São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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+ filosofia

A ensaísta comenta as palestras dadas pelo pensador francês no Brasil no mês passado

por Leyla Perrone-Moisés

De 7 a 9 de junho, Jacques Derrida esteve no Rio, em companhia do psicanalista René Major, participando de um encontro organizado por Helena Besserman Vianna, em homenagem póstuma a uma amiga comum, Vilma Oakim. A imprensa local comentou fartamente os bastidores administrativos do evento, repercutindo rumores e polêmicas sobre seu gerenciamento por uma empresa privada e a cobrança de ingressos considerados caros. Pouco ou nada se falou, entretanto, da importância intelectual do encontro, do teor das falas do filósofo e dos debates que aí se travaram. Como interlocutora convidada, assisti a todas as sessões e tomei algumas notas, destinadas a meu uso pessoal. Entretanto, lamentando a falta de cobertura intelectual do evento pela imprensa, sinto-me agora impelida a dar a público estas notas. Respondendo a perguntas relativas a questões tratadas longamente em suas obras, Derrida observou, em determinado momento, que "existe uma violência feita contra os textos, que consiste em simplificá-los", e que "é sempre uma provação discutir rapidamente textos complexos, que têm outro ritmo". Estou ciente de que, ao anotar as falas de Derrida, cometi uma violência suplementar, transformando-as em breves notas. Entretanto acredito que estas notas podem dar ao menos uma idéia do que foi dito nesses três dias de debates. E espero que elas sejam recebidas como são: reflexos faiscantes de um brilho maior e mais contínuo. Como ouvinte de Derrida há mais de três décadas, posso testemunhar que aqueles que o ouviram no Rio tiveram um raro privilégio. Ele aí retomou muitos dos grandes temas de sua obra, com uma disposição didática notável. E poucas vezes o vi tão vibrante e preciso, tão generosamente exposto a perguntas dos interlocutores e do público, que se mostrou, em muitos momentos, cativado por seu carisma. Nos instantes que precederam à sessão de abertura, notei que Derrida estava tenso e sombrio, como que atemorizado, o que era surpreendente em se tratando de alguém que tem falado nos mais variados foros internacionais. De fato, suas primeiras palavras foram sobre o medo, mais precisamente, o terror ("l'effroi"). À medida que ele foi falando, esse terror declarado foi se transformando numa fala fluente. Como em seus seminários parisienses, o prazer e o proveito de ouvir o filósofo decorre do fato de se tratar de um pensamento exposto ao vivo, em processo, sem a arrogância das asserções definitivas. A desconstrução, tão falada e tão mal conhecida, é justamente essa tarefa infinita de desmontar pressupostos essencialistas e discursos dogmáticos. Suas falas, nesse encontro, foram respostas a excelentes textos de introdutores, que abordavam temas tratados longamente por ele em seus livros. Assim, por detrás desses fragmentos anotados, há milhares de páginas escritas pelo filósofo, centenas de alusões a outros pensadores antigos e modernos, introduções e intervenções dos ouvintes que sou obrigada, aqui, a omitir. Afinal, as falas do filósofo e as discussões decorrentes duraram ao todo 13 horas, e estão previstas a transcrição e a publicação integral das mesmas.

