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Leia trechos das "Entrevistas sobre o Fim dos Tempos", feitas com
Stephen Jay Gould, Jean Delumeau e Umberto Eco e que serão lançadas
no final do mês pela Rocco em livro que traz ainda depoimento
do roteirista Jean-Claude Carrière
Gould - As profecias frustradas
Quando menino o sr. se regozijava com a idéia de que provavelmente estaria vivo no momento
da passagem para o próximo
milênio. Não por reverência ao
número 2.000, mas porque sabia que nesse dia todo o mundo
sobre a Terra ia pensar na mesma coisa. Devemos temer esse
não-evento ou esperá-lo tranquilamente?
Stephen Jay Gould - Não há
nada a temer, não vai acontecer
nada de especial! É justamente isso que é divertido: no passado,
nas civilizações religiosas as pessoas sentiam um terror real, profundo, das catástrofes apocalípticas. Em nossa era secular o que
nos apavora é a pane informática
que se produzirá se os computadores interpretarem o 00 do ano
2000 como um retorno a 1900.
Mas ninguém se atreve a sustentar que esse perigo informático
será um apocalipse no sentido bíblico.
Não, asseguro-lhe, não se passará nada de especial. As pessoas
festejarão, haverá algumas mortes
a mais nas estradas, alguns acidentes devidos ao álcool, veremos
talvez surgir novas seitas do tipo
"Heaven's Gate". Outros desprezarão esses festejos, lembrando a
trivialidade e o arbitrário dessa
data, mas no fim das contas será
uma festa maravilhosa, as pessoas
se abraçarão em todo o planeta.
Eis o que acontecerá.
Pergunta - Basta dizer aos inquietos que uma data é arbitrária para acalmar a angústia deles?
Gould - Você acredita que muita gente tem medo do fim do
mundo? Nesta época profana?
Não, eu creio que há exagero nisso. O ano 2000 é uma data muito
especial, é verdade, mas por outras razões que têm a ver com a
história do calendário. Você sabe
que teremos a chance muito rara
não só de assistir a uma mudança
de milênio, mas a uma mudança
de século, compreendendo um 29
de fevereiro. Porque o ano 2000
será um ano bissexto.
Pergunta - É claro, como 1996,
já que o ano bissexto ocorre de
quatro em quatro anos...
Gould - Não acredite nisso! Em
nosso calendário atual o ano bissexto é suprimido de cem em cem
anos, na fronteira entre os séculos. Mas de 400 em 400 anos o 29
de fevereiro é restabelecido na virada do século... Essa exceção se
produzirá em 2000. Teremos assim o privilégio, nesse ano, de gozar de um dia suplementar que só
existe uma vez de quatro em quatro séculos e que só existiu uma
vez, no anos 1600, pouco tempo
depois da adoção do calendário
gregoriano em 1582. (...)
Pergunta - Em seu último livro,
"Questioning the Millennium"
("Questionando o Milênio", Random House, EUA), o sr. mostra
que as ideologias milenaristas
resultam da interpretação teológica de uma frase de São Pedro, na segunda epístola (3, 8):
"Um dia é como mil anos e mil
anos como um dia".
Gould - A questão é esta, de fato:
por que atribuímos tanta importância ao número 1.000? Acabamos de ver que do ponto de vista
dos ciclos naturais ele não tem nenhuma significação especial. Sua
carga simbólica repousa unicamente no fato de que na Bíblia numerosas passagens apresentam
uma analogia entre mil anos para
nós e um dia para Deus. Para os
redatores da Bíblia, creio que essas passagens não pretendiam designar uma duração precisa, mas
serviam antes para exaltar a glória
de Deus. Cabe lembrar que, na
teologia cristã clássica, o Milênio
não designa um período da história humana, mas um reino de felicidade que deve durar mil anos,
após o retorno de Cristo e até o
Juízo Final. O evento desse Milênio começa pelo apocalipse; é importante então saber quando vai
chegar para que a pessoa se prepare para ele. Isso é tanto mais difícil porque o próprio Jesus anunciou claramente a chegada iminente do Reino. Os tempos estão
próximos, é difícil não crer que o
grande acontecimento se produzirá durante a vida daqueles que o
ouvem pronunciar o Sermão da
Montanha. Aliás...
