, o
amigo é um homem, um aliado político,
um sujeito que não pode ser feminino. A
fraternidade é masculina. A filosofia e a
psicanálise devem desconstruir esse modelo de amizade, não apenas como experiência especulativa (tendo por objetivo
o saber), mas para transformar essa concepção. A frase atribuída por Montaigne
a Aristóteles -"Oh, meus amigos, não
há amigo!"- pode ser lida como: aquele
para quem há "amigos" não tem amigo.
Quando os amigos se multiplicam, a
amizade desaparece. Questão política:
quantos amigos se pode, se deve ter? É a
questão que se coloca para a cota aceitável de imigrantes. A fraternidade implica
homens da mesma família, da mesma
nação. É preciso colocar em questão esse
conceito de fraternidade. É a partir do
impossível (que não é inteiramente negativo) que se concebe o possível. É preciso pensar uma amizade sem fraternidade, mais do que política, sem exclusão.
Esse é um pensamento louco, para além
do Estado-nação. Não se trata de uma
oposição à fraternidade, mas apenas de
pensá-la.
Também não basta opor, à fraternidade (masculina), uma sororidade (feminina). É preciso defender as diferenças sexuais no plural. Toda diferença sexual
tende a determinar uma oposição, e, onde há oposição, há homogeneização. A
dualidade homem-mulher tende a neutralizar a oposição, em favor de um dos
termos.
É somente dispersando as diferenças
sexuais que escaparemos, ao mesmo
tempo, à guerra dos sexos e à homogeneidade homossexual. Não é substituindo a fraternidade pela sororidade que se
mudará alguma coisa. O feminismo teve
um primeiro gesto estratégico, oposto ao
masculino. Mas não deve deter-se nesse
momento estratégico porque, assim fazendo, reconstitui-se o poder.
Crueldade e soberania (resposta à
introdução de Chaim Katz)
J.D.: A
crueldade não é igual à violência. Toda
crueldade é violenta, mas a violência
nem sempre é cruel. Quando se funda o
direito, há uma violência. E há, em seguida, uma violência conservadora, que
consiste em manter as leis. Quando se
olha o abismo sobre o qual é fundado o
direito, temos uma vertigem. A revolução é o instante em que se coloca algo ali
onde havia o vazio. É a ereção de uma
instituição sem fundamento. Ela produz
o fantasma de seu próprio fundamento.
Não há nenhum fundamento natural do
direito, da autoridade, da Constituição.
Apenas, tentam convencer-nos de que a
Constituição é natural. Examinei, num
curso, a Declaração de Independência
dos Estados Unidos. Ela se autojustifica
por Deus, pela natureza, pelo povo americano etc.
O nazismo não foi uma desconstrução
nem uma destruição do Estado. Ele foi
conservador, reforçador do Estado, dos
valores da raça, da família etc. Em certo
lugar de meus escritos, há a desconstrução das relações de Walter Benjamin
com Carl Schmitt (jurista ideólogo do
nazismo). Durante certo tempo, houve
uma simpatia de Benjamin por Schmitt,
um encontro estranho, uma amizade
teórica. Quando se acredita em fundamentos preexistentes, corre-se o risco
das piores cumplicidades. A possibilidade sempre aberta do mal é condição para
que o bem exista. A possibilidade do mal
está sempre presente, sob formas apaziguantes, politicamente corretas, aparentemente morais.
A crueldade não é exclusiva do homem, como se costuma afirmar. Um
animal pode ser cruel. Onde há vida, há
crueldade. A crueldade é constitutiva da
vida, do amor. Esse pensamento da
crueldade é, talvez, o mais cruel. Mas o
conceito de crueldade não é confiável.
