São Paulo, Domingo, 08 de Agosto de 1999
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Leia trechos das "Entrevistas sobre o Fim dos Tempos", feitas com Stephen Jay Gould, Jean Delumeau e Umberto Eco e que serão lançadas no final do mês pela Rocco em livro que traz ainda depoimento do roteirista Jean-Claude Carrière
Gould - As profecias frustradas

Quando menino o sr. se regozijava com a idéia de que provavelmente estaria vivo no momento da passagem para o próximo milênio. Não por reverência ao número 2.000, mas porque sabia que nesse dia todo o mundo sobre a Terra ia pensar na mesma coisa. Devemos temer esse não-evento ou esperá-lo tranquilamente?
Stephen Jay Gould - Não há nada a temer, não vai acontecer nada de especial! É justamente isso que é divertido: no passado, nas civilizações religiosas as pessoas sentiam um terror real, profundo, das catástrofes apocalípticas. Em nossa era secular o que nos apavora é a pane informática que se produzirá se os computadores interpretarem o 00 do ano 2000 como um retorno a 1900. Mas ninguém se atreve a sustentar que esse perigo informático será um apocalipse no sentido bíblico.
Não, asseguro-lhe, não se passará nada de especial. As pessoas festejarão, haverá algumas mortes a mais nas estradas, alguns acidentes devidos ao álcool, veremos talvez surgir novas seitas do tipo "Heaven's Gate". Outros desprezarão esses festejos, lembrando a trivialidade e o arbitrário dessa data, mas no fim das contas será uma festa maravilhosa, as pessoas se abraçarão em todo o planeta. Eis o que acontecerá.

Pergunta - Basta dizer aos inquietos que uma data é arbitrária para acalmar a angústia deles?
Gould -
Você acredita que muita gente tem medo do fim do mundo? Nesta época profana? Não, eu creio que há exagero nisso. O ano 2000 é uma data muito especial, é verdade, mas por outras razões que têm a ver com a história do calendário. Você sabe que teremos a chance muito rara não só de assistir a uma mudança de milênio, mas a uma mudança de século, compreendendo um 29 de fevereiro. Porque o ano 2000 será um ano bissexto.

Pergunta - É claro, como 1996, já que o ano bissexto ocorre de quatro em quatro anos...
Gould -
Não acredite nisso! Em nosso calendário atual o ano bissexto é suprimido de cem em cem anos, na fronteira entre os séculos. Mas de 400 em 400 anos o 29 de fevereiro é restabelecido na virada do século... Essa exceção se produzirá em 2000. Teremos assim o privilégio, nesse ano, de gozar de um dia suplementar que só existe uma vez de quatro em quatro séculos e que só existiu uma vez, no anos 1600, pouco tempo depois da adoção do calendário gregoriano em 1582. (...)

Pergunta - Em seu último livro, "Questioning the Millennium" ("Questionando o Milênio", Random House, EUA), o sr. mostra que as ideologias milenaristas resultam da interpretação teológica de uma frase de São Pedro, na segunda epístola (3, 8): "Um dia é como mil anos e mil anos como um dia".
Gould -
A questão é esta, de fato: por que atribuímos tanta importância ao número 1.000? Acabamos de ver que do ponto de vista dos ciclos naturais ele não tem nenhuma significação especial. Sua carga simbólica repousa unicamente no fato de que na Bíblia numerosas passagens apresentam uma analogia entre mil anos para nós e um dia para Deus. Para os redatores da Bíblia, creio que essas passagens não pretendiam designar uma duração precisa, mas serviam antes para exaltar a glória de Deus. Cabe lembrar que, na teologia cristã clássica, o Milênio não designa um período da história humana, mas um reino de felicidade que deve durar mil anos, após o retorno de Cristo e até o Juízo Final. O evento desse Milênio começa pelo apocalipse; é importante então saber quando vai chegar para que a pessoa se prepare para ele. Isso é tanto mais difícil porque o próprio Jesus anunciou claramente a chegada iminente do Reino. Os tempos estão próximos, é difícil não crer que o grande acontecimento se produzirá durante a vida daqueles que o ouvem pronunciar o Sermão da Montanha. Aliás...

