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Áreas inteiras do Brasil têm sido retiradas do controle do país
Guerra dos lugares
MILTON SANTOS
especial para a Folha
Cada época tem suas verdades e
cria os seus mitos. A época atual é,
por definição, mitológica e dificulta o encontro da verdade.
O imperativo da exportação, sugerido a todos os países como
uma espécie de solução salvadora,
é uma verdade ou apenas um mito? Afirma-se, com muita força,
que os países que não exportam
não têm presente nem futuro,
sem explicar cabalmente por quê.
A doutrina é tão forte que, embora isso não seja sempre reconhecido, chega-se ao paroxismo de agir
como se o próprio território devesse também ser exportado.
Comecemos pela definição de
território, na verdade uma redefinição. Consideremos o território
como o conjunto de sistemas naturais mais os acréscimos históricos materiais impostos pelo homem. Ele seria formado pelo conjunto indissociável do substrato
físico, natural ou artificial, e mais
o seu uso, ou, em outras palavras,
a base técnica e mais as práticas
sociais, isto é, uma combinação
de técnica e de política. Os acréscimos são destinados a permitir,
em cada época, uma nova modernização, que é sempre seletiva.
Vejam-se os exemplos das ferrovias na segunda metade do século
19 e das infovias hoje.
A partir da constituição do Estado moderno, tudo isso era considerado como base da soberania
nacional e da competição entre
nações. O exemplo mais eloquente é o de Colbert, ministro de Luís
14, engenheiro, geógrafo, economista, estrategista e estadista,
preocupado com o traçado das
estradas e canais na velha França,
base, ao mesmo tempo, do crescimento do país e da sua competição com os vizinhos e com a Inglaterra. O território, assim visto,
constituía um dado essencial da
regulação econômica e política, já
que do seu manejo dependiam os
volumes e os fluxos, os custos e os
preços, a distribuição e o comércio, em uma palavra, a vida das
empresas e o bem-estar das populações. Era por meio desses instrumentos incorporados ao território que o país criava sua unidade e funcionava como uma região
do Estado. "Regio" tanto significa
região quanto reger, governar.
Com a globalização, o território
fica ainda mais importante, ainda
que uma propaganda insidiosa
teime em declarar que as fronteiras entre Estados já não funcionam e que tudo, ou quase, se desterritorializa. Na verdade, se o
mundo tornou possível, com as
técnicas contemporâneas, multiplicar a produtividade, somente o
faz porque os lugares, conhecidos
em sua realidade material e política, distinguem-se exatamente pela diferente capacidade de oferecer às empresas uma produtividade maior ou menor. É como se o
chão, por meio das técnicas e das
decisões políticas que incorpora,
constituísse um verdadeiro depósito de fluxos de mais-valia, transferindo valor às firmas nele sediadas. A produtividade e a competitividade deixam de ser definidas
devido apenas à estrutura interna
de cada corporação e passam,
também, a ser um atributo dos lugares. E cada lugar entra na contabilidade das empresas com diferente valor. A guerra fiscal é, na
verdade, uma guerra global entre
lugares.
Por isso, as maiores empresas
elegem, em cada país, os pontos
de seu interesse, exigindo, para
que funcionem ainda melhor, o
equipamento local e regional adequado e o aperfeiçoamento de
suas ligações mediante elos materiais e informacionais modernos.
Isso quanto às condições técnicas.
Mas é também necessária uma
adaptação política, mediante a
adoção de normas e aportes financeiros, fiscais, trabalhistas etc.
É a partir dessas alavancas que os
lugares lutam entre si para atrair
novos empreendimentos, os
quais, entretanto, obedecem a lógicas globais que impõem aos lugares e países uma nova medida
do valor, planetária e implacável.
Tal uso preferencial do território
por empresas globais acaba desvalorizando não apenas as áreas
que ficam de fora do processo,
mas também as demais empresas,
excluídas das mesmas preferências.
Como as situações se alteram
rápida, repetidamente e de forma
inesperada, o território, sobretudo nas áreas mais afetadas pela
modernidade globalizadora, torna-se instável, nervoso e, também, ingovernável. As crises territoriais revelam, brutalmente, as
crises -nem sempre imediatamente percebidas- da economia, da sociedade e da política. O
caso brasileiro ilustra de forma
explícita essa entrega ao privado
da regulação dos usos do território, sobretudo naquelas suas fatias, pontos e articulações essenciais. A privatização extrovertida
das vias e meios de transporte e de
comunicação agrava o conjunto
de crises.
Importam-se empresas e exportam-se lugares. Impõe-se de fora
do país o que deve ser a produção,
a circulação e a distribuição dentro do país, anarquizando a divisão interna do trabalho com o reforço de uma divisão internacional do trabalho que determina como e o que produzir e exportar,
de modo a manter desigualmente
repartidos, na escala planetária, a
produção, o emprego, a mais-valia, o poder econômico e político.
Escolhem-se, também, pela mesma via, os lugares que devem ser
objeto de ocupação privilegiada e
de valorização, isto é, de exportação.
Não é simples metáfora dizer, a
partir desse raciocínio, que está
havendo uma entrega acelerada
do território, já que o modelo econômico consagrado recusa ao
país as ferramentas da sua regulação, pondo-as em mãos outras
(geralmente estrangeiras), cujos
projetos e objetivos podem ser inteiramente estranhos ou adversos
ao interesse nacional. É desse modo que áreas inteiras permanecem nominalmente no território,
fazendo parte do mapa do país,
mas são retiradas do controle soberano da nação.
Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de "Pensando o
Espaço do Homem" (Hucitec). Ele escreve
mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da
Folha.
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