Não estou certo de que ele seja confiável
em Freud. Como Nietzsche, Freud considera a crueldade como inerente ao inconsciente. Para a psicanálise, o vínculo
libidinal é cruel. O vínculo social se erotiza imediatamente e ele é o leito da crueldade. Por aí, poderíamos ver uma cumplicidade de Freud com Schmitt, como
entre Benjamin e este. Ora, penso que se
deve despsicologizar o discurso político,
para o abrir, talvez, a uma psicanálise do
político. Atualmente, há uma despolitização do político em função do humanitarismo, dos "bons sentimentos". O político que devemos reinventar deveria ser
reerotizado de outro modo, por um eros
que não fosse apropriador, que respeitasse o desligamento na ligação. É preciso pensar uma nova Internacional democrática.
Sobre a pena de morte: em "Surveiller
et Punir" ("Vigiar e Punir"), Michel Foucault diz que há um crescimento histórico da invisibilidade da pena de morte.
Acredito, pelo contrário, que há um crescimento da visibilidade da pena de morte, no cinema, na televisão, na imprensa.
Há uma ligação entre o sacrifício sangrento das religiões e a pena de morte. O
que eu tenho examinado, em meus seminários sobre o assunto, é por que nenhum grande filósofo foi capaz de contestar, com argumentos filosóficos, a pena de morte, e por que quase todos acabam por aceitá-la.
O futuro do homem diante da tecnologia (resposta à introdução de
Sergio Paulo Rouanet)
J.D.: Foi dito,
e é exato, que eu proponho uma reinvenção do político sem o conceito de Estado,
e foi-me perguntado se não seria o caso
de reinventar o Estado, estendendo o
conceito de cidadania ao espaço público
social global. Respondo: o que me interessa é a repolitização, e não um velho
conceito de cidadania. Não sou contra a
cidadania, mas a favor de um novo conceito de cidadania e de cosmopolitismo.
Foi dito que meu pensamento não é a favor nem contra, é um pensamento "no
meio". Ora, não sou favorável a um pensamento "no meio", mas a um processo
flexível de negociação. Um pensamento
"no meio", no sentido de "no meio de".
O "meio" não é apenas um lugar de moderação, mas um lugar dentro.
Sempre declarei a importância do pensamento de Heidegger. Mas, desde o começo, dirigi à filosofia de Heidegger graves perguntas. Não sou de modo algum
heideggeriano. O pensamento de Heidegger é um daqueles que é preciso frequentar para contestar.
Nunca me opus às Luzes. Inquietei-me
com um certo teleologismo das Luzes, o
que provocou a reação de Habermas e a
polêmica decorrente. Mas Habermas retirou, depois, a afirmação de que eu me
opunha às Luzes. Ele me disse, pessoalmente, que se havia enganado a meu respeito no que concerne às Luzes. Não estamos de acordo, longe disso, mas não
nos opomos nesse ponto.
Sobre as novas tecnologias: não se deve
contestar a tecnologia, assim como não
se deve aplaudir todas as novas tecnologias. A Escola de Frankfurt denunciou a
técnica como instrumento de dominação. Eu também me preocupo com a
apropriação da tecnologia pelo capital.
Quanto ao patrimônio genético e à clonagem: eu não quero ser obrigado a escolher entre o sim e o não. A clonagem é
a repetição calculada da identidade genética. Sobre as novas tecnologias da comunicação: não acredito muito na democracia mundial das novas comunicações. Elas são apropriadas por poderes
supranacionais e aí reside o perigo.
As novas tecnologias devem ser submetidas a um exame constante dos organismos internacionais, mas isso tem sido
difícil em virtude da soberania dos Estados nacionais. Os próprios organismos
internacionais precisam ser reformulados. Democrata como sou, não acredito
mais nos antigos parlamentos internacionais. As principais discussões não se
travam mais nos parlamentos tradicionais. É preciso pensar numa transformação dos parlamentos tradicionais, pois é
neles que somos chamados a assumir
novas responsabilidades. Precisamos
dar uma resposta ao poder deslocador
das novas tecnologias.
Como se pode ver, Derrida não foi ao
Rio para fazer turismo.
Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da USP e autora de, entre outros, "Inútil Poesia"
(Companhia das Letras).
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