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"Máquina de Gêneros", de Alcir Pécora, reúne
estudos sobre a literatura dos séculos 16, 17 e 18,
como Camões, padre Vieira e Bocage
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Radiografia da retórica
Kathrin Rosenfield
especial para a Folha
Às vezes as aparências enganam. O título "Máquina de Gêneros", de Alcir Pécora, apesar de
um pouco abstrato, introduz um livro instigante. Ele nos apresenta uma espécie de mapa de
um universo imaginário já longínquo: o da retórica dos
séculos 16, 17 e 18.
A idéia central do livro é, nas palavras do autor, "simples": apresentar a literatura dos séculos subsequentes
às grandes descobertas (do sermão ao tratado cívico e à
poesia erótica, entre outros), na perspectiva da arte retórica, cujo estudo pode "revelar mais do que se tem
imaginado, o constructo formal e histórico" de uma cultura. A idéia pode ser simples, porém requer muita arte
e conhecimento. O livro contrabalança, assim, de modo
salutar as tendências atuais, que instrumentalizam a literatura em função das outras disciplinas das ciências
humanas.
O autor começa pelas cartas jesuíticas, onde as formas
fixas do gênero correspondência se sobrepõem à experiência viva (o autor mostra a constância dessas formas
desde a Antiguidade e a Idade Média até Inácio de Loyola e Manuel da Nóbrega). Num outro capítulo sobre
Nóbrega, a análise do "Diálogo sobre a Conversão" expõe os modelos e métodos predeterminados da prática
da conversão, empregados para refletir sobre os percalços dos esforços missionários no Brasil, no momento
em que a "incredulidade indígena" [fustigada pelos jesuítas" "reverte especularmente para os jesuítas". É desse fracasso que nasce o debate-diálogo entre dois personagens que representam, na verdade, os próprios "topoi" retóricos.
Graças a esse manejo da forma retórica, o "Diálogo" se constitui, sub-repticiamente, em prova ostensiva da falta de
confiança na missão apostólica. Como
no "Sermão da Sexagésima", de Vieira, o
insucesso da pregação é atribuído à falta
de disposição dos pregadores e aos abusos da arte retórica.
Pela falta de espaço, não seguiremos linearmente os
diversos capítulos deste livro. Passemos primeiramente
para o final, legítimo "gran finale", em que a libertinagem virtuosística de Bocage contrabalança a compenetração das cartas jesuíticas e dos sacrossantos sermões.
Esse "Parnaso de Bocage, Rei dos Brejeiros" faz uma radiografia das formas de dicção na poesia erótica: as simetrias entre a "malícia rococó" e o "explícito obsceno", além do gênero misto, em que a sexualidade, que
normalmente pertence ao gênero baixo, é tratada "com
o vocabulário e com os recursos retóricos próprios do
gênero elevado".
É uma bela lição, que mostra a necessidade de entender o rótulo "libertinagem" no marco da "vocação poética virtuosística", isto é, como exigência e desafio formais de um poeta que escreve no papel e que desdobra
as "tópicas sexuais em todos os modos e gêneros".
Múltiplos engodos
Entre esses dois pólos que
abrem e fecham o ensaio, Pécora aborda as máximas e
os tratados de boas maneiras cívicas. A "sprezzatura" é
o conceito do homem social exemplar de Della Casa e
Castiglione -diferente do de Maquiavel, que constrói o
modelo de exceção do homem extraordinário. Na
"França (...) de La Rochefoucauld a sprezzatura perde
leveza e ganha violência, no método de produção de
sentenças e máximas". Seu ideal, o ""honnête homme",
cruza um critério aristocrático de casta com outro de
exigência ética tão rigorosa que o ser de exceção que resulta descrito pela noção é mais relativo ao possível que
ao real". As "Máximas" obrigam a pensar os múltiplos
engodos da excelência do nascimento, de virtudes e valores convencionais numa sociedade multifacetada.