Derrida e a psicanálise (resposta à introdução de René Major)
J.D.: Há sempre um terror diante da imprevisibilidade do acontecimento. Reich usa a expressão "terror intelectual". A angústia diante do indeterminado é diferente do terror. Um intelectual, sobretudo um psicanalista, não pode deixar de experimentar o terror. O terror é a condição do exercício da psicanálise. A filosofia é a minha profissão, a escritura é a minha paixão. O que me motiva, em meu trabalho, à beira da filosofia, da literatura e da psicanálise, é o fato de não saber como tratar meu terror. De quem tenho medo? Quem é o outro? Como fazer para ser fiel à alteridade do outro sem me angustiar, fugir, resistir? Estou aqui sem álibi. O luto está feito, da psicanálise, da filosofia, da religião. E, no entanto, Freud continuou acreditando na necessidade da civilização, da cultura, como reparação, para que as forças destrutivas não nos arrebatem. Como conciliar esses dois movimentos: pulsão de destruição e reparação? As pulsões criminosas são inextirpáveis e, no entanto, Freud e Reich aceitam a pena de morte em nome da civilização. A crueldade do Estado deve fazer cessar o mal, o saber deve ser interrompido pelas leis. Hegel se espantava diante da tragédia de Antígona, diante do amor assexuado entre irmã e irmão. Antígona é a mulher, a escritura. Que nos diz Freud da orfandade? Numa nota, ele diz que sabemos quem é a mãe, e que o pai é apenas uma dedução intelectual. Conclui-se acerca da paternidade por um raciocínio, e não por uma dedução sensível. O patriarcado corresponderia à razão, e o matriarcado à sensibilidade. Mas não é tão simples. A maternidade também resulta de um raciocínio, sobretudo hoje, quando a mãe biológica não é necessariamente aquela que dá à luz. A filiação é sempre uma hipótese. Somos todos órfãos. Orfandade, escritura, rastro. Começamos todos como órfãos, e é aí que o medo começa. A história da psicanálise se inscreve na história da razão, das Luzes, e, ao mesmo tempo, ela marca uma ruptura apavorante com a razão. Com a psicanálise, ocorre um traumatismo, que consiste em aterrorizar a razão, não em nome do irracional, mas em nome da própria razão. Uma razão sem cogito. Podemos pensar a psicanálise como relação da razão com ela mesma e como aposta no progresso da razão. Mas há algo que devemos opor a Freud: a ligação do patriarcado com a razão deve ser desconstruída. Ora, pôr em causa o patriarcado é aterrador, para os filhos como para as filhas. O que separa a psicanálise do jurídico é que ela é sem álibi. O saber é sem álibi. Mas o saber pode se tornar um álibi. Devemos continuar esperando que o saber da psicanálise não se torne um álibi. Jamais um saber, seja ele qual for, nos ajudará a tomar uma posição política ou jurídica. A decisão ética é um salto sobre o abismo. Para que haja responsabilidade, é preciso que, no escuro, se tome uma decisão heterogênea com relação ao saber. Isso é apavorante, mas é preciso responder, mesmo sem saber a quem.