Pergunta - Aliás não se passou
nada!
Gould - É esse um esquema
constante na história dos homens, a única certeza que talvez
tenhamos acerca do apocalipse: o
desmentido infligido às previsões
pela realidade. Ora, se o acontecimento que você aguardava faltou
ao encontro, você tem de escolher. Ou renuncia à sua crença, ou
retoca a foto: eu tinha entendido
mal, meus cálculos eram falsos. E
você realiza prodígios para reinterpretar a mensagem a fim de
descobrir a data verdadeira. Foi
assim que se viu aparecerem sem
cessar novos profetas no transcurso da história.
Pergunta - Por definição todos
esses profetas se enganaram,
visto que estamos aí para falar
deles...
Gould - Sim, e até o excelente
Ussher de que falávamos há pouco. No entanto ele era um homem
muito rigoroso. Só que vivia num
universo mental em que a história
dos homens era a contada na Bíblia. Na época quase todas as pessoas "sabiam" que 6.000 anos deviam se escoar entre a Criação e o
retorno de Cristo -o início do
Milênio. Deus criou o mundo em
seis dias e descansou no sétimo.
Isso significava simbolicamente
que o mundo ia durar 6.000 anos.
O sétimo dia correspondia ao Milênio, que devia trazer mil anos de
repouso e felicidade.
Pergunta - Isso corresponde
ao sabá...
Gould - Sim, é um grande sabá.
Pergunta - Essas pessoas parecem ter concebido um deus ordenado que não se enganava
nos zeros.
Gould - Sim, tudo era soma bastante simples. Para calcular a data
do fim do mundo bastava portanto calcular a data de sua criação
remontando ao tempo da história
bíblica. Foi assim que Ussher consagrou sua vida e milhares de páginas a essa pesquisa. Era um
grande erudito, capaz de fazer cálculos engenhosos, conhecedor do
latim, do grego e do hebraico. Para remontar no tempo e avaliar a
duração decorrida desde a Criação, utiliza múltiplas fontes: o Antigo Testamento, mas também os
documentos babilônicos, a história romana, os Evangelhos. Segundo Ussher, o templo de Salomão foi construído no meado
desse tempo, 3.000 anos após a
Criação, e Jesus nasceu exatamente mil anos mais tarde, no ano
4000 depois da Criação. Entre o
nascimento do Cristo e o início do
Milênio -do sétimo dia- deviam escoar-se exatamente 2.000
anos.
Pergunta - Ussher não assumiu o risco de ver sua profecia
desmentida quando vivo. Mas
outros foram mais temerários...
Gould - Ah, sim, a lista é longa!
De fato, os profetas jamais conseguiram entrar em acordo sobre a
"verdadeira" data! Em 1525 o anabatista Thomas Müntzer, convencido de que vive "no fim de todos
os tempos", se põe à frente de
uma revolta de camponeses na
Turíngia e morre decapitado. Nos
anos 1840 o adventista William
Miller, seguido por cem mil discípulos, espera o fim do mundo para 21 de março de 1843 ou 44. Depois muda a data e propõe 22 de
outubro de 1844... Nem por isso
os milleritas se desencorajam...
Numerosas comunidades protestantes nos Estados Unidos e no
Canadá, sobretudo os adventistas
do sétimo dia e as testemunhas de
Jeová, têm por origem seitas apocalípticas desse gênero. As testemunhas de Jeová devem ter revisto sua doutrina: seu fundador,
Charles Taze Russell, anunciava o
fim dos tempos para 1914...
Pergunta - O que não era tão
descabido...
Gould - Mas não era o fim do
mundo! Era um bom pressentimento do assassinato dos arquiduques, mas não das tropas do
Armagedon. A espera do cataclisma final pode ter efeitos explosivos na sociedade, pode conduzir
ao colapso de todos os tabus e
proibições. De fato, se só temos
uma semana para viver, por que
obedecer às leis e temer os poderosos? E, depois disso, que acontece? Como continuar a viver?
Ocorre que a desilusão de uma esperança apocalíptica se prolonga
por lutas sociais dramáticas.
