São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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"Um Filme É um Filme" reúne as críticas de cinema escritas entre 1958 e 1970 pelo poeta José Lino Grünewald, morto no ano passado


UM CORPO-A-CORPO COM A TELA

por Jorge Coli

0 título é expressivo: "Um Filme É um Filme". O subtítulo "O Cinema de Vanguarda dos Anos 60" induz erro. Trata-se de um livro que reúne críticas escritas por José Lino Grünewald, de 1958 a 1970, organizadas e apresentadas por Ruy Castro. Elas não se limitam a um cinema experimental, de "vanguarda". São páginas que enfeixam Godard e George Sidney, "Cidadão Kane", de Orson Welles, e "Primavera", antiga opereta da Metro, interpretada por Jeanette MacDonald e Nelson Eddy. São textos que surgiram não do interesse por uma certa categoria de filmes, mas de um amor irreprimível pelo cinema. Possuem todos uma acuidade que os projeta nas alturas da melhor crítica internacional. Fica bastante claro, no livro, de onde emana a qualidade das análises ali contidas. Ela provém de uma inteligência que se formou frequentando, com paixão e sem cansar, as salas de cinema. Basta lembrar o recorde de Grünewald: 257 filmes assistidos apenas no ano de 1957! Isso é uma lição. O autor nos ensina que não se aprende cinema no colégio. É a assiduidade diante das telas que aguça a inteligência analítica necessária. Nada da parafernália conceitual, nada da pretensiosa meia dúzia de livros teóricos, que se tornam moda e lugares-comuns dentro da incultura intelectual. Uma lição menos evidente do que parece -e passível de ser alargada: para conhecer literatura, é preciso ler poesia e romances; para conhecer pintura, é preciso ver muitos quadros; para conhecer cinema, é preciso... ir ao cinema. Não que Grünewald desdenhe a reflexão elaborada e os autores complexos. Mas, em seus escritos, eles só adquirem direito de cidade a partir desse conhecimento sofisticado e fino, dessas intuições sem palavras, que brotam apenas do contato constante, interessado e amoroso, com as obras.

Filme como síntese
Não é à toa que o filósofo Merleau-Ponty se mostra sua principal referência, aquele de "Sens et Non Sens" (Sentido e Não-Sentido), concebendo o filme como uma síntese oferecida à percepção, num processo de inteligência paralelo ao dos conceitos. Grünewald cita Merleau-Ponty de modo emblemático: no cinema, diz o filósofo, "a idéia é trazida a um estado nascente e emerge da estrutura temporal do filme como uma representação da coexistência de suas partes. (...) Um filme exprime o que uma coisa exprime: um e outro não falam a diferentes meios de compreensão. O filme não é pensado, mas percebido".
As inflexões próprias ao seu modo de sentir e de analisar, que se nutria da experiência diante das telas, permitem pôr em modo relativo as três classificações que Grünewald emprestou de Ezra Pound para aplicá-las aos cineastas: existem os "inventores", que inauguram novidades dentro da própria linguagem cinematográfica; os "mestres", que, embora não inovem como os "inventores", se assenhoreiam, em clássica plenitude, dessa linguagem; e os "diluidores", que se servem dela de um modo rotineiro e modesto.
Essas categorias levavam Grünewald a ordenar seu pensamento por um processo estimulante, já que elas, de certo, deviam provocar intensas discussões consigo mesmo e com outros, para determinar se tal ou qual cineasta entrava em tal ou qual categoria. Elas traziam também enfoques agudos, na busca das características específicas à natureza do cinema e na interrogação sobre o papel que certos filmes representaram dentro da história cinematográfica. Enfim, elas correspondiam aos tempos da modernidade hegemônica, quando a suprema qualidade artística parecia residir apenas na invenção original, capaz de subverter modos estabelecidos e consagrados da criação. Mas um esquema é um esquema e, no caso de Grünewald, ele adquire espessura apenas por aquilo que o crítico retira de sua experiência. As classificações submergem, dissolvem-se, por força das análises complexas. No seu projeto objetivo, elas não hesitam em se dispor, arbitrárias, a serviço de afinidades e de gostos. Nem podia ser de outro modo. Grünewald as submete a uma subjetividade afiada, que o autoriza a execrar Robert Bresson, mostrar um fraco por Roger Vadim e não engolir muito facilmente Jean Renoir. Isso não impede discussões genéricas e iluminadoras, que ultrapassam, de longe, o esquema. Assim a dificuldade em valorizar certos filmes dentro de um universo mental que se quer sofisticado -filmes amados pelo autor apesar de tudo- lhe permite escrever algumas páginas essenciais sobre as características da criação em Hollywood. Trata-se da série de artigos que giram em torno das operetas produzidas pela MGM -e que envolve também "My Fair Lady", de George Cukor.

Linguagem sem floreios
"Um Filme É um Filme" nunca dispensa o corpo-a-corpo com obras precisas. A linguagem é seca, direta, sem floreios, com uma certa rudeza masculina, prescindindo transições delicadas. As palavras indicam, apontam, revelam: isto é, fazem ver o não-visto. Leia-se, como exemplo, ao acaso, esse trecho sobre "Teorema", de Pasolini: "Tudo nele é maturação. Desde a estabilidade arquitetônica das imagens até o tom pausado e contido, dominante nas sequências, apenas rompido na imagem do desfecho. As cores mortas, com alguns momentos plásticos, como a cena de Silvana Mangano na igreja ou Laura Betti sendo enterrada viva na alvorada".
Desde 1958, isto é, desde "Glória Feita de Sangue", que Grünewald detecta e desenreda, fascinado, as relações entre Max Ophuls e Stanley Kubrick. Elas seriam reafirmadas de modo intenso, muito tempo depois, pelo próprio Kubrick, em "De Olhos Bem Fechados", seu filme derradeiro. Talvez isso simbolize o fim último de uma época: Kubrick morreu em 1999, Grünewald, em 2000. A partir de 1980, um certo desencanto levou o crítico a abandonar definitivamente a frequentação das salas de cinema.
"Um Filme É um Filme" sai publicado agora, quando uma cinefilia retoma vigor. Ela se estende e se generaliza. A cultura desses cinéfilos mais recentes não é a mesma de outros tempos, mas isso não importa. Como, num sentido, não importa aqui a supremacia atual de Hollywood. Depois dos tenebrosos anos 80, quando o cinema parecia agonizar diante da televisão e dos videocassetes, uma ressurreição se deu. A grande tela soube dispor, ao pé de si, um público renovado. Nesse horizonte imprevisto, os textos de Grünewald encontrarão, sem dúvida, um eco para sua inteligência atuante.


Jorge Coli é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas, autor de, entre outros, "Música Final" (Ed. da Unicamp). É secretário da Cultura de Campinas (SP).



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