É impossível destacar aqui todos os méritos dos outros capítulos, por exemplo, o de "As Artes e os Feitos", que analisa, pondo em
paralelo, a epopéia de Camões e a pregação de padre Vieira. Para quem não costuma associar o poeta épico e o pregador,
Pécora mostra como ambos são imbuídos -embora de modo diverso- de
sua missão: "Atribuem um lugar importantíssimo às suas artes no aperfeiçoamento e na destinação da história". Assim,
tanto a epopéia como a pregação entendem os grandes
feitos como "alegorias fatuais", que aguardam a formulação sublime da epopéia ou a exegese da pregação a fim
de indicar os caminhos que conduzem ao futuro. Mencionemos apenas os capítulos que apresentam um poema pouco conhecido de Gonzaga ("A Conceição") e situam, no conjunto de poemas "Glaura", de Silva Alvarenga, as formas do rondó e do madrigal.
Façanhas letradas
Pécora navega na contracorrente da crítica literária, que costuma apresentar cada
gênero como a forma na qual se plasmou o estado de
consciência ou a realidade material de uma época ou de
uma categoria social. Dispensa a visão, tão comum, da
história da literatura como panorama dos estágios da
consciência.
O autor rejeita o hegelianismo (empobrecido e carente do gênio do grande metafísico), que transforma os
gêneros em blocos homogêneos, nos quais sucumbe a
singularidade de obras e artistas. Perseguindo uma
idéia raramente desenvolvida (porém apreciada por
ilustres artistas como Robert Musil, lembrando sempre
que escreve com caneta e papel), o autor mostra que a
história de uma cultura se faz menos em vivências espontâneas do que em façanhas letradas "[que" exigem
muita tinta, muita papelada".
"Máquina de Gêneros" dispensa a exigência -ingênua ou ideológica- de fornecer uma visão direta da
"verdadeira" vivência ou do "conteúdo" real. Rastreia o
jogo de permutações que vinculam os artifícios dos
poetas e escritores (seja ele o "pálido esquizito mancebo" Bocage ou o sereno Manuel da Nóbrega) à arte dos
seus predecessores. No entender de Pécora, é perfeitamente dispensável projetar sobre esses elos da tradição
formal a idéia de um progresso histórico ou de um
avanço espiritual.
Quem valoriza, como Pécora, esses exercícios do virtuosismo retórico, cuja tarefa é a de preencher e diversificar os "contornos básicos" de uma arte em vigor há séculos, se defronta com o peso relativo dos estados de
"consciência" e da "realidade" na literatura.
Para terminar, um pequeno reparo. Vistos no conjunto, os capítulos sobre os tratados de civilidade e sobre as
"Máximas" são os menos vivazes e palpáveis, revelando, talvez, o limite da perspectiva adotada. A arte retórica não dispensa uma contextualização histórica mais
demorada quando se trata de tornar tangíveis as diferentes formas de "civilidade". Na Itália, estas surgem,
entre outros fatores, da pressão que a "burguesia" medieval e renascentista (que não pode ser confundida
com a burguesia moderna segundo Marx) exerce sobre
os poderes secular e pontifical.
Mais tarde, na França, também o Terceiro Estado participaria indiretamente dos conflitos que dividiam a
aristocracia, diversificando as categorias sociais (a corte, os "frondeurs-príncipes" militares, o Terceiro Estado) e os valores éticos (elaborados pelo jansenismo, por
Port Royal e pela Contra-Reforma). Contudo isso é apenas uma observação marginal que não diminui em nada o valor inquestionável deste livro.
Kathrin H. Rosenfield é professora de teoria literária na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a
Hölderlin" (editora L&PM).
Máquina de Gêneros
248 págs., R$ 25,00
de Alcir Pécora. Edusp (av. Prof.
Luciano Gualberto, 374, travessa J, 6º andar, SP, tel. 0/ xx/ 11/
3818-4006).
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