Quanto ao verdadeiro crente, ou
ele se dirige para uma outra seita,
ou se deprime e não se recupera
nunca mais ou se torna mais dogmático e refaz seus cálculos. Em
sua maioria as seitas sobrevivem
muito bem a esses desmentidos
repetidos.
Pergunta - E afinal o grande
medo do ano 1000 é um mito ou
uma realidade?
Gould - Tive a maior dificuldade de formar uma opinião sobre
este assunto. O terror do ano 1000
serviu de "punching-ball" político
nos círculos universitários ao longo dos dois últimos séculos. Os
historiadores românticos do século 19 adoravam essa idéia; os
historiadores racionalistas a detestavam. E não pararam de discutir. Finalmente, meu colega, o
historiador Richard Landes, convenceu-me de que tinha havido,
de fato, uma certa agitação milenarista na França e no que ia se
tornar a Alemanha. Mas esses
movimentos não parecem ter tido
uma grande amplitude, já que o
papa Silvestre 2º, que reinou de
999 a 1003, por exemplo, não faz
nenhuma alusão a eles, como não
o fazem também as crônicas régias. No caso não parece ter havido pânico geral; apenas uma certa
inquietação.
Pergunta - As pessoas não sabiam talvez em que data viviam?
Gould - Durante muito tempo
eu mesmo me fiz essa pergunta.
Nessa época distante as pessoas
saberiam apenas que o ano 1000
se aproximava? Realmente, segundo Landes, que eu consultei,
parece finalmente que sim, elas
sabiam. O sistema de Denys le Petit, distribuindo os acontecimentos a partir do ano 1 da Era Cristã,
tinha sido largamente popularizado graças à famosa cronologia do
Venerável Beda, um erudito
monge inglês do século 8º. (...)
Pergunta - As profecias apocalípticas servirão para exorcizar
nossas angústias pessoais diante da aproximação da morte?
Gould - De certa maneira, sim.
Pode-se dizer que todas as religiões são frutos da consciência da
morte... Mas a coisa é mais complicada. Quase sempre a doutrina
escatológica comporta uma promessa de ressurreição. Você vai
retornar, você poderá arranjar os
negócios dos seus amigos e dos
seus filhos... Imagine a alegria de
rever seus mortos queridos no dia
da grande revelação! Aliás, é de tal
modo tranquilizador saber que
você vai ressuscitar, mesmo depois de ter estado morto durante
muito tempo... Só há uma dimensão assustadora no milenarismo,
não subestimemos as esperanças
que as doutrinas apocalípticas fazem nascer. Lembre-se: não há razão para se desesperar, o fim não é
o fim, mas o começo de um futuro
radioso, a destruição salutar de
nosso mundo miserável! É essa
esperança que provoca devastações. Acontece que ela pode ser
tão forte que leve um povo a renunciar a cuidar de sua terra e de
si mesmo. Foi assim que os xhosas, na África do Sul, se deixaram
reduzir à escravidão sem protestar (...).
Pergunta - O sr. acha que a humanidade chegou a um estágio
avançado de sua evolução?
Gould - Essa é uma pergunta a
que não podemos responder. Não
temos nenhuma idéia daquilo de
que somos capazes com nosso
equipamento genético. No fim de
contas não faz tanto tempo assim
que estamos aqui, a espécie humana é muito jovem, cerca de 200
mil anos apenas. Do ponto de vista cultural, não temos muito mais
de 5.000 anos. A linguagem e a
tecnologia estão ainda no início,
as coisas mais surpreendentes, espantosas, entusiasmantes podem
acontecer, ainda não começamos
a explorar as possibilidades de organização social e tecnológica.
Em sua maioria os roteiros, é verdade, são provavelmente mais assustadores que exaltantes... Mas
que importa, você talvez já tenha
observado: não somos muito dotados para fazer predileções! Em
compensação, sabemos perfeitamente anunciar as catástrofes fora de propósito.
A OBRA
Entrevistas sobre o Fim dos Tempos -
Por Catherine David, Frédéric Lenoir e
Jean-Philippe de Tonnac. Tradução de
José Laurenio de Melo. Ed. Rocco (tel. 0/
xx/21/507-2000). Preço não definido.
Lançamento previsto para a segunda
quinzena deste mês.
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