Amizade e hospitalidade (resposta à introdução de Joel Birman)
J.D.: Os direitos do homem são um movimento interminável. No ponto de partida, a Revolução Francesa, os direitos do homem eram os direitos do cidadão. Há um paradoxo nesse movimento: ele é estatal, mas não é estático. Ele dá a si mesmo as garantias de uma revolução permanente. Hospitalidade. Existe uma hospitalidade convencional, ou de educação, uma hospitalidade segundo as regras. E há uma hospitalidade de visitação, uma hospitalidade pura. O visitante é alguém que não foi convidado, que chega de modo inesperado, e que deve ser recebido sem nenhuma condição. Essa é a verdadeira hospitalidade, que não tem política. É necessário transformar a política, para que a hospitalidade não seja mais regulamentada pelo Estado, para que ela seja concedida a qualquer um, sem que ele seja um cidadão. É preciso inventar regras, leis, a cada vez, sem critério prévio. Essa é uma invenção violenta, um acontecimento. Quanto aos imigrantes: não deve haver um "limiar de tolerância", nem uma "assimilação". Devo dar ao estrangeiro o direito de fazer o que ele quiser em minha casa, de fazer a revolução em minha casa. O acontecimento é imprevisível, e o outro é sempre traumatizante. Falei de uma "hospitalidade pura". Ora, tenho passado a minha vida desconstruindo toda origem, toda "pureza". Contradição? Não. O princípio de hospitalidade só pode ser pensado a partir de uma hospitalidade absoluta, mesmo que ela não exista. Nem que fosse apenas para medir sua condicionalidade. É preciso ter um conceito de hospitalidade absoluta para saber se dele nos aproximamos ou nos afastamos. Amizade. Em nossa representação ocidental da amizade, de origem grega, o amigo é um homem, um aliado político, um sujeito que não pode ser feminino. A fraternidade é masculina. A filosofia e a psicanálise devem desconstruir esse modelo de amizade, não apenas como experiência especulativa (tendo por objetivo o saber), mas para transformar essa concepção. A frase atribuída por Montaigne a Aristóteles -"Oh, meus amigos, não há amigo!"- pode ser lida como: aquele para quem há "amigos" não tem amigo. Quando os amigos se multiplicam, a amizade desaparece. Questão política: quantos amigos se pode, se deve ter? É a questão que se coloca para a cota aceitável de imigrantes. A fraternidade implica homens da mesma família, da mesma nação. É preciso colocar em questão esse conceito de fraternidade. É a partir do impossível (que não é inteiramente negativo) que se concebe o possível. É preciso pensar uma amizade sem fraternidade, mais do que política, sem exclusão. Esse é um pensamento louco, para além do Estado-nação. Não se trata de uma oposição à fraternidade, mas apenas de pensá-la. Também não basta opor, à fraternidade (masculina), uma sororidade (feminina). É preciso defender as diferenças sexuais no plural. Toda diferença sexual tende a determinar uma oposição, e, onde há oposição, há homogeneização. A dualidade homem-mulher tende a neutralizar a oposição, em favor de um dos termos. É somente dispersando as diferenças sexuais que escaparemos, ao mesmo tempo, à guerra dos sexos e à homogeneidade homossexual. Não é substituindo a fraternidade pela sororidade que se mudará alguma coisa. O feminismo teve um primeiro gesto estratégico, oposto ao masculino. Mas não deve deter-se nesse momento estratégico porque, assim fazendo, reconstitui-se o poder.

Crueldade e soberania (resposta à introdução de Chaim Katz)
J.D.: A crueldade não é igual à violência. Toda crueldade é violenta, mas a violência nem sempre é cruel. Quando se funda o direito, há uma violência. E há, em seguida, uma violência conservadora, que consiste em manter as leis. Quando se olha o abismo sobre o qual é fundado o direito, temos uma vertigem. A revolução é o instante em que se coloca algo ali onde havia o vazio. É a ereção de uma instituição sem fundamento. Ela produz o fantasma de seu próprio fundamento. Não há nenhum fundamento natural do direito, da autoridade, da Constituição. Apenas, tentam convencer-nos de que a Constituição é natural. Examinei, num curso, a Declaração de Independência dos Estados Unidos. Ela se autojustifica por Deus, pela natureza, pelo povo americano etc. O nazismo não foi uma desconstrução nem uma destruição do Estado. Ele foi conservador, reforçador do Estado, dos valores da raça, da família etc. Em certo lugar de meus escritos, há a desconstrução das relações de Walter Benjamin com Carl Schmitt (jurista ideólogo do nazismo). Durante certo tempo, houve uma simpatia de Benjamin por Schmitt, um encontro estranho, uma amizade teórica. Quando se acredita em fundamentos preexistentes, corre-se o risco das piores cumplicidades. A possibilidade sempre aberta do mal é condição para que o bem exista. A possibilidade do mal está sempre presente, sob formas apaziguantes, politicamente corretas, aparentemente morais. A crueldade não é exclusiva do homem, como se costuma afirmar. Um animal pode ser cruel. Onde há vida, há crueldade. A crueldade é constitutiva da vida, do amor. Esse pensamento da crueldade é, talvez, o mais cruel. Mas o conceito de crueldade não é confiável. Não estou certo de que ele seja confiável em Freud. Como Nietzsche, Freud considera a crueldade como inerente ao inconsciente. Para a psicanálise, o vínculo libidinal é cruel. O vínculo social se erotiza imediatamente e ele é o leito da crueldade. Por aí, poderíamos ver uma cumplicidade de Freud com Schmitt, como entre Benjamin e este. Ora, penso que se deve despsicologizar o discurso político, para o abrir, talvez, a uma psicanálise do político. Atualmente, há uma despolitização do político em função do humanitarismo, dos "bons sentimentos". O político que devemos reinventar deveria ser reerotizado de outro modo, por um eros que não fosse apropriador, que respeitasse o desligamento na ligação. É preciso pensar uma nova Internacional democrática. Sobre a pena de morte: em "Surveiller et Punir" ("Vigiar e Punir"), Michel Foucault diz que há um crescimento histórico da invisibilidade da pena de morte. Acredito, pelo contrário, que há um crescimento da visibilidade da pena de morte, no cinema, na televisão, na imprensa. Há uma ligação entre o sacrifício sangrento das religiões e a pena de morte. O que eu tenho examinado, em meus seminários sobre o assunto, é por que nenhum grande filósofo foi capaz de contestar, com argumentos filosóficos, a pena de morte, e por que quase todos acabam por aceitá-la.