Pergunta - Aliás não se passou nada!
Gould -
É esse um esquema constante na história dos homens, a única certeza que talvez tenhamos acerca do apocalipse: o desmentido infligido às previsões pela realidade. Ora, se o acontecimento que você aguardava faltou ao encontro, você tem de escolher. Ou renuncia à sua crença, ou retoca a foto: eu tinha entendido mal, meus cálculos eram falsos. E você realiza prodígios para reinterpretar a mensagem a fim de descobrir a data verdadeira. Foi assim que se viu aparecerem sem cessar novos profetas no transcurso da história.

Pergunta - Por definição todos esses profetas se enganaram, visto que estamos aí para falar deles...
Gould -
Sim, e até o excelente Ussher de que falávamos há pouco. No entanto ele era um homem muito rigoroso. Só que vivia num universo mental em que a história dos homens era a contada na Bíblia. Na época quase todas as pessoas "sabiam" que 6.000 anos deviam se escoar entre a Criação e o retorno de Cristo -o início do Milênio. Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo. Isso significava simbolicamente que o mundo ia durar 6.000 anos. O sétimo dia correspondia ao Milênio, que devia trazer mil anos de repouso e felicidade.

Pergunta - Isso corresponde ao sabá...
Gould -
Sim, é um grande sabá.

Pergunta - Essas pessoas parecem ter concebido um deus ordenado que não se enganava nos zeros.
Gould -
Sim, tudo era soma bastante simples. Para calcular a data do fim do mundo bastava portanto calcular a data de sua criação remontando ao tempo da história bíblica. Foi assim que Ussher consagrou sua vida e milhares de páginas a essa pesquisa. Era um grande erudito, capaz de fazer cálculos engenhosos, conhecedor do latim, do grego e do hebraico. Para remontar no tempo e avaliar a duração decorrida desde a Criação, utiliza múltiplas fontes: o Antigo Testamento, mas também os documentos babilônicos, a história romana, os Evangelhos. Segundo Ussher, o templo de Salomão foi construído no meado desse tempo, 3.000 anos após a Criação, e Jesus nasceu exatamente mil anos mais tarde, no ano 4000 depois da Criação. Entre o nascimento do Cristo e o início do Milênio -do sétimo dia- deviam escoar-se exatamente 2.000 anos.

Pergunta - Ussher não assumiu o risco de ver sua profecia desmentida quando vivo. Mas outros foram mais temerários...
Gould -
Ah, sim, a lista é longa! De fato, os profetas jamais conseguiram entrar em acordo sobre a "verdadeira" data! Em 1525 o anabatista Thomas Müntzer, convencido de que vive "no fim de todos os tempos", se põe à frente de uma revolta de camponeses na Turíngia e morre decapitado. Nos anos 1840 o adventista William Miller, seguido por cem mil discípulos, espera o fim do mundo para 21 de março de 1843 ou 44. Depois muda a data e propõe 22 de outubro de 1844... Nem por isso os milleritas se desencorajam... Numerosas comunidades protestantes nos Estados Unidos e no Canadá, sobretudo os adventistas do sétimo dia e as testemunhas de Jeová, têm por origem seitas apocalípticas desse gênero. As testemunhas de Jeová devem ter revisto sua doutrina: seu fundador, Charles Taze Russell, anunciava o fim dos tempos para 1914...

Pergunta - O que não era tão descabido...
Gould -
Mas não era o fim do mundo! Era um bom pressentimento do assassinato dos arquiduques, mas não das tropas do Armagedon. A espera do cataclisma final pode ter efeitos explosivos na sociedade, pode conduzir ao colapso de todos os tabus e proibições. De fato, se só temos uma semana para viver, por que obedecer às leis e temer os poderosos? E, depois disso, que acontece? Como continuar a viver? Ocorre que a desilusão de uma esperança apocalíptica se prolonga por lutas sociais dramáticas. Quanto ao verdadeiro crente, ou ele se dirige para uma outra seita, ou se deprime e não se recupera nunca mais ou se torna mais dogmático e refaz seus cálculos. Em sua maioria as seitas sobrevivem muito bem a esses desmentidos repetidos.

