São Paulo, domingo, 08 de julho de 2001

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+ sociedade

Isonomia na redução do consumo de energia determinada pelo governo federal só faz aumentar as desigualdades sociais do país

Sobre sapos e homens

José Guilherme Chauí-Berlinck
especial para a Folha

Solicite" a um cavalo que utilize 20% menos energia. Ele vai emagrecer um pouco e, após um certo tempo, estará num novo patamar de equilíbrio. Sua temperatura corpórea ficará mantida ao redor dos 37 graus habituais e suas funções vitais estarão sendo adequadamente cumpridas. Enfim, o cavalo suporta a redução no consumo de energia. "Solicite", agora, a um beija-flor que reduza os "mesmos" 20% em seu gasto energético. O que ocorre? Irá o beija-flor emagrecer um tanto e tudo continuará como dantes? Não! Por quê? O consumo de energia, entre outros fenômenos biológicos, sofre um processo de escala, conhecido por alometria. Um fenômeno alométrico é um fenômeno no qual o crescimento entre as partes não é proporcional, ou seja, ao dobrar um certo tamanho, um outro, acompanhante, não irá dobrar, mas sim aumentar numa outra escala, por exemplo, irá triplicar. O nosso problema em questão, o da relação entre a massa corpórea do animal e o consumo de energia, é um dos clássicos da alometria. Assim, quanto maior o animal, maior seu consumo de energia, porém não numa proporção de 1 para 1. Um beija-flor que pese 5 gramas consome ao redor de 0,28 watts. Um cavalo, com 650 kg, consome ao redor de 395 watts. Assim, o cavalo pesa 130 mil vezes mais do que o beija-flor, mas consome, somente, 1.400 vezes mais energia que o beija-flor. É justamente sobre esse problema de escala que repousa o absurdo de propor que o cavalo e o beija-flor reduzam seus respectivos consumos de energia de forma proporcional. Note-se que, para cumprir suas atividades vitais, cada grama de beija-flor consome ao redor de 90 vezes mais que cada grama de cavalo. Assim, ao requisitar uma redução no consumo, as células do beija-flor ficarão impossibilitadas de cumprir funções vitais, pois a diminuição concomitante na massa corpórea, que então ocorreria, levaria a um consumo, por grama, muito mais elevado. Mas o mesmo não ocorre com as células do cavalo: este tem uma reserva, advinda do crescimento do corpo. Em resumo: uma redução no consumo significa, para o beija-flor, ultrapassar um certo limite vital, impedindo-o de ter uma vida normal. As saídas para um animal como esse, colocado em tal tipo de restrição, são duas: morte ou torpor. Qualquer uma das duas coloca o beija-flor em franca desvantagem diante do cavalo, que manterá suas atividades de uma forma quase que inalterada. Qualquer estudante mediano de biologia conhece tal problema de escala. Ao solicitar que todos reduzam o consumo de energia em 20%, os tecnocratas da hora não estão solicitando um "esforço" igualitário da sociedade. Os que consumiam muito serão premiados e irão levar suas vidas em um novo patamar. Os que já consumiam no limite inferior, ou seja, a ampla maioria da sociedade brasileira, serão os verdadeiros penalizados. Aos que já economizavam ou tinham seus consumos no limite resta o destino do beija-flor: morte ou torpor. A morte é muito drástica para supormos que irá ocorrer de forma disseminada na sociedade devido à diminuição do consumo de energia imposta. Assim, ficamos com o torpor. Vertebrados que mantêm sua temperatura corpórea estável e elevada em relação à temperatura ambiente à custa de gasto de energia são conhecidos como endotermos-homeotermos, e essa condição é chamada eutermia. Basicamente, esses seres são as aves e os mamíferos. Entretanto, em algumas situações adversas (por exemplo, falta de alimento), aves e mamíferos pequenos são obrigados a abandonar a condição de eutermia por certos períodos. Tais períodos são conhecidos como torpor ou hibernação, dependendo do tempo de duração e intensidade da depressão. Nesses períodos, essas pequenas aves e mamíferos ficam com a temperatura corpórea extremamente baixa, quase igual à ambiente. Seu consumo de energia é bastante reduzido e suas funções vitais ficam rebaixadas. Seu perfil metabólico fica semelhante ao daqueles vertebrados que têm temperatura corpórea bastante mais variável e tendem a usar fontes externas de calor para se aquecer. Por exemplo, um sapo.

Preservar os perdulários
Assim, a isonomia percentual na redução do consumo de energia a nós imposta irá levar grande parte da sociedade da condição de primatas à de anfíbios. Ou seja, grande parte da sociedade, que já apresentava consumo baixo, irá cruzar a linha limítrofe da "endotermia-homeotermia", como um beija-flor à noite ou um esquilo no inverno, ao ser obrigada a participar do "esforço conjunto isonômico" de redução no consumo. Por outro lado, aqueles que desperdiçavam ou gastavam excessivamente de alguma maneira, vivendo bem acima da linha limítrofe, esses serão apenas incomodados, mas manterão sua condição de mamíferos sem mais problemas.
A ciência biológica mostra que a evolução por seleção natural preserva os indivíduos que, de alguma maneira, minimizam seus custos. O governo, numa clara inversão da ordem natural, irá premiar e preservar os perdulários. Parece que falta aos pseudo-sapientes, aos quais pagamos salários e deixamos ocupar altos postos na condução do país, um bom curso de biologia.
Todos sabem ser um princípio elementar da justiça social que não se pode dar tratamento igual aos desiguais, e sim que é necessário um tratamento desigual para garantir que todos alcancem a igualdade. Queremos perguntar, assim, onde se encontra a lógica da proposta de uma redução de 20% no consumo de energia "per casa (per domus)"? Ora, se há uma meta de redução e somos socialmente desiguais, mas politicamente iguais perante a lei (todos somos cidadãos), como alguns serão obrigados a cruzar a linha da eutermia e outros, não? Claro fica, pois, que a isonomia percentual na redução é um embuste que apenas faz aumentar as desigualdades sociais que já temos no país.
Se o objetivo fosse uma redução justa e igual no consumo, uma meta absoluta (e não relativa), escalada "per capita" e estruturada (ou seja, levando em conta as idades dos usuários) seria o correto, tanto do ponto de vista social quanto biológico. Crie-se uma escala estruturada "per capita", a partir de um "gasto unitário" estabelecido, ou seja, qual o consumo que uma pessoa necessita para viver (ou sobreviver?).
É complicado? Sim, mas é para isso que nós pagamos impostos e os salários desses supostos administradores. Note-se que, ao estabelecer a "isonomia dos 20%", o que foi, no fundo, estabelecido, foram diferentes "gastos unitários" para as várias pessoas. Ou seja, alguns poderão permanecer com seu gasto unitário de mamífero, outros ganharão o gasto unitário de um anfíbio. Aqueles que acharam que grande parte da sociedade teria que engolir o sapo da redução do consumo se enganaram. Grande parte da sociedade é que vai virar sapo.


José Guilherme Chauí-Berlinck é professor do Instituto de Biociências da USP.



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