O futuro do homem diante da tecnologia (resposta à introdução de Sergio Paulo Rouanet)
J.D.: Foi dito, e é exato, que eu proponho uma reinvenção do político sem o conceito de Estado, e foi-me perguntado se não seria o caso de reinventar o Estado, estendendo o conceito de cidadania ao espaço público social global. Respondo: o que me interessa é a repolitização, e não um velho conceito de cidadania. Não sou contra a cidadania, mas a favor de um novo conceito de cidadania e de cosmopolitismo. Foi dito que meu pensamento não é a favor nem contra, é um pensamento "no meio". Ora, não sou favorável a um pensamento "no meio", mas a um processo flexível de negociação. Um pensamento "no meio", no sentido de "no meio de". O "meio" não é apenas um lugar de moderação, mas um lugar dentro.
Sempre declarei a importância do pensamento de Heidegger. Mas, desde o começo, dirigi à filosofia de Heidegger graves perguntas. Não sou de modo algum heideggeriano. O pensamento de Heidegger é um daqueles que é preciso frequentar para contestar.
Nunca me opus às Luzes. Inquietei-me com um certo teleologismo das Luzes, o que provocou a reação de Habermas e a polêmica decorrente. Mas Habermas retirou, depois, a afirmação de que eu me opunha às Luzes. Ele me disse, pessoalmente, que se havia enganado a meu respeito no que concerne às Luzes. Não estamos de acordo, longe disso, mas não nos opomos nesse ponto.
Sobre as novas tecnologias: não se deve contestar a tecnologia, assim como não se deve aplaudir todas as novas tecnologias. A Escola de Frankfurt denunciou a técnica como instrumento de dominação. Eu também me preocupo com a apropriação da tecnologia pelo capital. Quanto ao patrimônio genético e à clonagem: eu não quero ser obrigado a escolher entre o sim e o não. A clonagem é a repetição calculada da identidade genética. Sobre as novas tecnologias da comunicação: não acredito muito na democracia mundial das novas comunicações. Elas são apropriadas por poderes supranacionais e aí reside o perigo.
As novas tecnologias devem ser submetidas a um exame constante dos organismos internacionais, mas isso tem sido difícil em virtude da soberania dos Estados nacionais. Os próprios organismos internacionais precisam ser reformulados. Democrata como sou, não acredito mais nos antigos parlamentos internacionais. As principais discussões não se travam mais nos parlamentos tradicionais. É preciso pensar numa transformação dos parlamentos tradicionais, pois é neles que somos chamados a assumir novas responsabilidades. Precisamos dar uma resposta ao poder deslocador das novas tecnologias.
Como se pode ver, Derrida não foi ao Rio para fazer turismo.


Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Inútil Poesia" (Companhia das Letras).



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