Pergunta - E afinal o grande medo do ano 1000 é um mito ou uma realidade?
Gould -
Tive a maior dificuldade de formar uma opinião sobre este assunto. O terror do ano 1000 serviu de "punching-ball" político nos círculos universitários ao longo dos dois últimos séculos. Os historiadores românticos do século 19 adoravam essa idéia; os historiadores racionalistas a detestavam. E não pararam de discutir. Finalmente, meu colega, o historiador Richard Landes, convenceu-me de que tinha havido, de fato, uma certa agitação milenarista na França e no que ia se tornar a Alemanha. Mas esses movimentos não parecem ter tido uma grande amplitude, já que o papa Silvestre 2º, que reinou de 999 a 1003, por exemplo, não faz nenhuma alusão a eles, como não o fazem também as crônicas régias. No caso não parece ter havido pânico geral; apenas uma certa inquietação.

Pergunta - As pessoas não sabiam talvez em que data viviam?
Gould -
Durante muito tempo eu mesmo me fiz essa pergunta. Nessa época distante as pessoas saberiam apenas que o ano 1000 se aproximava? Realmente, segundo Landes, que eu consultei, parece finalmente que sim, elas sabiam. O sistema de Denys le Petit, distribuindo os acontecimentos a partir do ano 1 da Era Cristã, tinha sido largamente popularizado graças à famosa cronologia do Venerável Beda, um erudito monge inglês do século 8º. (...)

Pergunta - As profecias apocalípticas servirão para exorcizar nossas angústias pessoais diante da aproximação da morte?
Gould -
De certa maneira, sim. Pode-se dizer que todas as religiões são frutos da consciência da morte... Mas a coisa é mais complicada. Quase sempre a doutrina escatológica comporta uma promessa de ressurreição. Você vai retornar, você poderá arranjar os negócios dos seus amigos e dos seus filhos... Imagine a alegria de rever seus mortos queridos no dia da grande revelação! Aliás, é de tal modo tranquilizador saber que você vai ressuscitar, mesmo depois de ter estado morto durante muito tempo... Só há uma dimensão assustadora no milenarismo, não subestimemos as esperanças que as doutrinas apocalípticas fazem nascer. Lembre-se: não há razão para se desesperar, o fim não é o fim, mas o começo de um futuro radioso, a destruição salutar de nosso mundo miserável! É essa esperança que provoca devastações. Acontece que ela pode ser tão forte que leve um povo a renunciar a cuidar de sua terra e de si mesmo. Foi assim que os xhosas, na África do Sul, se deixaram reduzir à escravidão sem protestar (...).

Pergunta - O sr. acha que a humanidade chegou a um estágio avançado de sua evolução?
Gould -
Essa é uma pergunta a que não podemos responder. Não temos nenhuma idéia daquilo de que somos capazes com nosso equipamento genético. No fim de contas não faz tanto tempo assim que estamos aqui, a espécie humana é muito jovem, cerca de 200 mil anos apenas. Do ponto de vista cultural, não temos muito mais de 5.000 anos. A linguagem e a tecnologia estão ainda no início, as coisas mais surpreendentes, espantosas, entusiasmantes podem acontecer, ainda não começamos a explorar as possibilidades de organização social e tecnológica. Em sua maioria os roteiros, é verdade, são provavelmente mais assustadores que exaltantes... Mas que importa, você talvez já tenha observado: não somos muito dotados para fazer predileções! Em compensação, sabemos perfeitamente anunciar as catástrofes fora de propósito.


A OBRA
Entrevistas sobre o Fim dos Tempos - Por Catherine David, Frédéric Lenoir e Jean-Philippe de Tonnac. Tradução de José Laurenio de Melo. Ed. Rocco (tel. 0/ xx/21/507-2000). Preço não definido. Lançamento previsto para a segunda quinzena deste mês.




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